FEITIÇO

Marcio e Célia haviam se mudado para Cuiabá há cerca de seis meses. A vida em São Paulo estava indo bem, mas a oportunidade de um emprego novo, numa cidade menor, com um salário maior, mexeu com ele. A empresa ainda tentou convencê-lo a mudar de ideia e chegou até a cogitar de um pequeno aumento, mas não teve jeito. Despediu-se feliz, deixando uma porta aberta para a possibilidade de um retorno futuro. Ela não trabalhava e, portanto, pôde acompanhar o marido sem nenhum problema.

Os primeiros dois anos do casamento, passados em São Paulo, haviam sido muito tranquilos. Moravam em casa própria, mas como em toda cidade grande, longe do trabalho. Ele saía cedo para evitar o trânsito e praticamente não se viam no café da manhã. À noite, chegava próximo das oito horas e era só jantar, ver um pouco de televisão e cair na cama, esgotado pelo dia de trabalho e pelas horas passadas na condução.

Nos finais de semana é que havia de fato convivência e sempre faziam programas juntos. Marcio adorava fotografia e os passeios eram registrados. Nunca se separava de sua máquina, daquelas que ainda usam filme, mas para ele incomparável.

Nesta fase de São Paulo, até a vida sexual deles era regrada: aos domingos, ali pelas sete da noite, desfrutavam de suaves momentos de amor, fechando o final de semana com chave de ouro. Nesta hora, claro, nada de fotos!

Enfim, vida calma e pacata. Tudo certo demais! E talvez isto, mais do que o salário, tenha levado Marcio a aceitar a mudança. Estava enferrujando aos poucos, consumido pela maresia daquela vida de pura rotina. No banheiro cantarolava Lulu Santos: “tolice é viver a vida assim, sem aventura…”

Em Cuiabá as coisas passaram a ter outro ritmo. Cidade menor, tudo mais fácil. Marcio gastava uns 15 minutos a pé entre a casa e o trabalho. Com isso, passaram a ter muito mais tempo juntos. Aumentaram as conversas. Passaram a fazer as refeições à mesa, calmamente. Descansavam mais, acordavam mais tarde. Chegaram até a descobrir um espaço para o sexo no meio da semana também. Era outra vida, muito melhor. E foi assim durante os primeiros quatro meses.

Até o dia em que Marcio chegou com a novidade:

– Comprei um barco em sociedade com três amigos do trabalho.

– Para que? – perguntou Célia intrigada.

– Pescar, ora. Mato Grosso é a terra da pesca. Cuiabá é a cidade e o rio.

– Mas você nunca pegou numa vara…

Ele pensou em fazer uma piada, mas achou inoportuno. Percebendo a resistência de Célia buscou atenuar:

– Podemos também passear no barco e nos divertir mais nos finais de semana. Você vai conhecer os casais e podemos formar um grupo animado.

Ela não tinha como negar certa razão àqueles argumentos e acabou aquiescendo, em silêncio.

Logo no primeiro final de semana foram todos a bordo da embarcação. Era uma traineira bonita e bem conservada, exibindo orgulhosa seu nome cuidadosamente desenhado de cada lado da proa: “Feitiço”.

Depois de todos apresentados deu-se o esperado: os homens, entusiasmados, foram tratar da navegação, enquanto as mulheres, deslocadas, mal conseguiam quebrar o silêncio. Em pouco tempo, o balanço do barco e o calor liquidaram o bom humor das mulheres, não habituadas  ao desconforto. Com menos de meia hora de passeio, já ansiavam por seu término. O Feitiço tinha criado afinidade entre os maridos e antipatia gratuita entre as esposas.

Marcio foi o primeiro a perceber aquele clima de panela de pressão prestes a começar a apitar. Logo manobrou para retornar e mal atracaram, as quatro voaram para o cais, encerrando ali seu último passeio de barco no Mato Grosso.

Daí para frente, aos domingos, os homens saíam para pescar e elas, sem sentir muita falta, dedicavam-se livremente aos seus caprichos e interesses. Tudo ia bem…

Mas aos poucos, Célia começou a desconfiar de algo. Marcio chegava sempre muito cansado. Ia direto para o banho e caía na cama, acordando só na segunda-feira. E, erro fatal, percebeu uma redução do apetite sexual do marido. Nunca tinha ouvido dizer que peixe de rio tivesse este efeito. Os domingos às sete da noite estavam passando em branco. Então começou a pensar em como descobrir qual era o verdadeiro “feitiço” destes domingos.

Passou a revistar a mochila, que sempre o acompanhava. Tinha tempo, enquanto ele estava dormindo. Por quatro ou cinco domingos nada encontrou de suspeito. Mas na vez seguinte, logo ao abrir a mochila, a prova do crime se apresentou.  Celia tremia… A máquina fotográfica! Ele tinha levado na pescaria. O mostrador indicava que, de um filme de 24 fotos, haviam 21 batidas.

Tinha certeza do conteúdo das fotos, mas precisava escolher a forma certa de agir. Precisava pensar. Fez um café e sorveu lentamente enquanto olhava pela janela. Sentia-se como um policial que encontrou o assassino, imobilizou-o e agora precisava agir do modo correto para tornar as provas inequívocas e evitar que ele escapasse da culpa.

Depois de uns três cafés e mais de uma hora refletindo, bolou algo maquiavélico. Tiro certeiro. Não queria vingança, muito menos escândalo. Apenas o fim do “Feitiço” e sua vida anterior de volta.

Desenrolou-se o plano: procurou na gaveta um filme novo de 24 poses, idêntico: achou! Havia dois novinhos, na embalagem. Marcio sempre tinha estoque. Apoderou-se de um e descartou cuidadosamente a embalagem, no fundo do saco de lixo já quase cheio. Friamente, rebobinou o filme que estava na máquina, retirou e em seu lugar colocou o filme novo. Apontou a máquina para uma lâmpada forte, bem de perto e bateu as 21 fotos, de modo que ele nada pudesse perceber num primeiro momento.

Perfeito! Voltou a máquina para a mochila na mesma posição e guardou o filme incriminador na parte interna de sua bolsa. A farra estava ali, tinha certeza!

No dia seguinte, logo depois que Marcio saiu para trabalhar, correu para a loja e mandou revelar o filme. Em meia hora viu a cores e em detalhes, a confirmação de suas suspeitas. A farra ganhou forma e rostos no papel fotográfico, em 21 ângulos diferentes. Preferiu não olhar tudo nem se fixar em detalhes, para evitar mudar de ideia e partir para outro plano mais radical. Parou na terceira foto.

Chegou em casa controlada e resoluta. Arrumou sua mala, pegou as chaves da casa de São Paulo e o filme revelado, seu trunfo para o resto da vida. Deixou em cima da mesa da sala, o envelope com as fotos e, por cima, um pequeno bilhete. Partiu para a Rodoviária. O plano estava consumado.

Marcio até então nada havia percebido. Quando retornou do trabalho deparou com a casa vazia e o bilhete em cima do envelope:

“Fui para São Paulo. Aguardo você no prazo máximo de uma semana. Caso contrário, nunca mais apareça.”

Ficou tonto. Sentiu-se como um João Bobo, balançando de um lado para o outro, com os olhos vidrados. Olhava o envelope com medo. Era da loja de fotografias. A mesma em que tinha ido revelar o filme, estranhamente queimado. Num calafrio, abriu e olhou só a primeira foto. Meu Deus!

Em três dias desembaraçou-se de toda a vida em Cuiabá. Na viagem para São Paulo vinha sonhando com a delícia daquela vida calma e pacata. Aventura desgraçada! Lulu Santos me paga! Feitiço contra o feiticeiro!

Agora ia recuperar sua rotina e voltar às boas com a Célia, amor de sua vida. Que bom! Tentava se convencer disso, mas uma dúvida cruciante percorria sua espinha. Durante a longa viagem, a expectativa o torturava. Como iria explicar o inexplicável? Foi formulando frases e argumentos, todos descabidos. Era como um afogado no meio do mar. Mas tinha uma tábua de salvação: ela o aguardava no prazo de uma semana! Aí residia a sua esperança. Claro, ela havia sido lacônica no bilhete, mas também…

Chegou naquela casa de tantas lembranças como se fosse um ladrão envergonhado, que vinha devolver o que foi roubado. A única coisa que pensou de razoável na viagem é que não tomaria a iniciativa da conversa. Aguardaria ela falar para então responder. E, claro, se houvesse oportunidade, pediria milhões de desculpas.

Que nada! Ela o olhou sem emoção. Parecia uma figura de cera. Disse, calmamente, que fosse tomar um banho, descansar e amanhã voltar à firma em busca de retomar seu emprego.

– Tá bom! – disse ele contido, mas explodindo de felicidade.

Em poucos dias voltaram à tranquilidade dos primeiros tempos de casados. Tudo igual. Quase tudo. Nunca falaram do assunto, mas naquela casa, por conta de um feitiço, às sete da noite dos domingos nunca mais houve sexo.

 Antonio Carlos Sarmento

5 comentários em “FEITIÇO”

  1. Essa é uma boa reflexão:
    p
    Por vezes muitas pessoas , em troca de um aumento ou uma posição melhor, larga a vida , larga a família filhos e opta em trocar seu maior tesouro para ganhar mais .
    Aceita um cargo melhor, ganha mais , mas tem que viajar mais e etc …
    Porém, perde a infância dos filhos fica poucos dias em casa, e esses momentos nunca mais voltarão , o tempo é cruel, a esposa fica insatisfeita, ela acumula função de pai e mãe , e solitária no seu quarto acaba acostumando com a cama vazia e com o passar do tempo, percebe que não foi aquela a opção de família na proposta inicial do casamento de ficarem sempre juntos , e daí vem o pior .
    Será que o salário com o aumento ou o cargo maior, foram realmente o caminho para a felicidade ?
    Podemos nos enfeitiçar por algo que julgamos maior, mas não existe nada maior que a família…

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    1. Newton, não imagina como fico feliz com o seu comentário. O objetivo era exatamente este: histórias curtas e leves para divertir e fazer pensar. Obrigado pela força e estímulo! E por ter lido as nove crônicas. Domingo farei a postagem da décima e você, como está seguindo o blog, vai receber a informação por e-mail. Forte abraço!

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