NÃO TEM SAÍDA

Todo menino devia morar em uma rua sem saída. Assim teria uma infância rica, junto com outros meninos, aprendendo a viver e conviver. Vou falar só dos meninos, minha experiência própria.

Numa rua sem saída, e somente nela, acontecem coisas que levam à convivência. As pessoas que passam na rua moram ali, são vizinhos e não estranhos. Não tem trânsito, não passa ônibus, a rua é calma. As janelas têm uma função extraordinária: são frequentadas. Possuem peitoril, onde se pode apoiar os braços enquanto vê-se a vida acontecer. É como uma televisão da vida real. Por ela dá até para conviver sem sair de casa, pois quem passa na rua acena para quem está dentro de casa e, às vezes, até conversas rápidas são gritadas entre o da janela e o da rua. Coisa fantástica! A rua é uma extensão da casa.

Rua sem saída é incomparável. No passado existiam as vilas, mas sempre muito pequenas, limitavam as relações, não proporcionando a ampla convivência. No presente, os grandes condomínios, que, entretanto são muito homogêneos, padronizados, compostos de famílias de perfil muito semelhante, perdendo-se a riqueza da diversidade social. Sem o problema quantitativo das vilas e qualitativo dos condomínios, a rua sem saída tem a medida certa.

A rua em que morei na infância tinha na entrada 4 prédios grandes, dois de cada lado, centro de terreno, com elevadores, apartamentos enormes e todos perfurados de janelas. Nunca vi tanta janela num mesmo apartamento: uma vez contei e, se a memória de uns 50 anos atrás não me falha, eram 14 para cada um, feitas de madeira, tipo veneziana. Na época eu pensava que todos os apartamentos deviam ser como aqueles, com uma frente, uma lateral e os fundos, pontilhados de maravilhosas janelas de madeira, tipo veneziana.

Em seguida, a rua abria-se em duas pracinhas, ovais e iguais, com pequenos prédios de cada lado. Cada pracinha era residência de duas amendoeiras: por capricho da natureza, uma grande e frondosa e outra de pequeno porte, tornando aquelas praças as mais iguais que já vi. Os prédios aí já eram de 3 andares, colados uns aos outros e sem elevadores. Mas com as mesmas janelas dos prédios da entrada, como a dar uniformidade ao que estava na mesma rua. Era o trecho onde eu morava.

Daí para frente a rua voltava a estreitar-se e ganhava inclinação: os prédios, muito semelhantes aos das pracinhas, se acotovelavam ladeira acima. A rua terminava então num pequeno plano circular, rodeado pela calçada e uma parede de pedra em toda a volta. Aquele fim de rua logo se transformou num glorioso estádio de futebol, conhecido como “Redondo”. Ali foram travadas peladas memoráveis.

Os meninos inventaram que a ladeira dividia a rua em duas categorias: “Elite” na parte plana e “Bairro Chinês” dali para cima. Mas era só para dar nome e possibilitar o maior clássico de futebol da nossa época. De fato, os grupos de meninos se formavam por um único critério: idade. Situação econômica, cor ou qualquer outra característica sempre foram ignoradas. O menino do último prédio do Bairro Chinês era amigo e frequentava a casa do que morava no primeiro prédio da Elite. E eram grupos exclusivamente masculinos, pois suas brincadeiras não serviam para meninas. Só mais tarde, na época dos namoricos, elas entraram em cena.

O local preferido dos meninos eram as pracinhas. A sabedoria infantil deu função distinta a cada uma. Na primeira eram jogos dinâmicos, como queimado, carniça, pião, bola de gude e outros, que não mais existem nas cidades grandes. Na outra era tudo mais estático: jogos de tabuleiro, cartas, totó e o apaixonante “dedobol”, um retângulo de madeira encerada onde os jogadores eram pregos e a bola uma moeda, que por ali deslizava, impulsionada por precisos petelecos desferidos por cada competidor.

Assim foi preenchida a minha infância: de manhã colégio, depois almoço, dever de casa o mais rápido possível e rua. Tirando as horas de sono, eu vivi mais na rua do que em casa. A vida estava lá. Sem saída!

Claro que nem tudo era harmonia. Havia muitas brigas e pelos motivos mais banais. Mas só se admitia briga justa, entre os da mesma faixa de idade e sem muita violência: apenas socos e pontapés, sem mordidas, cotoveladas ou dedo no olho. Quem perdia a briga, chegava em casa cabisbaixo, com algumas escoriações, mas, sem se queixar, tomava um banho e pouco depois, já refeito, voltava à rua para recomeçar do zero. A desafeição com o algoz durava muito pouco, logo superada pelas brincadeiras em comum. Só não se aceitava covardia nem interferência de pais ou irmão mais velho. Aquele que chamasse pai ou mãe para resolver esses assuntos tinha sua reputação abalada para sempre, virava motivo de chacota. Alguma covardia era resolvida por uma estranha aritmética: para enfrentar um adversário de 16 anos juntavam-se não apenas dois meninos de 8 anos, mas uns três ou quatro, que aí sim aplicavam a lição.

Hoje percebo que tudo isso só podia acontecer na numerosa e diversificada companhia de outros meninos, possibilitando uma infância socializada, rica e insubstituível no aprendizado da vida. Os meninos precisam uns dos outros!

Imagine os efeitos de termos agora a pobreza individualizada dos eletrônicos, videogames e seus viciantes similares. Ai meu Deus!

Se me fosse dado desenhar uma cidade eu faria da seguinte forma: as ruas para morar e as avenidas para circular, tipo uma espinha de peixe. As ruas de morar, todas elas, seriam sem saída, com prédios baixos e com uma praça no meio. Simples assim.

Nada é mais importante que a infância.

Só uma rua sem saída pode salvar nossos meninos!

Antonio Carlos Sarmento

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50 comentários em “NÃO TEM SAÍDA”

  1. O que está, infelizmente, acontecendo com a atual infância e juventude não é a rua sem saída para brincar , mas um beco sem saída em qualquer lugar.
    Com saudades lembro bem , um lugar apaixonante , todos os dias brincávamos quando criança e quando jovens , primeiros namoros e roda de violão era uma rua Henrique Boiteux, rua sem saída…

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  2. Que linda descrição do abrigo da sua infância e de todos os aprendizados que tornaram você essa GRANDE PESSOA,com inúmeras “saídas”!!!!!

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      1. Realmente a Pires formou várias gerações . Eu ainda frequento a rua porque minha mãe e minha tia ainda moram lá. Adorei as lembranças só não podemos marcar uma pelada no redondo porque não lembro de algum médico . Voce tem uma capacidade para escrever que me emocionou. Abraços fraternos.

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    1. Sônia (será que tem acento?)
      Toda a razão. Os aprendizados foram construídos muitos acertos e erros que nortearam e desaguaram nas vidas que seguiram.
      Parabéns pelo irmão.
      Bjs.

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      1. Errata:
        Toda razão. Os aprendizados foram constituídos de muitos acertos e erros que nortearam e desaguaram nas vidas que se seguiram.

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  3. Conteúdo maravilhoso, coisas simples fazem grandes pessoas , criam crenças positivas , as crianças tornam-se adultos fortes emocionalmente e encaram os desafios da vida com mais firmeza…por vezes queremos tratar crianças como adultos, criança é simplesmente criança e faz criancice, e devemos nos lembrar que também fomos crianças e quando brincar com uma criança devemos nos tornar crianças e não tentar transformá-las em adultos … Hoje estamos em um mundo que pude ser comparado a um beco sem saída, porém , qual a sua escolha ? Você vai escolher o beco ou a rua ? Reflita que pai, que mãe você vem sendo ?
    Parabéns Antonio Carlos, siga em frente mostrando que se agirmos ainda temos saída, VAMOS ACORDAR !

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  4. Parabéns meu amigo Antônio Carlos pela sua linda crônica. Aqueles que viveram em época anteriores também trazem belos momentos de suas infâncias e das ruas sem saída . E a vida segue e agora conhecendo e apreciando as qualidades do amigo escritor. Abraços
    Antonio de Azevedo

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  5. E a “”vida estava estava lá “” com inúmeras saídas…. Saidas nas mais divertidas brincadeiras conhecidas e inventadas de infância. A vida passa, as gerações aumentam e só fica a certeza: os afetos humanamente possíveis…

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    1. Como se lê no cinema- ” baseada em fatos reais” : da sua vida, meu primo, da minha vida e da infância de toda uma geração que sente saudade desses tempos de tanta afetividade e de tanto convívio.
      Descriçao simples e calorosa, exatamente como aqueles belos dias.

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  6. Querido Irmão, parabéns pela iniciativa! Fiquei emocionada em ler o retrato fiel de nossa infância! Lembrei dos dias felizes e cheios de paz.
    Esperançosa que nossos netos possam curtir com prazer e tranquilidade esses dias em uma infância muito diversa da nossa!
    Parabéns pela crônica tocante.
    Beijos

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    1. Bebeth,
      Concordo
      Além de desfrutarmos das crônicas, a iniciativa do Cacau, quem sabe, promoverá uma interação de quem viveu tudo que ele descreveu.
      Bjs

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  7. Difícil dizer qual a melhor crônica que vc escreveu até agora. Cada uma tem um tom diferente e um final surpreendente. Vc sabe como poucos prender nossa atenção numa leitura. Sou sua fã número 1 e estarei sempre lhe apoiando. Bjs

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  8. Boas lembranças. Sendo irmã de 3 meninos, tentava me infiltrar nas brincadeiras que às vezes dava certo e outras era expulsa sem a menor cerimônia. Enfim bons momentos.
    Parabéns, continue a nos brindar com seus textos. A Regina iria adorar.

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  9. Por este motivo escolhi viver em um lugar simples, uma rua sem saída. Seu conto me fez identificar quantas “ruas sem saida” já vivi.

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  10. Que bacana! Parabéns pela iniciativa! Realmente as ruas sem saídas tem seu valor! Muito legal retratar a infância alegre e sadia que vcs tiveram!!! Nossa família tem história nesta rua e minhas filhas estão postergando está alegria, crescendo e aproveitando cada dia o lugar calmo e de paz que vivemos! Grande abraço e parabéns pelo texto e iniciativa.

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  11. Cacau,
    Primeiramente parabéns pela inciativa.
    Você captou/capturou de forma extremamente sensível e comovente, acredito eu, a maioria dos sentimentos e sensações de todos nós que vivemos e vivenciamos esse “santuário”.
    A sua crônica me transportou para um mundo, aonde seus “habitantes” desfrutaram dos privilégios da convivência, com divergências mas sem radicalismo, de diferenças mas sem discriminação, muita solidariedade, e, principalmente de uma alegria única e contagiante.
    Vale a pena registrar as “peladas” de domingo com Maraca a tarde, o pedaço de pizza da Pizzaria Laranjeiras, as festinhas de sábado a noite principalmente na própria Pires ou na “Grande Pires” (começava da Rua Alice e terminava no Cosme Velho>
    Amigo, mais uma vez parabéns.
    Abraços,
    Aristides ou______, você sabe.

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    1. Meu amigo de infância Filé, só em este texto ter proporcionado o nosso contato já valeu o esforço. Agradeço muito seu ótimo e emocionante comentário. Vivemos muita coisa juntos ma infância e juventude. Felicidades e um grande abraço! Se puder, depois leia as outras 8 crônicas.

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  12. Sarmento,
    Que alegria reencontrá-lo nas redes sociais com emocionante escrita retratando sua infância vivida numa rua “sem saída”.
    Feliz coincidência,uma rua “sem saída”também fez parte da minha infância e dos meu irmãos.
    Quanta nostalgia sua escrita me trouxe. Até hoje a casa continua lá e ainda sendo nossa.
    Coincidências da vida, hoje morando há 21 anos no interior de SP,lá estou eu de novo morando numa rua sem saída. Porém o mundo mudou e a infância também. As ruas sem saída parecem não mais preservarem as tantas alegrias da garotada . Vida que segue…
    Felicitações pela coragem e ousadia, afinal escrever é por de si ,tarefa nada fácil!Grande abraço,
    Miriam

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    1. Oi Miriam, que bom voltarmos a ter contato. Muito obrigado por comentar. Quando puder dá uma olhada nas outras crônicas. Neste Domingo publicarei mais uma. Felicidades e muita paz aí no interior de São Paulo! Grande abraço!

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  13. Antonio Carlos
    Você consegui fazer com que recordasse da minha infância. Apesar de não morar em um rua sem saída, era como se fosse. Uma pracinha em uma bucólica rua junto ao Parque Laje. Nos reunimos nessa pracinha após o dever de casa…a descrição que você fez retratou a minha juventude, me traz uma saudade muito grande. Pena que os jovens de hoje não curtam essa qualidade de vida, sem violência, sem tecnologia. Será que conseguem manter as antigas amizades?
    Parabéns, gostei muito.

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  14. Caro amigo Antonio Carlos
    Que delícia retornar ao passado esquecido em minha mente. Também vivi em uma “rua sem saída” e revivi agora esses saudosos momentos. Hoje, por incrível que pareça, já joguei “dedobol” com meu neto Theo de 7 anos. É verdade que o campinho do dedobol não é igual ao que fazíamos com pregos, é mais bem elaborado! É oportuno registrar o prazer do joguinho com o meu netinho e agora com está nossa história de rua sem saída, uma alegria imensa!

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      1. Formidável a história do saudoso Faísca, cavalo caro ao coração! Fez meu domingo mais feliz! Grande abraço amigo Antonio Carlos!

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  15. Caro Sarmento, trabalhamos juntos no Metrô. Li algumas de suas crônicas e , que bom que voce descobriu o gosto de escrever. Eu descobri um belo cronista que passarei a ter o prazer de ler e acompanhar. Parabéns e obrigado. Luigi

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