PIZZA DE DOMINGO

Eram três irmãos. Os dois homens casaram e formaram suas famílias, enquanto Anita permaneceu morando com a mãe. D. Leda havia ficado viúva muito cedo, pois o marido faleceu subitamente aos 47 anos de idade. Este fato aproximou ainda mais mãe e filha, que se entendiam bem e conviviam harmoniosamente, residindo sempre na mesma casa.

Até que chegou a velhice para D. Leda. E veio o inevitável desgaste entre os filhos, inerente à dura tarefa de cuidar dos pais nesta fase. Anita sentia-se sobrecarregada e achava que os irmãos desfrutavam da vida, enquanto ela era a única a sacrificar sua existência. Quando ficava mais nervosa telefonava para os irmãos:

– Não estou aguentando mais. Nós temos que resolver esta situação.

– Resolver como? Quer que eu invente a pílula da juventude para ela tomar? – rebatia o irmão mais velho, já assoberbado com seus próprios problemas.

– Calma, Anita. Vamos um dia de cada vez. O que houve agora? – acolhia Paulo, o irmão mais novo e mais compreensivo.

Com o passar do tempo, Anita passou a ligar apenas para Paulo, pois com ele podia desabafar e aconselhar-se nas dificuldades constantes e crescentes.

– Como eu gostaria que mamãe fosse como uma criança, que dá muito trabalho, mas com o passar do tempo vai evoluindo e tornando-se independente. Ela é exatamente o contrário! – exclamava Anita.

– Não tem jeito. A vida é assim. O que podemos fazer é dar amor a ela, devolver um pouco do carinho que teve conosco e fazer o melhor possível dentro das circunstâncias. – respondia Paulo.

– Ah é? Vem aqui dar amor e carinho para ela.

– Eu vou, sempre que precisar. Pode contar comigo. Só não tenho como largar minha família e viver aí. – prometia.

E a conversa se estendia. Paulo tinha consciência de que não era nada fácil cuidar dos pais na velhice e que, as circunstâncias da vida haviam deixado a quase totalidade deste cuidado a cargo de Anita. Mas não havia o que fazer, senão manter as coisas como estavam e ir buscando resolver cada situação à medida que se apresentasse. Seria solidário.

D. Leda estava ficando senil e já apresentava uma certa desorganização mental.

– Ela está comendo muito, engordando. Parece não se lembrar de que acabou de bater um prato e faz outro do mesmo tamanho. Está com uma fome de adolescente! – relatava Anita.

– Ela não se lembra que já comeu? – questionava Paulo.

– Não. Outro dia serviu-se da sobremesa quatro vezes. Na quinta não aguentei e mandei parar. Ela admirou-se, pois achava que era a primeira vez.

– Faz o seguinte: coloca o prato dela já pronto e uma porção da sobremesa. Nada de travessas na mesa. Assim ela come o que está servido e acabou.

– Boa ideia. Vou fazer assim. Bom falar contigo!

Paulo ficava feliz quando conseguia ajudar. Era muito hábil e a distância da situação lhe permitia ser mais racional e encontrar caminhos não pensados pela irmã, desgastada pelo cotidiano.

Até que num final de domingo Anita perdeu a linha:

– Mamãe enlouqueceu! – berrou ao telefone.

– Calma Anita. O que houve? – respondeu Paulo.

– Ela pirou! Diz que não mora aqui. Quer ir pra casa dela!

– E o que você disse?

– Mamãe, pelo amor de Deus, você mora aqui há mais de 60 anos!!

– E ela?

– Não tem jeito. Está fazendo uma mala e dizendo que vai para a casa dela. Agora sou eu que estou ficando louca!!

Paulo decidiu numa fração de segundo. Morava há quase uma hora de distância e aquele não era o final de domingo que pensara, mas não hesitou:

– Estou indo para aí. Ajuda ela a arrumar a mala.

– O que? Mais um louco. Ela agora tá doida, tem um filho alienado e dois malucos!!

– Anita, sei o que fazer. Vai separando algumas roupas, umas coisas dela e ajuda a colocar na mala.

Anita chorou. Paulo com um nó na garganta, desligou o telefone.

Pouco trânsito, chegou em 45 minutos. No caminho pensou que drama ou comédia é uma escolha pessoal. Resolveu viver aquilo de forma leve, sem choro nem vela.

Chegou beijando as duas, amorosa e alegremente. Uma emburrada, querendo ir para casa, como alguém que tivesse pego um voo errado. A outra desesperada, como se quisesse obrigar um analfabeto a ler uma importante mensagem que havia escrito.

– Mãe, vim te buscar. Vamos para a sua casa. A mala já está pronta?

A mãe abriu-se num sorriso doce e confirmou que estava tudo pronto. Despediram-se de Anita, que atônita não sabia o que dizer. Entraram no carro, bagagem no porta malas, deram tchauzinho e iniciaram a viagem de volta para casa.

Paulo foi dirigindo a esmo, seguindo as ruas sem saber onde iria. Parecia um cego sem cão guia e sem bengala. O importante era passar o tempo, viajar no carro, ir direto ao destino inexistente. D. Leda acompanhava o percurso eufórica. De vez em quando olhava para o filho e sorria agradecida.

Uns 20 minutos depois, Paulo teve a ideia:

– Mãe, tá com fome? Vamos comer uma pizza antes de chegar em casa? Lá não tem nada pra comer.

D. Leda topou na hora.

– Portuguesa, né mãe? A que você mais gosta.

Pediu uma pequena, pois de fato D. Leda havia engordado bastante. Ela adorou o programa. Estava feliz com a volta pra casa. Conversaram muito, contou coisas do passado, lembrou de pessoas, falou quase o tempo todo. Nada como uma pizza de domingo!

Voltaram ao carro e Paulo agora dirigia com rumo. Fez o caminho de volta, num percurso redondo como a pizza, retornando ao ponto de partida.

Ao chegar buzinou em frente à casa.

Anita, preocupada, correu para a porta e ficou ali parada, na expectativa do que iria acontecer.

– Mãe. Chegamos! Olha aí sua casa, que beleza. Nada como a casa da gente, não é? – disse ele.

Os olhos de D. Leda brilharam.

– Anita tá aí. Dá um abraço nela, mãe!

D. Leda deu um longo e apertado abraço em Anita e entrou. Na sala, olhava tudo com admiração e uma alegria incontida. Deu graças à Deus!

Paulo colocou a mala no quarto e veio ao seu encontro. Ela pegou com carinho as mãos dele, olhou-o com muita gratidão e despediu-se, beijando amorosamente os dois lados do seu rosto.

Foi dormir feliz!

Permaneceu na casa, onde morava há mais de 60 anos, até morrer.

Antonio Carlos Sarmento

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54 comentários em “PIZZA DE DOMINGO”

    1. Lucia, esta crônica é baseada numa história real vivida pela família de um amigo. Mas de fato tem semelhança e eu já imaginava que você iria fazer esta associação. São situações muito comuns nas famílias, quando os pais envelhecem… Mas que bom ter despertado emoção e até um choro que serve como desabafo. Beijos e bom domingo!

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      1. Querido primo,
        Como é bom ter um Paulo nos momentos difíceis e como é preciso ter uma dedicada Anita nos cuidados de nossos amados.
        Gostei especialmente quando voce diz que podemos escolher entre drama e comédia. Realmente , boa reflexão para os desafios do dia a dia.
        Grande abraço meu primo escritor!

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  1. Sarmento fiquei muito emocionado com essa crônica. Que belo cronista voce é! Toca o coração daqueles que tem a felicidade de ler. Sinto-me agraciado por Deus por ser um atento leitor de sua escrita. Deus te abençoe.

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    1. Luigi, comentários como este seu trazem-me uma grande emoção. Se você fosse meu único leitor, já valeria a pena continuar a escrever. Obrigado e Deus te abençoe também. Domingo que vem tem mais! Forte abraço.

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      1. PARABÉNS! Gosto muito de ler suas crônicas SARMENTO.
        Não me admiro tamanha sensibilidade pois tive a sorte de conhecer essa figura humana com uma essência tão boa e prestativa. Abraço e sempre lembrado!!

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  2. Querido Antonio Carlos, sua sensibilidade apurada trouxe um tema muito importante para todos.
    A velhice chegará para pais e filhos, e como lidar com esses momentos quando chegarem ?
    Por mais que possamos planejar , a realidade pode não ser a prevista.
    Mas independente de planejamentos ou pensamentos , o futuro só a Deus pertence e sendo assim a única fórmula possível e com 100% de garantia é o AMOR.

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  3. Querido primo,
    Como é bom ter um Paulo nos momentos difíceis e como é preciso ter uma dedicada Anita nos cuidados de nossos amados.
    Gostei especialmente quando voce diz que podemos escolher entre drama e comédia. Realmente , boa reflexão para os desafios do dia a dia.
    Grande abraço meu primo escritor!

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      1. ou transformar os dramas da vida em comédia… talvez a vida fique mais leve ou “descomplicamos” ela…

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  4. Pois é, na velhice contamos com filhos e “ filhos “. Ter um Paulo na vida deve amenizar bastante os percalços tanto dos pais quanto dos irmãos. Adorei a crônica, cunhado !!!!

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    1. A velhice às vezes dá trabalho,mas a filha e o filho Paulo sabiam tratar a mãe. Foi ótimo. Parabéns.Continue nos premiando com as histórias .

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      1. Uma emocionante crônica, espelhando o sofrimento humano em duas faces.
        É uma crônica de vida. Muito triste e realística.
        Não tem saída, ou morre cedo como meus pais , ou envelhece .
        Parabéns amigo, por enfrentar de forma brilhante um tema tão amargo e tão presente em nossa sociedade.

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    1. Amigo Sarmento, Que excelente crônica!!!
      Vi a realidade de muitas famílias com as quais convivemos nas nossas vidas…. porém, uma, em especial, passou por momentos muito semelhantes e ao que você tão bem descreve.
      “O AMOR é a grande resposta, não importa a pergunta”…
      Um grande e fraterno abraço!!!

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  5. Eu estou gostando muito de acompanhar seu Blog.
    Cada crônica uma reflexão, um sentimento, uma palavra que remete uma lembrança…
    O mais interessante 🙂 🙂 🙂
    O incentivo a LEITURA!!!!

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  6. Antonio Carlos, a pizza de domingo me fez lembrar os momentos que passei, juntamente com minha irmã e irmãos, para tratar dessa realidade difícil, que é a velhice dos nossos pais.
    parabéns, mais uma vez, pelas crônicas, que além de divertidas nos leva a reflexão dos assuntos abordados.
    Um forte abraço.

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  7. Prezado senhor;
    Não eu o conheço mas tive o prazer de trabalhar junto com sua filha por cerca de um ano no WiseUp da Barra da Tijuca onde nos conhecemos. Aliás, mande minhas lembranças para ela pois foi graças a um post dela no Facebook sobre o seu blog que cheguei até aqui.
    Achei a história muito interessante pois mês passado minha mãe foi internada numa cliínica psquiátrica por quase um mês e tudo o que o senhor descreveu aqui me soou bem familiar. Nessa história verídica pelo senhor descrita, vejo que o que nos falta é o convívio com aqueles que nos são caros, no caso, nossos pais…
    Apreciei muito seu texto bem como o seu blog. Já sou seu seguidor.
    Que Deus abençoe essa sua empreitada.

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    1. Bion, pode deixar o senhor de lado… Fico contente com sua manifestação, pois sequer nos conhecemos. Que bom ter gostado do blog. Foi minha filha quem montou e me ajuda na edição dos textos. Estou feliz por ter você como seguidor e seus comentários são importantes, já que dá aulas de português e redação, certo? Muito prazer neste contato! Abraços

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  8. Lindo!, Lindo! Lindo! Fantástico o relato, chega a nos emocionar pela criatividade do filho e o que uma simples pizza pode transformar um cotidiano, muito bom! Podemos afirmar, com certeza, que tudo terminou em pizza.
    Parabéns Sarmento pela crônica!

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  9. A vida é aprendizado e cuidar de nossos pais é preservar nossa historia!! O texto me fez lembrar do meu pai…e as dificuldades que a doença nos permite refletir sobre a vida. Bjs

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  10. A vida é aprendizado e cuidar de nossos pais é preservar nossa historia!! O texto me fez lembrar do meu pai…e as dificuldades que a doença nos permite refletir sobre a vida. Bjs

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