CONFLITO AÉREO

Viagem longa de avião na classe econômica devia ser enquadrado como crime de tortura. Em assento do meio, crime hediondo!

As pessoas já chegam ansiosas, buscando desesperadas um lugar pra guardar a mala e preocupadas se existe mesmo aquele assento que está marcado. Tem lugar para a mala, mas ninguém acredita! ​O lugar está marcado, mas ninguém acredita!

Aquele monte de gente confusa, atrapalhada, batendo maletas e mochilas nos outros, discutindo com os parentes, obstruindo a passagem e promovendo um falatório infernal. ​Uma agitação de bo​ate no auge da noite, só que sem música.

Em meio ao caos, a única pessoa que sorri é a aeromoça. Mas ela é paga para irradiar simpatia. Tem que fazer cara de quem vai servir salmão, quando na verdade será sardinha. Em lata!

A alegria de encontrar o assento não dura muito: é sentar e 15 minutos depois já dói a coluna, as pernas ficam dormentes e o cotovelo não aguenta mais apoiar naquele braço duro. Eles chamam aquilo de poltrona, eu chamo de cadeira.

O crime atinge seu ápice quando o vizinho da frente decide reclinar o encosto, misturando o cabelo dele com o bigode de quem está atrás. Para contornar o desconforto, cada um vai recostando também, disparando um efeito dominó.

Sobre a refeição é melhor nem falar muito: uma bandeja cheia de comida plastificada, tudo sem gosto e sem graça, mas que a necessidade faz com que seja consumida com voracidade.

Quando a aeromoça pergunta:

–  Carne ou peixe?

A vontade é responder:

– Tanto faz. É o mesmo gosto…

E tudo isso regado a cerveja quente, vinho ruim ou suco de laranja com gosto de xarope​ para tosse.​

​Há algum tempo fiz uma viagem dessas à Itália com a família, que passo a contar.

Reservei os lugares para minha mulher e minha filha numa fila dupla, ótima, janela e corredor. Para mim sobrou um lugar no corredor de uma fila quíntupla, no mesmo alinhamento delas. Graças a Deus meu lugar era no corredor, pois nos assentos do meio parece existir uma sincronização misteriosa: assim que o vizinho dorme, sou acometido de uma irresistível vontade de fazer xixi. Aí é um incômodo geral para ir ao banheiro. E outro igual para retornar ao lugar na lata de sardinha. Se o vizinho dormir de novo, lá vem a urgência urinária…

Mas voltemos a viagem. Aos poucos as pessoas se acomodaram, ou melhor, se incomodaram nos lugares. Na minha fileira, próximo da hora da partida, faltava apenas o assento ao meu lado. Quando notei aquela figura vindo pelo corredor, pressenti que seria o meu vizinho. Estremeci. Era um sujeito de uns 40 anos, cara de mexicano, cabelos oleosos e desgrenhados, vestido com desleixo, uma mochila surrada na mão, barba por fazer e higiene idem, como logo pude constatar.

Eu não merecia aquele castigo. Apontou para o assento ao meu lado e pediu licença. Levantei e houve a inevitável aproximação. Se ele fosse um vinho e eu um enólogo, a experiência olfativa poderia ser assim descrita:

– Aroma fortemente cítrico, prevalecendo notas de queijo francês azedo, percebendo-se ao fundo toques de urina de gato parisiense, permeado por odores penetrantes de pombo de Veneza morto há 12 dias.

– Será que vou aguentar isso? – pensei.

O indivíduo tossiu três vezes antes de sentar. Acomodou a mochila entre as pernas e deu um espirro forte, assustando os vizinhos e acrescentando mais algumas notas à experiência olfativa.

– Dificilmente vou aguentar isso. – pensei.

 Em seguida abriu a mochila e de lá retirou um saquinho plástico contendo um vidro de xarope, que imagino ser o mesmo utilizado para fazer o suco de laranja servido a bordo, tomou um gole direto no frasco todo melado e guardou.

– Tengo gripe. – disse ele olhando pra mim.

– Não, não vou aguentar isso! – respondi convicto a mim mesmo.

Passei a focar num plano B. Levantei e percorri o ambiente com o olhar ansioso. Parecia lotado. De repente eu vi, bem perto de mim, exatamente na frente da minha mulher, um oásis ainda não ocupado. Não acreditei! Será que tem um anão sentado? Estiquei o pescoço para conferir e realmente estava vazio.

Apelei à providência divina. Fiz orações até em aramaico, para uma comunicação mais direta, sem necessidade de tradução simultânea. Deliberei que, assim que fosse dado o aviso sobre o fim do embarque, eu voaria para aquele lugar perfeito, próximo da família e longe daquela ameaça atômica.

Mais um tempo e executei meu plano. Quando o comandante pronunciou “embarque”, saltei com uma agilidade de gato (não parisiense, por favor) e antes do comandante dizer “encerrado” eu já estava sentado! Maravilha!

Mas a alegria durou pouco.

O passageiro que estava no assento da janela, olhou-me calmamente. Era um italiano voltando para casa e nossa conversa foi interessante, pois cada um falava na sua própria língua, mas nos entendemos perfeitamente. Uma Babel aérea.

– Este lugar é seu? – perguntou ele em tom calmo e baixo.

– Não. É seu? – respondi, já sentindo acelerar o batimento cardíaco.

– Não é meu nem seu. Está vazio. E eu gostaria de viajar assim.

– Estava vazio! – rebati com emoção, acrescentando mais alguns batimentos. – Próximo ao meu lugar tem uma pessoa doente, gripada e, portanto, me mudei para cá. Posso sentar em qualquer lugar vazio.

– Não senhor. Tem que sentar no lugar que comprou. – devolveu ele, no mesmo tom calmo e baixo, o que multiplicou minha irritação.

– Não saio daqui! – esbravejei.

Nesta altura, eu devia estar com uns 200 batimentos por minuto, pronto para um round de UFC com o tal italiano. O avião se movimentou e durante a decolagem mantivemos silêncio, pois todo mundo sabe que aquela hora é questão de vida ou morte.  Eu estava disposto a morrer por aquele lugar!

Lembrei que, numa ocasião, ao final de uma reunião polêmica, um amigo estrangeiro me disse que nós, latinos, somos muito passionais. Se alguém discorda ou se opõe à alguma ideia ou posição nossa, já o tratamos como inimigo. Transformamos diversidade em adversidade! Os europeus não: aceitam muito mais as opiniões alheias, conseguindo ter boas relações e até amizade, mesmo com quem discorda frontalmente. Têm suas convicções, claro, mas não um apego demasiado aos seus pontos de vista, como os latinos. Pelo menos neste caso, meu amigo parecia ter razão: eu exaltado como um revolucionário e o italiano sereno como um sacerdote.

Quando o avião estabilizou, o italiano esperou passar uma aeromoça e perguntou:

– Por favor, este lugar não é deste senhor. Ele pode sentar aqui?

Me deu vontade de dar um soco nele.

– Ao lado do meu lugar tem uma pessoa gripada e pode me contagiar. – justifiquei.

– Vou perguntar ao comandante. – disse ela, não querendo envolver-se na controvérsia.

Fiquei bufando, esperando-a voltar. Enquanto isso emiti ondas rancorosas para o italiano! Compra um lugar e quer dois? Palhaçada! Viagem complicada, começou mal. Vontade de voltar para casa…

Demorou uns minutos:

– Falei com o comandante. Dentro da mesma classe o passageiro pode sentar em qualquer lugar que esteja vago. Este senhor pode ficar aí.

Tive vontade de comemorar como se fosse um gol do Brasil contra a Itália numa final de Copa do Mundo. Meu impulso era virar para ele com ar de vitória e dizer:

– Viu? Quebrou a cara! Si spezzò la faccia!

Mas a reação dele me desmontou. Mesmo tendo perdido o embate, manteve aquele desconcertante tom calmo e com a mesma voz branda disse:

– Ah, pode? Então está bem. Obrigado!

Sorriu pra mim como a desculpar-se, puxou a coberta e mergulhou num sono de bebê, enquanto eu ainda fumegava.

Passei a noite acordado, destilando a raiva latina.

Ele dormiu até o café da manhã. De plástico.

Antonio Carlos Sarmento

45 comentários em “CONFLITO AÉREO”

  1. Bom dia cunhado. Muito boa consegui visualizar a cena e o vizinho sujismundo. Adorei. Bom domingo e obrigada por me divertir já pela manhã. Bjos

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  2. Bom dia meu amigo, como sempre curtindo sua ótima crônica aliás sobre ela, já passei por situações parecidas e depois disso, faço poupança o ano inteiro e só vou de executiva em 10 parcelas. Parabéns e Um excelente domingo.

    Enviado do meu iPhone

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  3. Querido Antonio Carlos, muitas saudades !!!

    Adorei sua coluna, Realmente tem pitacos de humor e ironia.

    Parabéns, meu escritor, pela beleza e clareza da sua ótima redação !!!

    Carlos Vieira Reis

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  4. Muito bom acordar aos domingos e ter um ótimo texto para começar bem o dia.
    Muito bom!
    Dá para visualizar bem a cena e descrição do enólogo está perfeita. Conseguimos identificar cada detalhe.
    Parabéns!

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  5. Prezado Antônio Carlos, muito bom o conto. Já tive a oportunidade de viajar na poltrona do meio com um jogador de basquete na cadeira do corredor. Ele dormiu grande parte do voo com as pernas dobradas atingindo todo o encosto da poltrona da frente!
    Abraços,
    Hélio Lisboa Mesquita

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  6. Bom dia meu amigo, interessante sua narração descritiva, pude ver a cena e as expressões faciais dos personagens.
    Vamos aguardar, agora a publicação do seu livro de crônicas…..

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  7. Cau
    Que cilada!!!!
    Acho mesmo incrível o desconforto da classe econômica mas sempre esqueço quando chego ao destino…a viagem
    compensa!!!
    Você tem a magia de descrever tão bem que me senti à bordo!!!!
    Xô italiano implicante…😍

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      1. Meu muito querido amigo Antonio Carlos, , senti o cheiro azedo do mexicano. Que horror! Parabéns pela inteligente narrativa. Abraços

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      2. Me identifiquei! Sempre comento que acho um desrespeito a forma como somos tratados num aviao. Apertado pra sentar, apertado pra comer, apertado pra acessar o banheiro (depois do constrangimento de acordar alguém, ainda temos que esperar o carrinho da comida acabar de servir todos), apertado pra escovar dentes, enfim… é disparado o modal mais perrengue de todos!

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  8. Que humor!! Como é bom ler e visualizar as cenas e os personagens descritos. Parabéns pelo belo texto, primo!!!! Bjs

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  9. Querido cunhado, me identifiquei muito com vc , sentar no meio é tudo de pior. Quanto à sua reação com o italiano, também sou assim, mesmo ganhando o embate, vai me incomodar e tirar o sono . Ainda bem que tudo passa ! Me diverti com a leitura, ótima!!! Bjks

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  10. A crônica é ótima ,e tão bem escrita , que foi a viagem mais cansativa que eu poderia fazer ….

    Valeu !

    Por favor , não escreva nada sobre uma viagem de BRT.
    Aí é a morte !

    Bjs

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  11. Meu cronista preferido
    O domingo já me encontra na expectativa da leitura de seus textos.
    Antes que Adauto possa ler, eu já contei todos os detalhes para ele.
    É assim sempre!!
    Pela empatia que desperta, são sempre esperados.
    Esse surpreendeu – uma pessoa tão direta para ser desagradável e tão resiliente com a negativa.
    Gostoso de ler, como sempre.
    Só um detalhe nao convenceu : duvido que você esbraveje ou que destile raiva…é da paz !
    Ate domingo!!

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    1. Querida Prima,
      Seus generosos comentários é que já são aguardados ansiosamente. Fico feliz que tenha tido prazer na leitura e ainda envolveu o saxofonista Adauto!
      Um carinhoso abraço para vocês! E até domingo!

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  12. Olá Antonio Carlos!
    Crônica com toque de humor, que penso ser uma realidade diária. Parabéns pela forma criativa de narrar.
    Abraços.
    Newton

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  13. Muito interessante o sua viagem.Muita confusão na visita fora do País.Alegria mais uma vez.Vislumbro um ótimo escritor.

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  14. Cacau,
    Maravilhoso texto.
    Já passei por várias situações dessas e pude ver como nós latinos somos realmente calóricos e emoções puras.
    Obrigado por compartilhar.
    Parabéns!!

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  15. Meu amigão muito querido! Adorei e fiquei imaginando a criatura e depois o Italiano, ninguém merece !!! Quando vai ser o lançamento do livro?Parabéns + uma vez…

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  16. hahahahha sério, posso ler e escutar essa estória várias vezes que vou rir sempre. Imagino o perrengue. Aposto que fez cara de Mamma Jamma pra ele…hahahahaha
    Pelo menos Atlanta-Rio compensou.
    Abs e excelente crônica.

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