BEM PASSADO – Parte II

Após a entrada, seguimos por mais uns 3 minutos e avistamos a casa, exibindo bem na frente um símbolo do século passado: um autêntico carro de bois. Todo de madeira, sem pregos nem parafusos. Não tinha finalidade decorativa, embora muito bonito. Era simplesmente o principal meio de locomoção da fazenda, que todos os dias transportava pessoas e cargas. Os bois já estavam no pasto, pois eram umas 5 da tarde e, para os moradores, o dia já ia encerrando.

A casa era caiada de branco, com janelas azuis, toda rodeada por uma convidativa varanda e coberta por um telhado de 4 águas, de telhas de barro, que proporcionava uma temperatura menos elevada em seu interior. Mas o que mais me surpreendeu foi o fato de que não havia luz elétrica nem água encanada… Para alguém vindo de uma metrópole era difícil imaginar como faziam para viver sem estes recursos.

Fomos recebidos pela família, todos perfilados na varanda, como se fosse haver uma revista militar. O casal e 10 filhos de idades variadas. O dono da casa era um senhor de uns 50 anos, forte, de pele curtida pelo sol, com ar respeitável e um olhar penetrante. Acolheu-nos com um sorriso e fez as devidas apresentações.

Meu sonho era tomar um banho para remover aquela segunda pele. Para tal, precisei munir-me de um latão, ir até o poço nos fundos da casa e, mesmo exausto, bombear água manualmente para o recipiente. Com muito esforço enchi o latão até a borda, quase derramando. E para tirá-lo do chão? Com certa vergonha, olhando para os lados para ter certeza de que não era observado, joguei fora quase um terço da água para aliviar o peso e parti para o banheiro. Lá já havia uma caneca de alça, substituta do chuveiro. Mesmo assim, o frescor daquela água e a limpeza do pó e suor tornaram aquele banho um dos mais gostosos da minha vida.

Veio a noite e foram acendidos lampiões à querosene no interior da casa, para que fosse servida a refeição. A luz atraiu muitos insetos. Dava a impressão que metralhadoras disparavam pelas portas e janelas mariposas, besouros, bichinhos da luz, marimbondos, lavadeiras, cigarras e outros bichos voadores que eu nunca havia visto. Sem falar nos mosquitos, atléticos, de porte avantajado e com apetite maior que o nosso. Fiquei com a sensação de que tinham um pacto com os da casa e só sugavam visitantes.

Serviram uma espécie de lanche reforçado, com leite, queijo, pão, manteiga, algumas porções de carne, aipim cozido e bananas. Faminto, comi de tudo, algumas vezes. Coisas deliciosas. O gosto do leite era outro: descobri que aquele líquido branco consumido no Rio de Janeiro só tinha rótulo e aparência de leite. Pão feito em casa, no forno à lenha. Queijo caseiro, manteiga batida ali mesmo. O aipim derretia na boca. Enfim, uma refeição magnífica. Como se comia bem no século dezenove!

Dali passamos todos à varanda. Ao invés da televisão, o programa era olhar as estrelas, ouvir os sons de grilos e sapos, sentir o toque suave da agradável brisa da noite e desfrutar do cheiro do mato. Ali se conversava um pouco, contavam-se casos, algumas piadas e, antes das oito horas, todos se recolhiam para dormir. Em noites posteriores, alguns vizinhos vinham participar, trazendo um violão para a cantoria sertaneja. Aí virava uma festa. Mas que sempre terminava cedo, e descobri o porquê na manhã seguinte.

Um dos rapazes me encaminhou para dormir. Era um quarto enorme, comprido, com vários pilares de madeira ao longo das duas paredes laterais. Não havia camas. As redes atravessavam o quarto, fixadas em pilares alternados, como se fossem bandeirinhas de festa de São João, formando vários “Vs”. Este era o quarto dos homens. O das mulheres e o do casal eu não entrei, por respeito, durante o tempo em que lá estive. O rapaz apontou aquela que seria a minha rede e orientou:

– Sacode a rede antes de deitar, pois pode ter morcego agarrado nela.

Aquilo me deixou tão feliz! Agradeci muito… De fato, na terceira noite, ao sacudir a rede, um rato de asas decolou dando rasante na minha cabeça. A casa não tinha forro e os morcegos passeavam pelo teto a noite toda. Aquele bater de asas, não sei porque, não me agradava… Então eu fazia uma espécie de cabana fechada, puxando as varandas laterais da rede uma sobre a outra. O calor aumentava um pouco, mas pelo menos eu ficava livre de possíveis ataques aéreos.

Fiquei um bom tempo acordado, tenso com os morcegos, desconfortável com a rede e respirando mal com o abafamento. Mas, vencido pelas horas de viagem, acabei por dormir profundamente.

Mal o sol despontou, ao primeiro canto do galo, todos despertaram. O sol ainda raiava, mas a casa já tinha o maior movimento. Tinham mesmo que dormir cedo para poder acordar àquela hora. Logo serviram o café da manhã: arroz, feijão, carne-seca e abóbora. E generosos copos de leite. Só os homens faziam a refeição, enquanto as mulheres freneticamente preparavam tudo, mexiam as panelas, serviam os pratos, recolhiam e lavavam a louça.

Em pouco tempo o carro de bois estava na porta. Era preciso sair cedo, antes do sol forte. Subiram todos, com enxadas, foices e outras ferramentas necessárias ao pesado trabalho no campo. O carro partiu e nós, equipe do século vinte, permanecemos ali, na varanda, observando o lento deslocamento dos bois, até não podermos mais ouvir aqueles rangidos típicos.

Lá pelas 10 horas o carro estava de volta, vazio. Vinha buscar um lanche para os trabalhadores: café, sanduíches e frutas. E às 15 horas estavam todos de volta, cansados da dura jornada. Assim era a rotina da fazenda. Em termos de refeições, percebi que havia uma perfeita inversão entre almoço e café da manhã, e no jantar, se fazia um “enterro dos ossos”, pois não havia geladeira para conservar os alimentos.

As primeiras 24 horas me deixaram assombrado. A vida ali corria num outro tempo. Para mim, era tudo novo naquele mundo antigo!

Na segunda noite, conversando na varanda, perguntei ao dono da casa:

– Então o senhor tem 10 filhos? Que maravilha!

– Pois é. Eram 11, mas perdi um. – respondeu em tom baixo e inconformado.

Arrependi-me tremendamente da pergunta. Ficou um silêncio constrangedor. Tive a impressão que os grilos e sapos calaram-se por um minuto, a brisa parou e as estrelas sumiram no céu…

Eu não sabia o que dizer. Fiquei imaginando o que poderia ter acontecido e achei que teria sido uma doença. Naquele sertão, sem muitos recursos, era o mais provável. Mas achei preferível nem saber. Melhor se fossemos dormir ainda mais cedo, ele com a sua dor e eu com o meu arrependimento.  No momento em que pensava isto, ele quebrou o silêncio:

– Caiu do carro de bois e a roda…

Não conseguiu terminar a frase.

Meu Deus! Fui dormir. Só no outro dia soube que o menino tinha 5 anos e o fato havia ocorrido há menos de um ano. Ferida ainda muito aberta e que nunca iria se fechar. Aquela dor no sertão da Bahia, vivendo no século dezenove, era universal e atemporal. Talvez a maior dor presente na história da humanidade.

Fiquei um bom tempo acordado, por um motivo que tornou totalmente sem importância os morcegos, o desconforto da rede e o abafamento, tão valorizados na noite anterior. Rezei por aquela família até dormir.

(continua – última parte)

 

Antonio Carlos Sarmento

19 comentários em “BEM PASSADO – Parte II”

    1. Minha irmã,
      Experiência única e muito rica mesmo.
      Obrigado por acompanhar, mesmo estando no exterior.
      Domingo publico a parte final. Não pretendo usar muito esta possibilidade de dividir em partes, mas neste caso não vi outra alternativa, pois ficaria um pouco longo…
      Beijos

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  1. Sarmento essa crônica é o depoimento de algo vivido por voce? Que belo texto! Humano sensivel mas leve como tudo o que voce escreve. Abraços, bom domingo e que Deus te abençoe.

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    1. Caro Luigi,
      É algo realmente vivido. E tão intenso e marcante que até hoje permanece em minha memória.
      Eu fico pensando, Luigi, como seria voltar lá hoje. Talvez ainda estejam no século dezenove…
      Muitíssimo obrigado por seus comentários, sempre muito bem-vindos.
      Grande abraço e Deus abençoe você e toda a sua família!!!
      Até domingo, com o fim da saga.

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  2. É meu amigo, a vida no campo é outro mundo completamente diferente. Atualmente está um pouco melhor para poucos, com o uso da tecnologia.
    Estou ansioso pelo final da crônica.
    Abraços.

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  3. Uma descriçao fiel da vida na fazenda, há 50 anos.
    Nessa epoca eu tambem ia , todos os domingos, para a ” roça”. E gostava muito : café com aipim , sanfona, lamparina, gente simples… era tratada como uma princesa, porque era “estudada”.
    Infelizmente, hoje o quadro não é o mesmo. Na ultima vez que estive numa fazenda bonita, no interior de nossas montanhas, o que percebi foram dramas devidos ao alcoolismo, às drogas e a violência. Mas ,para combinar com o espírito leve e saudosista do cronista , digo que o momento do cafezinho ainda permanece, com queijos deliciosos e bolo de fubá .
    Seus textos sempre esperados, sempre bem- vindos!!!
    Sabe como o pessoal da fazenda se despedia?
    Inté !!!

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    1. Caro amigo Armando,
      Bom saber que está lendo e acompanhando aí de Portugal.
      No próximo domingo encerra esta aventura, com a parte III.
      Espero que estejam todos bem e gostando de viver em um novo país.
      Deus os proteja e abençoe!!
      Abraços saudosos.

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  4. Meu Ilustre Amigo, Irmão e Escritor, Antonio Carlos.
    Gostei muito do texto, parabéns!
    Uma história que descreve com detalhes a rotina de uma família em uma fazenda no sertão da Bahia.
    Sentir o toque suave da agradável brisa da noite e desfrutar do cheiro do mato, faz com que esse jovem escritor recarregue as energias do seu cérebro na busca de novos episódios e novas histórias, para o nosso deleite.
    Que o nosso Maravilhoso Deus continue a iluminar as suas criações literárias.
    Um beijo e um abraço fraterno, para vc e todos da família.
    Oslúzio Fonseca

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    1. Meu querido amigo e irmão Osluzio,
      Sua generosidade não tem limites.
      Fico muito feliz que esteja apreciando os textos.
      Seu comentário me anima muito a continuar escrevendo!
      No próximo domingo, a última parte da história.
      Abraços fraternos e beijos nesta linda família!!!

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