INTERVENÇÃO CIRÚRGICA

Trabalhar em hospital exige amor antes do labor. Ali as pessoas estão fragilizadas, carentes, ansiosas e muitas em grande sofrimento. Precisam de um tratamento amoroso, quase tanto quanto de medicamentos.

Exatamente esta era a virtude de Josefa. Vinda do interior de Pernambuco, trabalhava naquele hospital há mais de 10 anos. Espírito alegre, sempre pronta a ajudar, por onde passava distribuía gentileza, palavras doces e sorrisos. Era uma figura miúda, mas quando chegava enchia o ambiente. Baixinha, magra, cabelos curtos, olhos vivos, muito bem arrumada e com roupas impecavelmente limpas, irradiava simpatia e alegria. Tinha sempre um batonzinho colorindo os lábios: parecia servir para sublinhar o sorriso que não lhe saía do rosto.

A trajetória ali foi rápida: faxineira, um ano depois, camareira e mais dois anos, auxiliar de enfermagem, com o curso proporcionado pelo próprio hospital. Era um caso de ascensão profissional muito mais pelas qualidades humanas que técnicas.

Josefa veio do Nordeste para São Paulo sozinha e assim permanecia. Pais e irmãos ficaram lá e, todo mês, boa parte de seus ganhos viajavam para alimentar aquela família que convivia com a escassez do sertão nordestino.

Numa triste terça-feira chuvosa, um tumulto formou-se em frente ao hospital: Josefa atravessava a rua, voltando do almoço, quando foi atropelada. Caso grave. Grave não, gravíssimo. No choque, seu frágil corpo foi parar embaixo do automóvel e os bombeiros levaram mais de meia hora para retirá-la das ferragens. Deu entrada no próprio hospital, ainda viva, mas em estado crítico.

Médicos e funcionários corriam para saber do acontecido e disponibilizavam-se para socorrer Josefa. Uma consternação geral.

O médico responsável pelo atendimento foi chamado à Diretoria:

– Qual a situação de saúde dela? – perguntou o Diretor-Geral.

– Ainda estamos apurando a real extensão dos ferimentos, mas há muitas fraturas e hemorragias. – respondeu o médico.

– Há chance de sobrevivência?

– Sim. Pouca… – vaticinou o médico.

– Vamos fazer tudo que for possível, empregar todos os recursos. O hospital assume os custos, sem limitações. – determinou o Diretor.

– Perfeitamente. Pode contar conosco. Se me permite, seria bom ter alguém da família aqui o quanto antes.

– Vamos providenciar isso. Pode voltar ao atendimento e me mantenha informado.

Chamou a secretária:

– Entre em contato com a família da Josefa. Diga que ela sofreu um acidente e precisamos de alguém da família aqui. O mais rápido possível. O hospital assume todas as despesas de viagem do familiar.

Levou ainda dois dias para a chegada de Cícero, irmão mais velho de Josefa. Sujeito tímido, assombrado com a cidade grande e completamente desajustado ao ambiente hospitalar.

Eram quase oito horas da noite quando chegou. Logo o levaram até a irmã, que estava em coma desde o acidente. Ao vê-la cheia de curativos, aparelhos, monitoramentos, luzes piscando, gráficos aparecendo em telas, sons e apitos, sua perplexidade aumentou. Não sabendo o que dizer, mantinha-se calado, mas os olhos esbugalhados denunciavam sua angústia.

Foi levado ao Diretor-Geral:

– Josefa está em estado grave, devido ao atropelamento. Mas estamos otimistas, pois apresenta sinais de recuperação e temos a expectativa de que saia do coma a qualquer momento. Estamos fazendo tudo que é possível para salvar a vida dela, mas não temos uma previsão. É importante alguém da família estar aqui pelo tempo que for necessário, acompanhando a situação. Você pode ficar?

– Fico, sim senhor. – disse Cícero, ainda muito nervoso, boca seca.

– Nosso hospital não permite acompanhantes, mas vou abrir uma exceção e mandar colocar uma maca perto dela para você dormir esta noite. Amanhã organizamos melhor. Está bem assim?

– Está, sim senhor.

Cícero ainda foi levado para tomar um banho e fazer um lanche. Depois se deitou na maca ao lado da irmã. Sua cabeça parecia um rádio mudando de estação a cada segundo: não conseguia sintonizar o pensamento. Faltava a ele o senso de realidade. Tudo aquilo parecia um sonho, uma fantasia, ou melhor, uma alucinação.

O corpo, cansado da longa viagem, não encontrava repouso, pois a mente empreendia outras viagens, mais difíceis e incompreensíveis. Achou que não conseguiria conciliar o sono. Mas ao fim de um longo tempo acabou por dormir, derrotado pela exaustão.

Acordou perto das cinco da manhã com o movimento de sua maca ao longo de um corredor. Surpreendeu-se! Estava sendo levado por um enfermeiro e só via o passar das luzes no teto.

– O que houve? – indagou Cícero, olhando para trás.

– Fique tranquilo. Vou te preparar para a cirurgia.

– Que isso? Eu não vou fazer cirurgia! – replicou Cícero, já levantando o tronco.

– Calma. – disse o enfermeiro, contendo o movimento de Cícero e voltando-o para a posição deitada.

– Calma nada! – replicou, debatendo-se para sair.

– Não fique nervoso.  – reagiu o enfermeiro, já aplicando um sedativo em spray nasal.

Cícero apagou.

Foi então levado para uma sala, onde teve toda a cabeça raspada. A orientação do enfermeiro era realizar a tricotomia como preparação para uma cirurgia de cérebro! A desventura daquela família estava prestes a ser multiplicada…

Por obra de Deus, no momento em que finalizava o procedimento, com Cícero ainda sedado, o enfermeiro notou a ausência da pulseira identificadora. Apavorou-se. Como é possível um paciente internado sem pulseira? Falha grave. Alguém teria que ser responsabilizado. Mas logo pensou que também havia errado, pois a pulseira deveria ter sido conferida antes de tudo. E agora?

Temia perder o emprego. Estava nervoso com esta possibilidade. Não havendo como reparar o erro, só lhe restava omiti-lo. Resolveu retornar Cícero ao local de origem, torcendo para que ninguém percebesse o ocorrido. Olhou pelo corredor: tudo calmo. Era cedo e ainda havia tempo de localizar o paciente certo.

Seguiu cautelosamente com a maca no percurso de volta, sem despertar a atenção de ninguém. Colocou Cícero no exato local onde estava antes do equívoco e procurou o paciente certo, logo identificado bem ali perto. Recomeçou, agora de forma correta, a sua tarefa.

Com o efeito da sedação somado ao cansaço, Cícero dormiu ainda algumas horas. Foi acordado por um médico, que balançava suavemente seu braço esquerdo. Acordou sobressaltado e deu um pulo:

– E a cirurgia? Que cirurgia? Não quero cirurgia!

– Calma. Não tem nada de cirurgia. Fica tranquilo. – disse o médico, segurando a sua mão com gentileza de modo a tranquilizá-lo.

Ainda deitado, Cícero percorreu mentalmente todo o corpo: pés, pernas, tronco, braços e cabeça. Nada sentia, tudo bem. Foi se acalmando e sua respiração voltando ao normal. O senso de irrealidade estava ainda mais aumentado. Sentia-se em outro mundo: um estranho, vivendo situações estranhas, num ambiente estranho, de forma estranha.

O médico então, sorrindo, deu a notícia tão esperada: Josefa havia saído do coma! Ainda inspirava cuidados, mas estava lúcida e iria recuperar-se.

Cícero recebeu a notícia como alguém que está se afogando recebe uma boia: encontrou naquela hora seu primeiro vínculo com o mundo nos últimos três dias. Lágrimas de alegria encharcaram seus olhos. Instintivamente levou as duas mãos à cabeça. Mais um susto! A cabeça lisa. Que estranho! Não sabia explicar e tinha receio de perguntar: calou-se. O importante é que a irmã estava viva!

Levantou-se careca e feliz para ver Josefa.

Dois dias depois voltou para o sertão nordestino, deixando a irmã em plena recuperação, naquela vida louca de São Paulo. Por ele, nunca mais voltaria ali.

Nunca entendeu os acontecimentos. Só tinha uma certeza: para salvar a irmã teve que deixar lá seus cabelos…

Antonio Carlos Sarmento

27 comentários em “INTERVENÇÃO CIRÚRGICA”

  1. Ensinamentos que se tornam divertidos, quando tudo sai bem no final .
    Porém , me veio uma reflexão , na verdade o que salvou a Josefa, foi além da competência dos médicos e com a generosidade e a compaixão do Diretor do hospital , com certeza , foi o amor que ela sempre transmitiu a todos e que veio como um dom de Deus que fez com que ela fosse vitoriosa em seus objetivos profissionais e também humanos.
    O amor que ela sempre transmitiu fez toda a diferença para quem participava daquele atendimento, quem dá amor recebe amor .
    Sem julgamentos, mas será que se fosse um acidente similar os procedimentos seriam o mesmo?
    Será que teria dado tempo , pelo caso sendo gravíssimo e o atendimento seria mais rápido e tão atencioso?
    O amor seria o mesmo ?

    E como sempre Deus é muito bom e sabe de tudo , embora o tremendo erro do enfermeiro com o irmão, e que felizmente não aconteceu nada mais grave, e com certeza foi um grande aprendizado para o enfermeiro que poderia cometer esse erro em outro paciente e acontecer o pior.

    E por último, Deus é tão bom , que o irmão veio lá do interior devia estar cheio de piolhos e até isso foi resolvido.

    Obrigado Cacau , por todos os Domingo de reflexão e aprendizado com duas ótimas crônicas.

    E por último , Deus é tão bom ,

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  2. A descrição dos acontecimentos nos leva a fazer parte do contexto… ainda bem que o irmão foi “salvo pelo gongo” e ao final, as coisas vão se ajeitando…Amei! Bjs

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  3. Meu Grande Amigo e Irmão Antonio Carlos.
    Excelente crônica! De onde o amigo tira tanta criação maravilhosa ?
    O seu universo é impressionante, éle é muito mais grandioso de estrelas iluminadas do que a superfície que a conhecemos. Parabéns!
    Quanto ao texto, gostei muito. A descrição e conceito de trabalhador em atividade hospitalar só mesmo uma pessoa humanizada para detectar essa particularidade que ocorre no dia a dia de quem trabalha com a vida humana.
    A mulher nordestina Sra. Josefa, com o sorriso, a alegria diária, a simplicidade no trato da relação de trabalho não conquistou apenas o coração do Diretor e amigos em seu local de trabalho, conquistou também o meu carinho, e o mais importante, o Coração do Nosso Maravilhoso Deus Pai, que lhe restituiu a vida e deu ao seu irmão Cicero, alegria de retornar sem cirurgia para a sua casa.
    “A VIDA E OS BATIMENTOS DO NOSSO CORAÇÃO NOS PERMITIRÁ VER A DEUS E NOS PERMITE DESDE JÁ VER TODAS AS COISAS SEGUNDO A SUA VONTADE”.
    Um beijo eu seu coração e na querida família composta de Artistas e Escritores, os nossos parabéns!
    Oslúzio, Nazaré, Lyria e Alyne.

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  4. Prazer em conhecer Josefa: risonha, espírito alegre, doce, enchia o ambiente com sua meiguice, sua bondade e com sua vontade de ajudar.
    Acho que era um anjo.
    As pessoas ao seu redor se tornaram mais sensíveis , o ambiente mais feliz, a aflição amenizada, o doente consolado…
    Por obra de Deus , existem pessoas assim.
    Por obra de Deus, existem anjos.
    Obrigada pela leitura, querido primo.

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  5. Parabens.Como sempre espetacular
    Estemos em Serrambi em Pernambuco Toda família curtium muito a história da Josefa e outras.
    Amanhã voltamos para Recife, praia da Boa Viagem.

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  6. Apesar do quadro triste com os dois irmãos, a leitura é agradável e divertida. Me lembrou meu Pernambuco querido e o nordeste, essa região maravilhosa do Brasil.
    Eu estava torcendo pela Josefa, criatura de Deus, que felizmente estava se recuperando.Fiquei preocupado com o Cícero mas o enfermeiro corrigiu a tempo.
    Valeu meu amigo!
    Abraços.

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  7. Estou refletindo. Acho que pessoas humildes como Josefa e Cícero se salvam num mundo onde pessoas mais experientes (enfermeiro) se ocultam de uma verdade por temer represálias. Fica a clareza e a nossa vontade por um mundo melhor, sabendo que existe mais pessoas com bom coração, independente da classe social.Vide o exemplo do diretor geral. O importante é que todos se salvaram. Fica uma lição também: Precisamos trabalhar com amor sim, mas sem esquecer das responsabilidades que a profissão exige.
    Excelente crônica.
    Abraços

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