ARQUIPÉLAGO

Muito ouvi falar do arquipélago dos Abrolhos. A vontade de conhecer estava lá escondida no estoque de viagens a fazer que, imagino, todo mundo tem. Aquela que fica nos rondando, como uma nuvenzinha querendo chover, até que chega o dia da precipitação. Estive lá no início da década de 1990.

Como base para o pretendido passeio, optei pela cidade de Alcobaça, no litoral sul da Bahia. Não sei bem as razões de ter escolhido esta cidade na ocasião, mas o fato é que procurei um hotel onde minha mulher e minha filha, ainda pequena, pudessem passar o dia enquanto eu fazia o passeio, pois quase duas horas de lancha e depois mergulho não era programa para elas.

O hotel era em formato de “U”, com recepção e serviços na base, ao centro uma piscina, e nas duas laterais os quartos enfileirados, completando o desenho. Uma concepção interessante e funcional.

Logo na chegada, chamou-me atenção o fato de que não havia muro… O hotel era praticamente na rua! A gente vinha da estrada de terra e estacionava como se fosse uma continuidade, sem uma divisão ou qualquer delimitação. Achei estranho. Para alguém acostumado aos padrões da Secretaria de Insegurança Pública do Rio de Janeiro, parecia uma vitrine sem vidro, um portão sem cadeado, um cofre sem segredo. Busquei convencer-me de que era assim mesmo naquele interior. Mas ficou acesa em mim uma pequena chama de preocupação.

Aparentemente havia poucos hóspedes. No estacionamento contei 5 carros. Fomos instalados mais ou menos no meio de uma das pernas do “U”: o quarto era espaçoso e três camas separadas nos aguardavam. Combinamos de jantar bem cedo e dormir em seguida para recuperar o cansaço da viagem. No dia seguinte teríamos atividades logo nas primeiras horas, devido à programação do passeio. E assim fizemos. Fomos dormir com os passarinhos.

Noite tranquila, sono profundo. Dormíamos deliciosamente naquele silêncio e paz de uma cidade do interior. Imagino que, àquela altura, minhas ondas cerebrais não passassem de simples marolinhas.

Subitamente, no meio da madrugada, alguém bateu à porta. Eu escrevi bateu, mas o correto seria esmurrou. Foram umas 4 pancadas, com vontade, quase derrubando a porta. Parecia que um bate-estacas estava em atividade dentro do quarto. Imaginem acordar assim em terra desconhecida. Um sobressalto! Só pode ser assalto! A gente sai do Rio de Janeiro, mas a cabeça permanece carioca. Meu coração deve ter chegado a uns 300 batimentos por minuto. Aquela chama de preocupação da chegada virou instantaneamente um grande incêndio!

Primeiro pensei em reagir: fiz mentalmente um inventário das minhas armas de defesa. A mais letal que eu possuía era um saca-rolhas que sempre levo para uma eventualidade enológica. Não dava para fazer frente a nenhuma agressão com aquilo. Muito menos com a tesourinha de unhas. E aí encerrava-se meu arsenal. Sem saber o que fazer, optei por ficar calado e aguardar.

Passados uns 20 segundos, nova pancadaria! Meu Deus!!!

Minha mulher acordou:

– Que isso? – cochichou assustada.

– Não sei…

– Estão batendo.

– Eu sei.

– Vamos fazer o que?

– Não sei.

– Estou com medo.

– Eu sei.

Percebendo a improdutividade do diálogo lacônico e repetitivo, ela se calou.

Mais 3 pancadas retumbantes. Lembrei do brado de um povo heróico do nosso hino nacional. E aí tomei uma decisão nada heróica: não vou responder, nem abrir a porta. Se quiserem entrar, vão ter que derrubar. Quem sabe desistem, achando que não tem ninguém… Localizei mentalmente minhas armas: o saca-rolhas na bolsa de mão e a tesourinha na frasqueira. Não sei porque não me senti nada seguro com estes recursos…

Em paralelo, passei a ouvir vozes do lado de fora, na área da piscina. Um grande falatório. A fértil imaginação e o estado de pânico me levavam a crer que os bandidos estavam reunindo todos os assaltados na área da piscina, para controlar os reféns!!! Se alguém tentasse reagir seria imediatamente afogado, sei lá. Eu rezava para não ter que ir me juntar a eles, ainda mais com minha mulher e minha filha. Apelei a todos os santos mais chegados e depois até para aqueles com quem não tinha a menor intimidade: educadamente me apresentava primeiro e depois fazia o pedido, apelando para a bondade infinita.

Mesmo com as minhas orações fervorosas, ainda irrompeu uma quarta sessão de bordoadas na pobre porta. A esta altura minhas batidas do coração devem ter passado de 300 por minuto para 300 por segundo… Desespero total!!! Uma verdadeira tortura.

Permaneci deitado eternamente em berço esplêndido, ao som do mar e daquelas pancadas tenebrosas. Aguardava apreensivo, mas firme na minha decisão de silenciar.

Após esta última sessão, não obstante o falatório externo, finalmente ouvi passos e alguém se afastando da porta. Parei até de respirar para manter o silêncio e a impressão de que meu quarto estava vazio. Que expectativa!

Voltei a respirar, mas o estado de pânico fazia tremer até o ar expelido. Cada segundo sem aquelas pancadas na porta fortalecia minha esperança de ter sido esquecido pelos bandidos, assaltantes, desgraçados, perigosos! Quem disse que no interior não tem bandido?

O tempo foi passando e o falatório também. Alguns minutos depois, o silêncio voltou a reinar. Pensei: devem ter levado o pessoal para a área do estacionamento, provavelmente para saquear os carros.

Aos poucos, fui ficando aliviado e achando que minha estratégia de não responder foi bem-sucedida, livrando-nos daquele assalto. Agora era só permanecer calado e aguardar os acontecimentos. Provavelmente os bandidos saciados com os frutos do roubo iriam embora, libertando os reféns. Logo a polícia seria chamada.

Devagarzinho foi amanhecendo e o sol da liberdade, em raios fúlgidos, começou a brilhar no céu da pátria. Devia ser umas 5 da manhã. Com tudo mais calmo e a sensação de segurança voltando, minha mulher voltou a falar:

– O que terá sido?

– Não sei.

– Mas já foram embora.

– Eu sei.

Resolvemos então tentar dormir mais um pouco e depois procurar saber o que ocorreu. E, bem devagar, o sono que havia fugido pra longe, foi se aproximando e se reconciliando conosco. Dormimos até umas 7:00h.

Saímos do quarto, ainda um pouco apreensivos.

No hotel nenhum sinal de anormalidade. Tudo tranquilo e algumas pessoas calmamente no salão do café da manhã. Aliviado e feliz, olhei para fora e observei que os risonhos lindos campos tinham mais flores, os bosques mais vida e a vida mais amores!

Mas agora restava entender o ocorrido. Por um instante imaginei ter sido apenas um pesadelo. Fui ao gerente do hotel na recepção:

– Fui acordado de madrugada com fortes pancadas na porta. O que houve?

– Ai meu Deus! O senhor também…

– Como assim?

– É que ontem, lá pelas 11 da noite, chegou um grupo de evangélicos em um ônibus fretado. Foram dormir e pediram para ser acordados às 4:30h da manhã para ir a um culto numa cidade aqui perto. O vigia ficou de acordá-los, mas não controlou direito o número dos quartos e acabou batendo na porta de outros hóspedes.

– Batendo não. Ele quase derrubou a porta a socos e pontapés. – exagerei para evidenciar o drama que vivemos.

– Peço mil desculpas.

– Tudo bem. Mas em toda a minha vida, nunca fui convidado para um culto evangélico com tanta ênfase!!!

Ele sorriu sem graça.

Com todo respeito ao Osório Duque Estrada, aprendi naquele dia que, nem sempre, quando se ergue da justiça a clava forte, o filho teu não foge à luta, nem teme a própria morte. É muito relativo…

Antonio Carlos Sarmento

28 comentários em “ARQUIPÉLAGO”

  1. Muito boa, simplesmente, espetacular, mais uma . . . Muito bom dia meu Amigo . . . boas festas, recomendações à Sonia, à Tatiana, ao Gui, ao genro e demais familiares . . .

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  2. Kkkkkkk. Muito bom! Sarmento quero aproveitar para desejar a voce e sua familia um excelente Natal e que Deus os abençoe e aos seus leitores, meus novos companheiros nessa caminhada de leituras.

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    1. Luigi,
      Meu leitor dos mais assíduos em leituras e comentários: agradeço muito seus votos e desejo ao amigo e sua família que a lembrança do nascimento do Nosso Senhor traga paz e harmonia em suas vidas. Um feliz Natal e que 2020 chegue trazendo esperanças e alegrias!
      Obrigado por sua participação aqui no Blog. continue por aqui, ok?
      Um forte abraço!

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  3. Muito boa amigo.
    Estava curioso para o final além de curtir o desenrolar. Muito legal sua ligação com a letra do nosso hino. Sei que você está de cabeça inchada com a derrota do Framengo mas não fez feio. Torci por vocês. Parabéns mais uma vez. Boa viagem de regresso…

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  4. Beleza de leitura!
    Você é um mestre em trocadilhos.
    Isso sempre me chamou a atenção em seus textos. É um dos motivos da leitura ser sempre agradável. Criatividade e inteligência.
    E ainda percebo uma mensagem para a vida: nessa crônica compreendemos que, às vezes, ficamos preocupados, ansiosos e angustiados diante de situações que, na realidade, vão se apresentar simples e inofensivas. É nossa mente nos pregando peças.
    Estamos nas vésperas do Natal.
    Com muito carinho por esse primo cronista inteligente, sensível e de bem com a vida, desejo que um raio vívido de amor e de esperança desça em seu lar , tornando felizes todos os dias de 2020.
    Beijo

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    1. Querida Prima Gena,
      Seu comentário é um primor. A referência ao nosso hino foi genial!!!
      Você tem atributos de escrita que poderiam ser desenvolvidos. Pense nisso…
      Adorei!!
      Aproveito para desejar à você, Adauto, suas meninas e netinhos um Natal de verdade, com a presença do Menino Jesus em seu lar e que em 2020 as alegrias se multipliquem nesta família abençoada!
      Beijos e o nosso carinho!

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  5. Bom dia meu querido amigo! São 05:23 da manhã em Amsterdã, mais recuperado da tristeza do resultado do jogo é bem descansado (dormi as 18h) paro para , como sempre faço para me deliciar com sua belas crônicas. Até de hoje tá sensacional, parabéns. Se não vê-lo até o Natal, uma abençoada noite para vcs. Nosso amado e querido Jesus esteja sempre conosco. Deus te abençoe vocês. É muito bom te-lo como amigo
    Enviado do meu iPhone
    >

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    1. Meu amigo e companheiro desta epopéia,
      Bom que está recuperado e pronto para o regresso ao Rio. Desejo uma excelente viagem.
      Que a lembrança do nascimento de Jesus seja fonte de amor, proteção e alegrias para esta família maravilhosa.
      Ter vocês em nossa vida é um verdadeiro presente!!
      Deos os abençõe!

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  6. Fora o desenrolar da história , inteligentemente montada com o hino nacional.
    A curiosidade até desfecho foi excelente!

    Um filho não foge a luta é o escambau, não é bem assim !

    Parabéns !

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  7. Sensacional o jogo com nosso hino.
    Acho que meu coração bateu no mesmo ritmo do seu aguardando o desfecho do episódio.
    Beijos.

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  8. Maravilhoso! gostei muito da crônica humorística.
    Com absoluta certeza essa crônica/comédia, daria enredo para uma peça teatral aqui no Rio de Janeiro.
    Em tempo:
    Recomendo ao amigo, repassar para o teatro essa bela história real da noite de medo e angustia, que após o amanhecer, transformou-se em muitas gargalhadas para diversão da família no dia seguinte, chegando ao ponto do comentário virar Crônica, para o deleite de uma boa leitura aos amigos. Obrigado!

    Um fraterno abraço, meu querido amigo e irmão Antonio Carlos.

    Oslúzio.

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    1. Queridíssimo amigo Osluzio,
      Mais uma vez agradeço a generosidade de seus comentários.
      Você tem sido um grande incentivador!
      Muito obrigado, meu amigo.
      Deus abençoe o ano de 2020 para você e sua maravilhosa família!

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  9. E o mergulho? Pelo horário que acordou, acabou não indo.
    Também já fui mergulhar em Abrolhos com os filhos.
    Todas as vezes que saímos de nosso cercadinho habitual, parece que o mundo manda todos os males para nos testar.
    A maioria somos nós mesmos, como foi o caso, que fazemos uma tempestade em copo dagua.
    Continue a nos proporcionar bons momentos com suas crônicas.

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    1. Rômulo,
      Fui ao mergulho sim. E achei fantástico, como mergulhar em um aquário gigantesco.
      Até hoje guardo a sensação daquele lugar mágico e quase intocado pelo homem.
      Obrigado pelo comentário, primo!
      Um abração

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