GALO DA MADRUGADA

Ninguém que tenha juízo pode perder uma oportunidade de fazer favor à sogra. Mesmo sabendo que, tão certo quanto a morte, ao primeiro deslize aquele favor vai para os recônditos da memória dela. Não sei por que fenômeno da natureza, muitas sogras têm este amplo espaço, quase um buraco negro, destino certo das gentilezas e agrados dos pobres genros e noras.

Mas, com alguma habilidade, sempre é possível ressuscitar o favor, sutilmente, com um gracejo, um leve comentário, algo que o faça sair das trevas e voltar a ocupar lugar no quase diminuto espaço da gratidão que, também é certo, toda sogra tem, acredite-me o cético leitor.

Portanto, vale a pena investir em qualquer favor à sogra, por menor que seja, por mais sacrifício que exija, pois esta poderá ser sua única moeda de troca para compensar os seus constantes tropeços, enxergados acuradamente por ela com lentes de altíssima precisão.

Esta introdução pode levar o caro leitor a imaginar que tive muitos problemas com minha falecida sogra, o que absolutamente não corresponde à verdade. Se o relacionamento com a minha sogra pudesse ser representado por uma luta de boxe, eu diria que mantivemos sempre uma distância de segurança um do outro, de tal forma que os poucos golpes desferidos nunca atingiram o outro de forma contundente. Um empate técnico, numa luta amistosa, sem agressividade e consequentemente sem grandes emoções: o desafiante ousou pouco e o combatente sênior ocupou o ringue com habilidade, procurando preservar-se e sair ileso. Até hoje encontra-se sub júdice se foi de fato uma luta… Muito mais harmonia que contenda!

Vamos a um caso prático, pois teorizar sobre sogra é tarefa perigosa. Tenho até receio de já ter ido longe demais…

Dona Eugênia morava no segundo pavimento de um prédio antigo, de três andares. A frente possuía janelas para a rua. Na lateral, a apenas dois metros de afastamento, erguia-se um paredão liso do elevado prédio vizinho. Nos fundos havia um recuo um pouco maior, pois coincidia com a parte traseira de outro prédio, de uma rua próxima. A projeção destes afastamentos formava uma área em torno do apartamento térreo, que assim estendia-se até o muro limite do prédio, desfrutando de uma área aberta em forma de “L”. Este imóvel do térreo hoje seria chamado de apartamento tipo casa.

À época em que se deu o fato, as relações entre os vizinhos eram harmoniosas: a área do térreo estava sempre limpa, com muitas plantas e boa aparência. Como era de se esperar em um prédio pequeno, todos se conheciam e as conversas, às vezes, ocorriam até nas janelas desta área interna. Um cuidado especial era com o som de rádios e televisões, pois a propagação do som, devido à configuração do local, era impressionante: até as conversas em tom um pouco mais alto invadiam a casa dos vizinhos.

No dia D da nossa história, um parente vindo do interior trouxe um presente para a vizinha do térreo, que logo se revelou um grande desagrado para todos os demais moradores: um galo! Sim, um galo garnizé. Era um fim de tarde de domingo. Uma vez solto na área, o animalzinho deu alguns passos curtos e em seguida marcou presença entoando um canto rasgado, agudíssimo e muito alto. Uma potência de soprano!

O fato chamou a atenção dos vizinhos, que naquele “primo canto” não poderiam imaginar o que ainda estava por vir. A maioria incomodou-se, mas achou que era algo passageiro, uma breve visita que logo voltaria ao seu habitat, pois não era possível que naquela aridez urbana e sem galinhas, houvesse lugar para aquele bicho esganiçado.

A noite chegou e discretamente, pelas janelas laterais, observava-se o caminhar vacilante do galo, derrapando sobre o piso de cerâmica como um iniciante com patins numa pista de gelo, fazendo o reconhecimento da estranha área. O bicho olhava tudo com olhar de dono, tomava posse do local. Dona Eugênia foi dormir preocupada.

Porém, a preocupação não durou muito. Nem o sono. Às 4 da manhã nosso tenor voltou à ação e cantou de galo! Ela deu um pulo da cama, assustada. Desta vez, no silêncio da madrugada, a potência pareceu multiplicada e levou-a do sono à vigília plena, instantaneamente. Dali até o amanhecer não conseguiu mais dormir. Foram várias serenatas, nada românticas, cantadas na madrugada fazendo vibrar seus tímpanos e fustigando seu fígado.

Levantou zonza e transtornada. Até as 10 da manhã o barítono ainda entoou o canto, sempre o mesmo, mais umas 3 ou 4 vezes. Dona Eugênia não aguentou e chamou a vizinha pela janela lateral:

– A senhora tem um galo aí? – perguntou o óbvio.

– Pois é… Meu primo trouxe ontem, lá da roça.

– Eu sei. Estou ouvindo-o cantar desde que chegou. – respondeu, tentando conter a bílis que inundava seu corpo.

– Galo canta, não é?

– E incomoda. A senhora pretende ficar com este bicho aqui?

– Sim, por um tempo. – respondeu a vizinha, tentando amenizar.

– Quanto tempo?

– Enquanto meu primo faz uma viagem.

– Quanto tempo? – repetiu, impaciente.

– Não sei direito. Ele foi resolver umas coisas e ainda não tem data certa para retornar.

– Ah, mas a senhora devia levar este galo para outro lugar. Aqui não dá certo. Incomoda muito.

– É só no início. Depois a senhora acostuma. Pode acreditar. Vai até gostar. Dá uma sensação de estarmos no interior, no meio rural.

– Não vou me acostumar. Eu prefiro que a senhora o leve para outro lugar.

– Vamos ver se será possível…

Se a conversa fosse por telefone poderia dizer-se que caiu a ligação. E depois uma não ligou mais para a outra. Não era possível conversar sobre o assunto.

Durante o dia o contralto ainda brindou a todos algumas vezes, soltando a voz com vontade. Se é verdade que o canto do galo é para demarcar seu território, aquele queria ser dono do bairro! Ou da cidade inteira!

Aquela semana foi infernal: Dona Eugênia estava com os nervos à flor da pele. No domingo seguinte recebeu a visita da filha e do genro, que logo ficaram sabendo do aborrecimento. No tempo que ali permaneceram foram testemunhas de umas 4 insuportáveis manifestações sonoras do bípede. Alberto vislumbrou ali uma chance de ser útil à sogra e ficou atento ao desenrolar do assunto.

Dona Eugênia estava ensandecida:

– Não posso suportar isso. Vou jogar veneno e silenciar o cantor!

– Não acho bom. A vizinha vai saber que foi a senhora. – argumentou Alberto.

– Problema dela! – desdenhou Dona Eugênia, raivosa.

– Vamos ver uma coisa: mais alguém reclamou? – inquiriu Alberto, buscando um novo rumo.

– Não sei. Mas como eu vou aguentar isso? Será que adianta reclamar na Prefeitura?

– A senhora vai perder tempo e irritar-se ainda mais.

– Você podia ligar para ela, dizer que mora por aqui e reclamar também. Fazer pressão.

Alberto não era louco de negar favor à sogra:

– Me passa o número do telefone dela. Amanhã de manhã eu ligo.

E achou mesmo que era o melhor a fazer. Chegou a pensar em, no passo seguinte, pedir a outras pessoas para ligarem também. Reclamação em massa!

Depois acabou tendo outra ideia, que no dia seguinte, ali pelas 11 da manhã, colocou em prática. Ligou para a vizinha da Dona Eugênia:

– Bom dia. É a senhora que está criando um galo no apartamento?

– Senhor, eu tenho um galo, mas fica no meu quintal.

– Minha senhora, este galo está me enlouquecendo. Não suporto mais este canto o dia todo.

– Calma, meu senhor. Não é proibido ter animal doméstico. Cachorro late, gato mia, galo canta. É normal.

– A senhora que não é normal. Onde já se viu? Criar galo em residência. A senhora, por favor, nos livre deste animal. Este é um bairro tranquilo e ninguém tem o direito de perturbar o sossego e o sono alheio.

– Meu senhor, é apenas um animalzinho…

– Animalzinho nada: este galo não sai da minha cabeça! Eu já estive a ponto de cometer um “galicídio”!

– Como assim?

– Já peguei a espingarda de chumbo umas 3 ou 4 vezes para acabar com ele. Mas prefiro não fazer isso. Resolvi ligar para dar uma chance à senhora. Mas se até amanhã este galo ainda estiver aí…

E desligou sem se despedir…

Das 5 da tarde em diante Dona Eugênia não ouviu mais o galo cantar. Estranhou. Passou a espiar discretamente pela janela e não via mais o vilão ciscando por ali, com aquele olhar de proprietário que tanto a irritava: animal territorialista! Exibicionista! Oportunista! Vocalista!!!

Às 8 da noite Dona Eugênia telefonou para Alberto, perguntando sobre a ligação para a vizinha e relatando o abençoado silêncio. Ele comparou a ligação à um jogo de pôquer: o blefe deu certo, a vizinha não pagou para ver. Deram boas risadas e a sogra ficou muito agradecida.

Daí para frente, sempre que necessário, Alberto trazia o galo de volta:

– O bom daqui é o silêncio…

– Nada como uma noite bem dormida…

Dona Eugênia sorria, satisfeita por ter casado a filha tão bem!

E Alberto, desfrutando por anos do prestígio e agrados da sogra, pensava:

– Nunca um galo na cabeça teve uma consequência tão boa!

 

Antonio Carlos Sarmento

19 comentários em “GALO DA MADRUGADA”

  1. Essa história é muito comum aqui pelas bandas do ES, onde a transição da cultura rural para a urbana ainda se faz muito presente até nos dias de hoje.
    Recordo muitas vezes de problemas com cachórros, inclusive com o tio Alfredo e a palavra “cachorrada” todas as vezes que ouço não tem outra origem na minha memória, pois era muito comum nos seus diálogos para enfatizar alguma opinião.
    Parabéns por mais este belo texto para nosso domingo.

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    1. Rômulo,
      Que interessante você lembrar esta expressão “cachorrada”, muito utilizada mesmo por meu pai.
      Entre nós sempre lembramos disto também.
      São os nossos pontos comuns de família!
      Obrigado pelo seu generoso comentário.
      Abraços e uma excelente semana!

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  2. Antonio, muito legal seu texto. Concordo com você, quanto a manter as devida distância técnica e estratégia, mas existem sogras e existem megeras…quando é a segunda opção não tem jeito.

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    1. Lila,
      Agradeço muito o seu comentário.
      E fico contente que tenha gostado do texto, pois sei que também escreve e tem um blog muito bom.
      Quando puder, por gentileza, leia e opine sobre a crônica Diferenças. Vi textos seus na aba Sentimentos e gostaria da sua opinião.
      Abraços!

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      1. Ah Antonio eu não são tão boa com as palavras quanto você. Meu blog é um hobby, uma forma de desacelerar minha cabecinha tão inquieta. Eu escrevo de tudo, desde uma receita de bolo, até o que mais sei fazer, que é falar de Arquitetura. Mas vou olhar sim. Gostei muito da sua forma de colocar as palavras. Grande abraço!

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  3. Depois que li a introdução, imaginei:
    e pensar que sou sogra! Kkkkkkkk…
    Dizem os estudiosos que o canto do galo é para informar às outras aves quem realmente manda no pedaço.
    Coitadinho!
    Nao adiantou cantar de galo. Tanto poder atropelado pela D. Eugênia que tem um genro compreensivo e solidário.
    Na verdade, amor gera amor, gentileza gera gentileza.
    Muitos rapazes não percebem que são amados porque já estão prevenidos por esse estigma que impuseram ao relacionamento com a sogra. Uma pena – desperdiçam preciosos momentos dealegria e de paz.
    Minha despedida hoje manda um beijo para o cronista e, com sua licença, também para os meus queridos genros Felipe e Rodrigo.

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    1. Querida Gena,
      Imagino a sogra maravilhosa que você é, com esta doçura, bom humor, educação e compreensão.
      Privilegiados são o Felipe e Rodrigo, que nem um galo precisam para cair nas graças da sogra!!! hahaha
      Um beijo carinhoso!

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