MENTE

A mente humana é um prodígio. Fico impressionado com a capacidade humana de pensar, calcular, raciocinar, recordar, criar, associar fatos e ideias além de inúmeras outras capacidades que sequer sei descrever.

Isso sem falar no comando desta maravilha que é o corpo humano. Ainda outro dia notei meu neto de apenas 1 ano olhando durante minutos para sua própria mão, embevecido, observando o encantador ballet dançado pelos dedos. Talvez seja muito difícil que um dia, algum robô ou máquina consiga a mesma naturalidade e versatilidade destes sofisticados movimentos que realizamos com as mãos, sem percebermos qualquer esforço mental.

E o que dizer dos estudiosos do cérebro? Acaba por ser um cérebro estudando a si mesmo… A passos lentos, mas progressivos, os cientistas vão desvendando a anatomia e o funcionamento desta máquina fantástica, embora ainda muito longe de compreendê-la integralmente.

Mas não podemos negar que às vezes a nossa mente também mente!

Nem de longe tenho a intenção de tentar explicar ou interpretar situações em que a mente nos engana, pois esta é matéria para especialista e não para um simples cronista.

Vou me limitar a contar dois casos em que a mente parece produzir em nós julgamentos e convicções que não se coadunam com a realidade.

Há pouco tempo vivi uma experiência muito simples, na qual isto ficou evidente. Estava no escritório, trabalhando tranquilamente, quando senti um forte incômodo no olho direito. Instintivamente, cocei o olho afetado com o dedo indicador, buscando alívio. Voltei à tela do computador, mas logo em seguida o desconforto se fez presente de novo, de forma ainda mais intensa.

Repeti o gesto inadequado com o indicador mais umas duas vezes, até que percebi tratar-se de algo mais significativo, possivelmente um corpo estranho. Fui ao banheiro e lavei o olho em água abundante. Cheguei a fazer uma concha com a mão, formando uma pequena poça d’água onde mergulhei o olho e pisquei várias vezes na esperança de me ver livre do que agora já se tornava uma aflição. Percebi certo alívio e voltei às minhas atividades, ainda piscando muito e até receoso de que alguma colega confundisse com uma piscadela maliciosa…

Interessante como um cisco, sem vida, uma partícula mínima, insignificante, paralisa a atividade de um ser humano, anulando sua capacidade de produzir qualquer coisa antes de se livrar daquela presença invisível e indesejável: um grão de areia paralisa um gigante.

Em alguns segundos de retorno ao trabalho, voltei a sentir a agonia no olho, que a esta altura já estava avermelhado e lacrimejante. Não tive mais alternativa: liguei para o consultório do oftalmologista, um médico muito sério e criterioso que detinha a minha total confiança, adquirida em consultas anteriores. A secretária, diante da emergência por mim relatada, falou com ele, que concordou em atender-me de imediato, subindo assim mais alguns pontos no ranking do meu julgamento a seu respeito.

Assim foi: escureceu a sala, pingou um contraste e armado de uma lupa capaz de visualizar a superfície lunar em detalhes, debruçou-se sobre o meu olho e escrutinou cada milímetro. Eu ansiava por uma intervenção dele que, de repente, como um milagre, produzisse o alívio que eu tanto desejava, removendo aquele trambolho gigantesco que me atormentava.

Para minha decepção, ele terminou o exame e diagnosticou:

– Não tem nada no seu olho!

– Como assim, doutor? Não é possível. Eu sinto um corpo estranho, sem dúvida.

Ele sorriu, compreensivo:

– Fique tranquilo. Não tem nada, eu garanto. O que você está sentindo é a memória do que ocorreu. Não há mais corpo estranho.

– E o que eu faço? Não tem um remédio para pingar, para tomar, uma compressa no olho? Sei lá…

– Nada. Vai trabalhar e esquece isso. Seu olho está normal!

Saí de lá decepcionado e desesperado. Tinha certeza de que o corpo estranho ainda estava ali, arranhando e incomodando muito. Aquele médico que eu tanto confiava caiu de cem a zero no ranking da minha confiança e agora eu não sabia o que fazer.

Fui dando uma caminhada pelas ruas para melhor pensar sobre o assunto. Cogitei ir à uma emergência hospitalar ou voltar ao escritório e buscar um médico próximo, mesmo desconhecido, para tentar um novo exame. Difícil conciliar um novo atendimento com os inúmeros afazeres que me aguardavam no escritório, que fui rememorando, me preocupando e já planejando o que fazer. Neste vai e vem de ideias, após uns 15 minutos caminhando e pensando, de repente me dei conta de que nada mais sentia no olho: o milagre chegou atrasado… O médico havia dito a verdade, a minha mente é que me enganava. De volta ao escritório, liguei para ele dando a notícia e na mesma hora restituí sua cotação ao nível máximo.

O outro caso ocorreu na empresa em que trabalhei há alguns anos. Um grupo de colegas foi escolhido para fazer um estágio na França por uns três meses. Eram quatro felizardos: um mais velho, cerca de 60 anos e outros três, jovens profissionais em início de carreira. Este mais maduro, de nome Celso, além da senioridade, era o único fluente em francês, razões que o colocavam naturalmente em certa posição de liderança do grupo.

A empresa pagava a hospedagem, obviamente, e uma diária para alimentação suficiente para gastos contidos, sem extravagâncias. E foi em torno desta diária que se deu a desavença.

Logo na primeira refeição, os três jovens fizeram pedidos modestos, preocupados com os preços do cardápio, pois desejavam ter uma folga de dinheiro no final da viagem de modo a poder comprar pelo menos um vidrinho de perfume para a patroa.

Só que o Celso parecia ter outro pensamento: pediu entrada, prato principal e sobremesa. Ao final, fez valer a hierarquia da antiguidade e do idioma: pediu a conta, olhou a nota, pegou o total e dividiu por quatro, impondo aos outros três uma carga que não lhes cabia. Houve um desconforto entre os jovens, mas naquele primeiro momento ninguém falou nada.

Era uma daquelas situações em que a pessoa parece não perceber que sua atitude é reprovável: o autoengano a leva a achar que ninguém está notando. Parece aquele chefe que tem uma amante no escritório e pensa que é o maior segredo: todo mundo sabe do caso, mas ele, sozinho no mundo, acha que ninguém percebeu.

Mas voltemos ao Celso: umas três ou quatro refeições no mesmo formato da primeira levaram os jovens ao motim. Conversaram entre si:

– Na hora da conta vamos exigir que cada um pague a sua parte separadamente. – disse um deles, sugerindo o óbvio.

Outro dos jovens, mais sagaz, de nome Hugo, propôs uma artimanha interessante, logo aprovada pelos demais com risos e expectativa.

Dia seguinte a colocaram em prática.

A refeição ocorreu como sempre: pratos simples para os três e uma lauta refeição para o sênior. Antes de Celso tomar a iniciativa, Hugo pediu a conta:

– L’addition, s’il vous plait. – solicitou ao garçom, num francês sofrível, mas inteligível.

A conta chegou, ele examinou detalhadamente, pegou uma caneta e passou a fazer anotações e cálculos. Ao ver a cena, Celso exclamou do topo do seu autoengano:

– Não precisa fazer conta complicada. Pega o total e divide por quatro.

– Melhor cada um pagar o que consumiu. Dá mais trabalho, mas é mais justo. Só um minutinho. – rebateu Hugo, com firmeza.

Sem argumentos Celso calou-se, constrangido. Feitas as contas, o valor dele foi quase o triplo dos demais, deixando-o mudo e emburrado com o fim da prática anterior, tão conveniente a si.

A artimanha propriamente dita deu-se na refeição seguinte.

Os jovens combinaram de só fazer seus pedidos após o Celso: este se limitou a uma pequena lasanha, oferecida no cardápio como entrada e para beber apenas a jarra de água já colocada como cortesia sobre a mesa. Aí veio a surpresa: os jovens, sob o olhar espantado de Celso, pediram entrada, prato principal e, golpe de misericórdia, uma boa taça de vinho.

Comeram alegremente, fartando-se com uma refeição que há dias viam, mas não desfrutavam. Celso em três garfadas liquidou aquilo que poderia ser chamado de amostra de lasanha e ficou salivando e observando os demais, com olhos suplicantes de cachorro faminto ao pé da mesa.

Degustadas aquelas maravilhas, os jovens sem dó nem piedade, demandaram três belas sobremesas, em taças enormes, levando Celso quase a derramar lágrimas.

Aí veio a apoteose: Hugo antecipou-se novamente e pediu a conta. Quando chegou, deu uma olhada rápida, dividiu o total em quatro partes iguais e anunciou o valor da cota individual. Celso desesperou-se:

– Como assim? Você mesmo disse para cada um pagar o que consumiu…

Hugo então proclamou:

– Isso foi ontem. Agora a gente decide a cada dia. E você, como mais antigo, será sempre o primeiro a pedir.

A mente de Celso embotou. Passou a fazer as refeições sozinho.

 

Antonio Carlos Sarmento

16 comentários em “MENTE”

  1. Muito bom dia, Caro Amigo. A nossa mente, de fato, algumas vezes nos sabota, mais uma excelente crônica. Parabéns! Recomendações à família.

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  2. Nos meus 65 anos conheci MUITOS Celsos que até criticavam a “atitude de pobre” daqueles que pensavam como os 3 jovens… kkkkk

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  3. Querido primo,
    Sempre brilhando nos trocadilhos!!
    E nas pitadas de humor.
    Palmas para os jovens que desbancaram as artimanhas do oportunista Celso. Li certa vez que os fracos usam as armas e os fortes as idéias. Palmas!!
    Leitura bem- vinda nesse dia calmo que me encontra no mesmo cenário de uma varanda tranquila, dessa vez com a mente mais reflexiva – o mundo todo se une em torno de um inimigo comum e é justamente nosso pensamento que vai definir como enfrentamos a situação e como aliviamos para aqueles que dividem a quarentena conosco.
    E o que deve ocupar esse tesouro que é a mente?
    O apóstolo Paulo descreve o que deve preencher nosso pensamento: tudo o que é verdadeiro, tudo que é respeitável, tudo que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável .
    Dessa forma, criamos o nosso mundo.
    Grande abraço.

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    1. Querida prima Gena,
      Seus comentários são sempre ótimos. Já se tornam um complemento das crônicas por sempre acrescentar novas reflexões e referências.
      De fato precisamos cuidar muito bem do que permitimos ingressar na nossa mente, alimentar o nosso pensamento e estado de espírito.
      O excesso de notícias pode ser um veneno e mergulhar nas redes sociais pode levar à poluirmos nossos pensamentos.
      Uma dose adequada de informação, pois não cabe alienação, mas fiquemos com a sua sugestão e usemos da melhor forma possível o humor, a pureza e tudo que é amável. E um pouco de música de qualidade, com Adauto!
      Um beijo carinhoso!

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  4. Inacreditável!!! Pensando no seu olho, ou melhor, na sua mente sobre o episódio do olho, lembrei-me da minha garganta, ou melhor, da minha mente quando uma espinha de peixe atravessou minha garganta e eu fiquei muito mal. Mesmo depois de ter saído, fiquei com a sensação que a espinha ainda estava nela. A mente, mente. Gostaria de saber agora, em qual mente acreditar. Na mente do secretário da ONU ou na mente do nosso presidente? Mente melhor quem mente por último? Mente ou não mente, eis a questão?
    Inacreditável!!!! Sua mente é fértil. Mais uma crônica excelente.
    Abraços.

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    1. Caro Nelson,
      Mais uma vez agradeço muito o seu comentário, muito pertinente.
      Mente ou não mente, eis a questão…
      Vale uma boa reflexão e espírito crítico com tudo que está sendo comunicado nestes dias difíceis.
      Um grande abraço e cuidemos bem da saúde do nosso corpo e da nossa mente!

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  5. Sempre muito interessante a sua escrita. Parabéns mais uma vez pelo seu raciocínio.O neto já está lhe ajudando para lembrar de novidades. Com carinho Jaciara.

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    1. Querida Jaciara,
      Obrigado pelo carinho.
      Seu comentário é sempre muito bem-vindo.
      E você tinha razão: neto é uma renovação na nossa vida!
      Beijos e fiquem com a proteção de Deus, tão necessária neste momento.

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  6. A conduta e a inteligência humana são fenômenos que passam por tarefas complexas, conforme muito bem descrito no texto. Lamentavelmente!

    Um fraterno abraço ao meu bom amigo e irmão, Antônio Carlos.

    Oslúzio Félix Fonseca.

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