PERFEITO

Nem sempre vejo dilema entre o bom e o ótimo, os ditos inimigos. Para mim esta é mais uma daquelas opiniões muito aceitas, repetidas à exaustão, quase consensuais, mas que eu não chego a compreender completamente ou acabo achando que nem sempre refletem a complexidade e riqueza do comportamento humano.

Muitas vezes, o bom é o caminho para chegar ao ótimo, não havendo inimizade e sim colaboração. Além disso, os adjetivos são subjetivos: aquilo que acho bom agora, posso considerar ótimo ou péssimo logo depois.

Portanto, é possível que a idéia não seja tão ampla, mas esteja limitada aos casos em que ocorre aquela busca insaciável para melhorar o que já está satisfatório: o chamado perfeccionismo. Se assim for, o verdadeiro inimigo do bom não seria o ótimo, mas o perfeito.

Vamos então à história que me fez borboletear por estas idéias, arriscando-me a desdizer um ditado popular tão consagrado.

Certa ocasião eu trabalhava na construção de uma nova linha de trem de passageiros. Havia uma data planejada para concluir as obras e entregar ao público, mas as prioridades políticas quase sempre sobrepõem-se às técnicas e, para contar com a presença de autoridades do mais alto escalão, a inauguração foi antecipada em 20 dias.

Imaginem a correria. Muitas obras a concluir e, o mais difícil, sincronizar tantas frentes de trabalho de modo que, ao final, tudo convergisse para a circulação do trem em condições confiáveis e seguras. Era quase uma orquestra onde cada músico ensaiava sozinho: no fim seria preciso juntar todos e executar o concerto, sabendo que na platéia estaria o Presidente da República, Governador e centenas de outras autoridades.

Quem estava nas etapas finais do cronograma, claro, recebia os atrasos de todos. Éramos muitos, com responsabilidades diversas. Dentre estes privilegiados estávamos eu e Andrade: ele devia ter quase o dobro da minha idade e experiência de sobra. Meu trabalho tinha por foco o ensaio da orquestra e o dele garantir o funcionamento de dezenas de sistemas principais e auxiliares. Éramos um júnior e um sênior envolvidos numa missão quase impossível.

Acho que nunca trabalhei tantas horas seguidas em toda a minha vida. Tudo que encontrava de problema eu relatava ao Andrade, que saía desenfreado em busca de uma solução junto à equipe responsável. Eu focava no concerto e ele no conserto.

Nas duas semanas que antecederam a inauguração instalou-se o desespero. Faltava muita coisa, mas o pior era o sistema elétrico. A alimentação era feita por uma linha aérea de alta tensão, essencial para a circulação dos trens. Este sistema entrou então em regime de trabalho de 24 horas por dia, mas sabíamos que, neste caso, a pressa era amiga da explosão.

Quase em segredo, ficou acertado que, caso o sistema elétrico não ficasse pronto, iríamos percorrer o trecho da inauguração rebocando o trem com uma pequena locomotiva diesel, utilizada para serviços ao longo do trecho: alternativa vexaminosa, mas era preciso ter um plano B.

Nos três dias que antecederam a inauguração praticamente não dormimos. O vigor da juventude me ajudou muito, porém Andrade, já beirando os 60 anos, estava com os olhos fundos e o rosto marcado pela árdua jornada, beirando o esgotamento.

Dois dias antes da inauguração, o sistema elétrico finalmente ficou pronto e entrou em testes. Os resultados saíram em torno de duas horas da manhã do dia da inauguração. O laudo dos testes nos trouxe a palavra tão esperada: Aprovado! O esforço tinha valido a pena. Trabalho comprido e dever cumprido.

Andrade estava eufórico e eu me sentia entusiasmado por estar prestes a alcançar a primeira realização profissional. Tudo pronto despedi-me dele e fui para casa dormir um pouco, pois precisaríamos estar de volta em torno das 8 da manhã, já que a inauguração seria às 10 horas.

Mal cheguei e o telefone de casa tocou – naquela época o telefone celular não havia sido inventado. Assustei-me. Era o vigia da obra, a pedido do Andrade, com o recado para que eu voltasse imediatamente.  O sono evaporou e retornei ansioso.

Ao longe já podia ver Andrade sentado numa calçada com os olhos baixos, vidrados, cotovelos nos joelhos e a cabeça entre as mãos. Era a imagem da desolação.

– O que houve? – indaguei, temeroso da resposta.

– Caiu a rede elétrica. – respondeu ele, sem me olhar nem se mexer.

– Caiu? Tentou ligar de novo? Vai ver desarmou alguma subestação.

Ele então me olhou:

– Caiu no chão. Desabou!

– Como? Não é possível. O que aconteceu?

– Lembra que havia um vagão de serviço, cheio de ferros e sucata, na linha secundária?

– Sim. Mas não atrapalhava nada.

– Dava para ver do local da inauguração.

– Muito ao longe. Nenhuma importância.

– Pois é. Eu estava quase indo embora, mas resolvi mandar tirar, mesmo sabendo que levaria mais umas duas horas de trabalho. No deslocamento, um ferro mais alto engatou na rede elétrica e saiu arrancando tudo. O pessoal não percebeu e percorreu quase 500 metros. Uma destruição que vai levar mais umas duas semanas para recuperar.

Não tivemos opção: vexados, inauguramos o trecho sem alimentação elétrica, rebocando o trem com a locomotiva diesel.

Aprendi ali que o tudo é vizinho do nada: a perfeição, algumas vezes, está bem próxima da derrota.

 

Antonio Carlos Sarmento

10 comentários em “PERFEITO”

  1. Saber conviver com esses pseudo fracassos é o que forja nossa maturidade prifissional. Feliz Páscoa meu amigo e que Deus sempre te proteja e a sua familia.

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  2. Um lindo dia de sol cobre a mata verdinha do Convento e realça o maravilhoso azul do mar – obra perfeita do criador.
    Seria muita arrogância nossa reivindicar o atributo da perfeiçao. Esse é patenteado pelo Criador.
    Palmas para Andrade! Admirei sua idéia de deixar todo o cenário o melhor possível para a inauguração – nao ficaria perfeito, mas seria o melhor dentro de sua limitaçao.
    Querido cronista, posso discordar da palavra ” vexados” usada, mais uma vez, no final do texto?
    Eu usaria orgulhosos, pois é preciso ter talento, força e coragem para enfrentar e resolver uma situação que não deu certo e apresenta-la em tempo hábil.
    A frustraçao ficou para suas expectativas , mas, aos olhos dos convidados, o que se via era um trabalho bem feito, entregue para o bem comum.
    Os aplausos políticos aconteceram, com certeza!!
    Beijos – palmas para você também!!!
    Sinto que, num tempo curto, irei ao Rio para uma certa noite de autógrafos.

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  3. Olá meu amigo!
    Que bela crônica e que grande verdade: o tudo é vizinho do nada.
    Levei tempo para entender que o perfeccionismo é de Deus, somente Dele.
    Abraços.
    Newton

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