VERDADE

Por algum mecanismo imperfeito do ser humano, temos dificuldade em diferenciar mentira e verdade. Chegamos ao cúmulo de, em algumas situações, apresentarmos tendência a acreditar na mentira e desconfiar da verdade, pois estas duas senhoras se comportam como irmãs gêmeas que às vezes se vestem uma com a roupa da outra. Tanto é que aí estão as chamadas “fake news” abarrotando as redes sociais e sendo repassadas como verdade por tantos de nós.

Para alívio do leitor não vou teorizar: contarei uma história verdadeira acontecida comigo, ciente de que, por mais que seja sincero e fidedigno aos fatos, alguns de meus leitores vão colocar uma interrogação sobre a verossimilhança.

Há cerca de 15 anos atrás, numa bela tarde de sábado no Rio de Janeiro, resolvi sair de casa apenas para colocar gasolina no carro. Na realidade, tratava-se de um segundo veículo da família que era muito pouco utilizado. Eu sempre gostei muito de carro conversível e supria este gosto com um jeep ou bugre, que proporcionava a mesma sensação de vento no rosto e céu na cabeça, por um custo bem menor. Claro que o veículo ficava a maior parte do tempo parado, aguardando ser convidado para um passeio que dependia da meteorologia, do tempo disponível e da disposição da família, fatores que raras vezes convergiam.

Já neste ponto, uma parcela de leitores desconfiados começará a achar estranho que alguém, sem nada programado para o carro, se preocupe em abastecê-lo logo num sábado à tarde… Confesso que foi de fato um pretexto para sair um pouco e desfrutar a beleza do dia, no horário que mais me encanta, em torno das 5 da tarde.

Decidi ir vestido do jeito que estava em casa, de bermuda e camiseta. Peguei a carteira, avisei à patroa que daria um pulinho no posto e desci à garagem subterrânea. O jeep de fibra de vidro, branco com a capota preta, estava lá me esperando como um cãozinho dálmata de uma pinta só, amarrado, aguardando o dono para passear. Afaguei-o baixando a capota de lona e partimos felizes.

Ao emergir na superfície vibrei com aquele céu azul e a temperatura amena do mês de abril. Havia um posto de abastecimento bem próximo da minha casa, mas por puro desfrute, resolvi ir a outro um pouco mais longe, prolongando o prazer que sentia naquele singelo passeio.

Aceitei todos os serviços que o frentista me ofereceu, tendo sido checado o óleo, calibrados os pneus, inclusive o estepe e lavados os vidros. Esgotadas as possibilidades de alongar minha estadia no posto e já entristecido de retornar tão rápido para casa, pensei em fazer um passeio de verdade pela orla da Barra da Tijuca em direção ao Recreio dos Bandeirantes, atravessando a chamada reserva ecológica, ambiente natural, bem preservado e de um encanto difícil de descrever.

Decidi então ligar para minha mulher e informá-la de que daria um pulo no paraíso e voltaria logo: coisa de uns 40 minutos. Busquei o celular com esta intenção, porém constatei que não havia trazido. Claro, não saí preparado para isso, era só uma ida ao posto do lado de casa. É necessário explicar aos leitores mais jovens que, na ocasião, o celular não estava tão disseminado, pois custava muito caro: normalmente era um instrumento de trabalho fornecido pela empresa para ter fácil acesso aos seus colaboradores. Portanto, seu uso era ainda muito restrito.

Que dilema! Uma oportunidade tão boa ser perdida por um esquecimento banal. A esta altura o diabólico já soprava no meu ouvido: seria apenas um tempo curto e talvez nem fosse percebida minha demora excessiva. Além disso, os melhores programas são os improvisados, sem muito planejamento e preparação. Completamente seduzido pelo passeio e convencido pelos fortes argumentos do espírito do mal, decidi fazê-lo mesmo sem avisar em casa.

Parti para a orla. Ingressei na reserva, ladeado pelo azul do mar à esquerda e o verde da vegetação à direita. O visual da natureza em seu estado quase virgem, o aroma perfumado do mar e o vento fresco no rosto me fascinavam. Às vezes, eu desengatava a marcha do jeep para silenciar o motor e apenas deslizar pela inércia do movimento naquela passarela de pura beleza e encantamento. Eram estas experiências que me faziam desistir toda vez que pensava em vender o jeep, por ter uso tão ocasional. Valia a pena ter ele na garagem, mesmo para poucas saídas por ano!

Cheguei ao Recreio ainda deslumbrado com o trajeto. A noite já dava seus primeiros sinais. Peguei o retorno mais próximo e ingressei de volta na reserva, já ciente de que agora era só a viagem de retorno, sem a companhia do sol e do embelezamento que ele derrama sobre tudo.

Devo ter percorrido menos de um quilômetro, mas já estava em plena reserva, quando o jeep começou a soluçar e expelir flatos. Isto nunca havia acontecido. Aliviei o pé do acelerador e em seguida tentei retomar a velocidade, mas os trancos não cessavam e fui perdendo velocidade. Visualizei um pequeno recuo na lateral da pista e decidi estacionar ali o flatulento, que não cessava de bufar. Pouco antes de parar, o motor apagou e percorri os últimos metros na inércia do movimento, coisa que já havia feito na vinda, mas em condições bem diferentes.

Achei que parando fora da pista eu poderia tentar buscar a causa e, quem sabe, ressuscitar o funcionamento do motor. Doce ilusão. A noite já estava mais fechada e a pouca iluminação não me permitia verificar nada.  Além disso, no carro não havia lanterna nem ferramentas.

Aguardei um pouco e tentei a partida umas três ou quatro vezes: nem sinal de vida do motor. Eu só pensava na falta que o celular estava me fazendo. Com ele ali bastaria ligar para minha mulher que viria me buscar e, no dia seguinte, eu retornaria com um mecânico para resgatar aquela fábrica de peidos! E vendê-lo na primeira oportunidade!

Fechei tudo e passei a pedir carona aos raros carros que passavam, pois pouca gente transita à noite pela reserva, por ser desprovida de iluminação e qualquer outra infraestrutura. Cada par de faróis que vinha eu esticava o braço. Notei que os carros, além de não fazerem menção de parar, desviavam um pouco para a pista oposta e aceleravam, desejando afastar-se de mim. Após poucas tentativas concluí que aquela figura caseira e dócil, de bermuda e camiseta, à noite, na reserva, havia se metamorfoseado em um suposto bandido ameaçador!

Logo desisti de uma improvável carona. Na falta de algo mais inteligente e criativo, resolvi caminhar na direção de casa alimentando a esperança de encontrar algum local para pedir ajuda, acreditando que pessoalmente eu poderia ser mais persuasivo do que a imagem revelada pelos faróis dos assustados motoristas.

A beleza da reserva descortinada pelo sol foi se transformando em um local apavorante à medida em que se fechava a cortina opaca da escuridão. Naquela caminhada, o fascínio da natureza virou assombro, o aroma do mar tornou-se acre e o vento ganhou aspereza.

Caminhei por uns 30 minutos, com a mente tomada pela preocupação que minha mulher estava passando, sem notícias daquele que foi ali e já voltava… No percurso fui fazendo cálculos da distância e de quanto tempo eu precisaria para chegar em casa à pé, concluindo que seriam umas três horas. Provavelmente quando chegasse já teria polícia, bombeiros e muita choradeira pelo desaparecido.

Nestas conjecturas, no meio da escuridão avistei uma luz fixa alguns metros à frente. Aquela luz acendeu uma esperança: animei-me, apertei o passo e logo descobri que não eram alguns e sim muitos metros. Ao aproximar-me, vi um trailer instalado num raro espaço plano e amplo, bem afastado da pista. Próximo, havia um carro estacionado e no balcão do trailer um sujeito sentado num banquinho era o único cliente do estabelecimento. Achei que era uma miragem!

Ao chegar mais perto notei que o cliente solitário bebia cerveja enquanto o rapaz do trailer não lhe dava atenção, ocupado com arrumações e limpeza. Aquele estabelecimento improvável seria a minha salvação. Aproximei-me:

– Boa noite! – disse com cautela para não assustar, pois acho que nunca esperariam alguém chegando ali a pé.

– Boa noite. Senta aí. – respondeu o cliente.

Era um mulato de uns 40 anos, olhos claros, um bigode mal aparado, calça jeans e camisa polo azul claro, ou seja, muito mais bem vestido do que eu… Relatei a avaria do carro e a situação em que me encontrava, aflito com a preocupação que estava causando à minha família.

– Você tem um telefone? – indaguei esperançoso.

– Não tenho.

Tentei o atarefado rapaz do trailer, recebendo outra resposta negativa. Voltei ao cliente:

– Quando sair daqui você vai para onde?

– Vou para a Barra. Mas primeiro vou tomar minha cervejinha.

O uso do diminutivo me preocupou, pois em comida e bebida quem tem consumo superlativo costuma adotar este artifício para minimizar a culpa.

– Pode me dar uma carona quando for embora?

– Só se você me fizer companhia na cervejinha. Não gosto de beber sozinho. – determinou.

– Amigo, me dá um copo aí. – solicitei ao atendente sem vacilar, consciente de que não havia alternativa.

– Coloca mais uma gelada. – demandou ele, animado.

Minha estratégia era não dar muito assunto para conversas, pois assim ele se cansaria da péssima companhia e abreviaria o festim alcoólico. Cada minuto para mim era uma eternidade. Da forma mais educada possível mantive-me monossilábico em resposta às tentativas dele de engrenar uma conversa. Mas o sujeito era tinhoso e o negócio dele era beber: cada gole que eu dava ele repunha meu copo, mantendo-o sempre cheio. Acabou a garrafa e para meu desespero ele pediu outra. E depois mais outra. E outra…

Assim foi por um tempo que eu não sei dimensionar, mas talvez por quase uma hora. Eu rezava para que cada garrafa fosse a última. Com a angústia quase explodindo no meu peito, ele anunciou finalmente a saideira, hábito comum em bebedores contumazes.

Sem lei seca na ocasião, entramos no carro rumo à Barra e o alcoolizado motorista, talvez pela força do hábito, dirigiu com habilidade e levou-me gentilmente até a porta de casa.

Entrei apressado e ansioso. No elevador apertava repetidamente o botão do décimo terceiro andar. Eram quase nove da noite quando abri a porta de casa e anunciei:

– Cheguei!

Minha mulher correu em minha direção, com os olhos arregalados.

– O que houve? Onde você se meteu? E está cheirando a cerveja… Não acredito!

Contei o ocorrido, mas o descrédito já estava antecipadamente decretado.

Esta crônica nada mais é que uma nova tentativa de tornar crível esta história real.

Dizem que uma mentira muito repetida pode virar verdade. Será que vale para uma verdade também?

 

Antonio Carlos Sarmento

32 comentários em “VERDADE”

  1. Ótima crônica!
    Tudo que se imagina muito , se torna verdade , assim como os sonhos , nosso cérebro não distingue e vive naquele momento, exatamente o que estamos sonhando…..

    Nesse caso eu no lugar de esposa diria : ” Eu só vou acreditar porque você está contando, se eu estivesse vendo eu não acreditaria “.

    Beijos saudosos Cacau.

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  2. Caro amigo Antonio Carlos, nem sempre a falta de planejamento proporciona histórias desastrosas, né? Kkkk Pelo contrário, histórias hipnotizantes como a sua se eternizam. No final, tudo dá certo!
    Parabéns pela crônica! 👏🏻👏🏻👏🏻

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  3. Uau….
    Que sufoco Garotinho!!!
    Compreendo perfeitamente a sedução do passeio, ainda mais que minha hora preferida do dia também é 17horas!!!
    Que bom você teve uma alma boa e embriagada pra te salvar!!!kkkkk….

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  4. Cau, verdade ou mentira??? Valeu pelo lindo passeio que também adoro fazer!!
    Só não contou se a venda do carro foi feita em seguida ao acontecido!

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  5. Querido primo, que passeio delicioso!
    Nao pense que foi convencido pelo espírito do mal : maior é o Espirito que sua boa alma abriga e você só quis desfrutar de Sua obra maravilhosa. Um privilegiado!
    Imaginar o aroma perfumado do mar e o vento fresco no rosto em dias de quarentena, ou dói ou faz sonhar.
    Quanto à credibilidade , depende de seu curriculo , porque, se disse mentira uma vez, sempre haverá dúvidas diante das puras verdades .
    Beijo

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    1. Querida prima Gena,
      Interessante que enquanto escrevia também pensei na quarentena e na falta de um passseio deste tipo.
      Mas, se Deus quiser, tudo issso vai passar e retornaremos à vida plena!
      Muito obrigado pelo comentário!
      Beijos

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  6. Sensacional amigo. Fiquei apreensivo o tempo todo e aflito por você. Não pensei que poderia ser mentira. Sofri como sendo pura verdade.
    Imagino a Sônia te recebendo com esse bafo de cerveja.
    Parabéns. Gostei muito. Abrs.

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  7. Gostei muito desta crônica por dois motivos! O primeiro, pelo seu término fenomenal e pelo segundo, fruto de uma palavra que me transportou ao passado, relembrando os dias que passamos estudando e conversando bastante. A palavra mágica: verossimilhança! Forte abraço amigo!

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