PRATO FINO

O rapaz conheceu uma bela moça, fina e de modos elegantes. Para causar uma boa impressão, convidou-a para um jantar e decidiu escolher um restaurante de luxo, fato praticamente inédito em sua vida. O local era daqueles onde se encontra talheres pesados, cadeiras tipo medalhão, toalhas branquíssimas, cardápio com capa de couro e um exército de garçons. A possível conquista valia o investimento.

A moça escolheu uns camarões com arroz de maçã e quando o maître o consultou, ele inquiriu:

– Tem dobradinha com feijão branco?

Para o maître veio o rubor, para a moça, o horror. Foi o fim de um namoro, antes do seu início.

É certo que alguns pratos não têm lugar em cardápios de jantar e muito menos nos restaurantes requintados e luxuosos.

Mas cronista que se preza não mente ao seu leitor, pelo menos quando fala de si. Acho que eu não chegaria ao ponto atingido pelo personagem acima, mas devo confessar que aprecio estes pratos ditos exagerados e pesados: rabada, feijoada, vaca atolada e ainda uma ou outra panelada. Comida sem elegância, mas com sustância!

Devo ter herdado este gosto do meu pai, homem nascido na roça, acostumado com a cozinha farta e simples. Mesmo após os 90 anos, ele continuava pedindo à minha mãe que cozinhasse essas encorpadas preparações, que degustava embevecido.  Nunca o vi comendo um paillard com fettuccine… O mais próximo disto era uma generosa travessa de macarrão do tipo goela de pato com carne moída.

Houve uma época em que, às quartas-feiras, formávamos um grupo de gulosos no escritório para comer cozido num famoso restaurante português do Rio de Janeiro. Mas tinha que ser múltiplo de três, pois o prato era muito bem servido. Normalmente formávamos um time de seis famintos, que mergulhava avidamente em dois panelões do cozido. A gente adiantava as tarefas importantes do dia logo pela manhã, pois as tardes eram dedicadas à ruminação e tristeza… Uma das colegas passou mal logo na primeira vez que participou, mas não se deu por vencida: consumia um laboratório de prevenção com digestivos, antiácidos, formulações manipuladas e outras alquimias, para não ficar de fora daquela festa de Babette!

Muitos anos depois destes excessos gastronômicos, estive no arquipélago dos Açores e consegui convencer minha mulher, que é mais da turma do paillard, a comer um cozido das furnas, feito em panelas enterradas nas fendas vulcânicas, onde fica cozinhando por seis horas. Coisa maravilhosa, de um sabor deliciosamente incomum. Ficamos lá por 3 dias e dois almoços foram o tal cozido. Só de escrever, fico salivando as recordações…

O famoso jornalista Michael Pollan, um dos autores mais lidos do mundo sobre comida, com vários livros best sellers publicados, resumiu em três pequenas frases o mais importante sobre a boa alimentação:

Coma comida. Isso mesmo Michael, comida de verdade e não produtos industrializados.

Não muito. Aí já é preciso admitir exceções, Michael. Vamos deixar este conselho apenas para as segundas-feiras?

Principalmente de origem vegetal. Complicou Michael. Estava indo tão bem…

Certa ocasião eu conversava com um primo da minha mulher sobre a rabada, prato que aprecio bastante. Perdão, eu deveria ter escrito Primo, iniciando com letra maiúscula, pois todos o chamavam assim: o parentesco, no caso dele, virou nome próprio e eu nunca soube seu nome verdadeiro. Era maître de um restaurante muito bom na Rua Duvivier, em Copacabana. Um pouco caro, o que me impedia de frequentar.

– Primo, tenho comido uma rabada de vez em quando, pois gosto muito. Sempre em restaurantes. Mas, acho que ando meio fraco do estômago, pois o prato me traz efeitos colaterais, deixando sequelas por um ou dois dias.

– É porque não sabem fazer! – sentenciou o Primo, sempre econômico nas palavras.

– Tantos restaurantes e nenhum sabe fazer?

– O nosso sabe.

– Então este prato deve ter algum segredo.

– Todo prato tem.

– Acredito. Vocês devem colocar alguma coisa a mais. Qualquer dia vou lá comer uma rabada. – decidi.

– Qualquer dia, não. Sábado. – respondeu o lacônico.

Pouco tempo depois, reunimos as economias e fomos experimentar. O Primo nos recebeu amistosamente e não precisou nem trazer cardápio, pois a rabada era pedida certa. Serviu a bebida e me chamou para ir até a cozinha.

Fiquei impressionado: tudo muito limpo e organizado, pessoal uniformizado, roupas brancas e aromas apetitosos. O cozinheiro, muito simpático, fez uma demonstração, revelando que o segredo era preparar o prato em duas etapas: a rabada devia ser refogada em separado, pois soltava uma grande quantidade de gordura, que era então descartada. Somente após isto se iniciava a segunda fase do preparo.

Segundo o Primo, os efeitos colaterais dos quais eu me queixava, eram provenientes daquele excesso de gordura. O segredo não era nada a mais e sim a menos.

De fato, o prato estava delicioso e leve. O único efeito colateral foi na conta corrente…

Desculpe-me o leitor, mas já vou caminhando para o final desta crônica: o assunto me abriu o apetite!

Termino contando outro episódio, bem menos feliz, envolvendo a rabada. Três colegas de trabalho tentavam me convencer a acompanhá-los num almoço, onde este prato era servido, o que ocorria todas as quintas-feiras. Era num boteco, próximo do nosso escritório. Não um boteco de grife, como os que hoje existem: era o típico pé-sujo!

Eu passava na porta da espelunca e não tinha coragem de entrar, nem para tomar um refrigerante. A aparência era muito ruim. Logo na entrada, um balcão revestido de uma fórmica estampada e desbotada, exclusiva para os que bebem de pé, ou seja, os cavaleiros cachaceiros.

O chão não via vassoura há muito tempo, justificando a denominação de pé sujo. O atendente no balcão trazia na cintura uma toalha, outrora branca, agora encardida, cheia de manchas, usada para tudo, talvez até para assoar o nariz… Eu não confiaria nele nem para empurrar um carro enguiçado.

Mais ao fundo havia um desnível, formando um platô um pouco mais alto e escuro, com algumas mesas sem toalha e cadeiras mancas, tudo envolvido numa atmosfera de odores duvidosos provenientes de uma janelinha retangular por onde se visualizava um cubículo ainda mais escuro. Acima da janelinha, balançava num prego, uma placa que mentia descaradamente: “Cozinha”.

Mas os colegas tanto insistiram que minha recusa já se tornava antipática. Resolvi então lançar-me na aventura, com certo temor e um pacote de antiácido no bolso. Aquela gordura descartada no restaurante do Primo não saía da minha cabeça.

No dia fatídico, fomos acomodados numa mesa exatamente em frente a tal janelinha. Através dela eu via a barriga proeminente do cozinheiro, seus braços cabeludos e uma toalha na cintura idêntica à do atendente do balcão: devia ser a única peça do uniforme do estabelecimento.

Os pratos, ainda vazios, merecem uma descrição: além de muito lascados, tinham um friso azul desbotado na borda e o fundo todo riscado com traços escuros, memória das facas que por ali deslizaram ao longo de muitos anos e atual residência de animais microscópicos. Os talheres eram de cabo plástico daqueles que vergam com pouca pressão e o guardanapo de papel era do tipo impermeável.

Os colegas, já íntimos da casa, fizeram os pedidos e em minutos as travessas ovais de aço inox fumegantes e transbordantes estavam na mesa. Era a rabada tradicional, com batatas e agrião, além de outra travessa com uma montanha de arroz. O garçom, elegantíssimo, iniciou o serviço raspando com uma colher fartas porções de arroz, que desmoronaram em cada prato como uma avalanche de neve montanha abaixo. Fez a manobra com tamanha rapidez que sequer consegui protestar quanto ao volume excessivo que tomou quase todo o meu prato.

A rabada ficou para ser servida por nós mesmos. Meus colegas, muito gentis, me concederam o privilégio de inaugurar. Senti-me pescando num pântano: coloquei um pouco de cada um dos ingredientes, evitando ao máximo o molho gorduroso, pois o fantasma do Primo cochichava ao meu ouvido.

Prato pronto, educadamente aguardei os colegas estarem servidos e desejei bom apetite. Respirei fundo e preparei a primeira garfada: ao buscar o agrião veio no garfo algo que parecia aquela cordinha que, na feira, usam para amarrar os talos. Elevei o garfo para melhor observar, pois a pouca iluminação me deixou em dúvida. Não podia acreditar! Mas um exame mais acurado confirmou minha impressão inicial. Concluí que o barrigudo da toalha suja, maldosamente apelidado de cozinheiro, tinha jogado o molho de agrião na panela sem lavar, pois sequer cortou a cordinha.

Não me restou alternativa: larguei o prato, levantei, agradeci a companhia dos colegas e disse que estava me retirando. Eles riram. Não sei de quê.

Quando descia o desnível, um deles me chamou:

– Volta aí. Esta cordinha é para usar como fio dental!

E caíram na gargalhada.

 

Antonio Carlos Sarmento

34 comentários em “PRATO FINO”

  1. Gande Meu Amigo, Muito bom dia, Duas passagens me chamaram a atenção nessa, mais uma, bela crônica . . . Uma, a palavra “sustância”, não recordo a última vez que ouvi, li ou falei tal palavra mas me veio à mente, imediatamente, a lembrança dos pratos deliciosos, enumerados, embora tenha faltado, para o meu gosto, o angú à baiana, ou de qualquer outra forma . . . E o “fio dental” dos seus amigos . . . Parabéns!!! Recomendações à Sonia, à Tatiana, ao Gui e demais familiares . . .

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    1. Caro JH,
      Acordou cedo no domingo, hein? Pegou o cronista ainda dormindo…
      Nem sabia do seu gosto pela comida com sustância, como o angu à baiana. Mais um ponto comum esntre nós!
      Obrigado por comentar, meu grande amigo.
      Um ótimo domingo para você, Sueli e os meninos!!!

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  2. Mais uma excelente crônica.
    Parabéns!
    Eu , como bom italiano, sou formado nessa parte de gastronomia por nascença.
    A melhor comida, sempre foi da minha vó e depois seguem as gerações posteriores.
    “Nada se perde tudo se transforma” , o italiano até do pão dormido faz virar alguma delícia.
    Além do velho ditado: ” Farmácia de italiano é quitanda “.
    Amei a crônica, principalmente, por todas as belas lembranças que vieram .
    Quanto a restaurante, eu tenho a opinião que o melhor restaurante é o que tem o cozinheiro com a melhor mão, claro que existem ” n” cursos e etc… mas é de nascença.
    Beijos Cacau.

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  3. Querido amigo, mais um domingo e eu aqui me deliciando com sua crônica, embora confesse estou mais para o paillard, lembrei de uma churrascaria conceituada do rio onde minha irmã encontrou pedaço de bombril em sua sobremesa e teve trabalho para que eles não o acrescentasse no total da conta. Bjs e um ótimo domingo

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  4. Sensacional !!!
    Muito boa amigo.
    Acho que os 40 anos de casados revigoraram a sua imaginação e criatividade. O atendente de balcão não servir nem pra empurrar carro enguiçado foi demais. Não contive o riso ao longo de toda a leitura. Parabéns.
    Desconsidere os comentários no Baluarte …. Ninguém entendeu …
    Abração e bom Domingo.

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    1. Amigo Nei,
      Obrigado pelo comentário. Vejo que se divertiu lendo a crônica, o que é gratificante para mim.
      Fico feliz que esteja acompanhando assiduamente as crônicas.
      Os comentários no Baluarte são divertidos… Ninguém entendeu de novo…
      Grande abraço!

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  5. Muito boa e divertida!
    Realmente não consigo imaginar seu pai comendo paillard, hehehe.
    Ahhhhhh……esse cozido dos Açores tb me deixou com água na boca e muita saudade. Voltaremos lá com certeza!
    Sei que estou lhe devendo fazer uma rabada prometida a moda do Primo. Um dia sai, rsrsrs
    Adorei a descrição do pé sujo. Pude visualizar muito bem. Não sei como teve coragem de tentar comer lá.
    Parabéns! Muito boa!

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    1. Soninha,
      Já havia perdido as esperanças desta rabada tão prometida e nunca realizada. Mas como sei que você honra a palavra dada, vou continuar esperando…
      Só espero que não haja uma sequencia, onde primeiro é a dos Açores…
      Beijos e obrigado por comentar!

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  6. Rabada funesta !!!

    Uma arriscada experiência a sua degustação.

    Parabéns pelas elegantes e bem redigidas linhas.

    Sds.

    Carlos Vieira Reis

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  7. Kkkkkkkkkk. Ri muito de sua crônica, mas juro que ao longo da última parte, pensei que voce iria declarar amor eterno pela rabada do barrigudo, pois ja tive experiências semelhantes e fui mais bem sucedido. Kkkkkk bom domingo, Deus o abençoe.

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    1. Amigo Luigi,
      Que bom ter se divertido.
      A rabada do barrigudo me traumatizou e portanto nem vou te pedir estes endereços onde foi mais bem sucedido… hahahaha
      Grande abraço, saúde para a família e fiquem com Deus!

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  8. Hahahah sensacional. Sou apreciador de ambos os pratos e tenho aprendido mais sobre comer bem ao longo dos anos. Me lembrou de um lugar que eu ia no Leblon onde comia carré com tutu a mineira.

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  9. Este seu botequim pé sujo me fez lembrar do 28, também botequim na Gamboa onde de vez em quando íamos comer Cabrito,com os nossos engenheiros da Light.

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    1. Grande Hélio,
      Se a crônica lhe trouxe boas lembranças já valeu a pena!
      Interessante como conhecíamos os botequins pelo número.
      Difícil hoje a gente comer um bom cabrito…
      Grande abraço meu amigo e um excelente domingo!

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  10. Sou fã de dobradinha com feijão. No Mercado das Flores, no centro do Rio tinha um restaurante português que às quartas feiras o prato era esse. Estava sempre por lá. Quanto ao seu pé sujo , eu não teria nem entrado … Ótima crônica!!! Saudades dos nossos almoços

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  11. Fiquei aqui pensando: “ quem sai aos seus não se degenera “ . Vcs pertencem à “FAMÍLIA ADA “. Gostam de comer pesado , mas com qualidade , claro! Aqui em casa é a mesma coisa , fim de semana tem de ter “ ada “ . Hoje vou providenciar uma macarronADA para o seu irmão . Adorei a crônica!! Bjks

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  12. Logo que cheguei em Fortaleza, para morar em definitivo, meu primeiro prato foi uma rabada num restaurante do Conjunto Ceará, bairro na periferia de Fortaleza, onde trabalhava em um banco e nesta saída para o almoço pedi para a atendente que era dona do restaurante um prato rápido, porque precisaria de voltar ao trabalho. Ela então disse que a especialidade da casa era uma rabada. Pedi, comi, voltei para o trabalho suando frio e passando mal. O meu gerente disse que estava dispensado por aquele dia. Para encurtar a história, nunca mais comi a rabada. Confesso que ao começar ler sua crônica fiquei propenso a comer rabada no futuro e acabar com este meu trauma, mas ao terminar de ler, você colocou tudo por água abaixo. A única coisa que ficou desta sua crônica foi o meu riso que não consigo parar. kkkk. Excelente crônica.
    Abraços

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  13. Olá Antônio Carlos!

    As últimas crônicas me fizeram lembrar da minha fase de viagens, reuniões, apresentações, almoços, jantares, etc. nas empresas onde trabalhei. Bons tempos, graças a Deus. Obrigado pelas lembranças.
    Também sou fã de feijoada, rabada, carne de sol, dobradinha, etc. Hummmm. Maravilha!
    Me lembrei de algumas passagens engraçadas também. Valeu!!!
    Tenha um excelente domingo!
    Abraços.

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  14. Suas crônicas nos fazem mesmo “viajar”. Você foi até o arquipélago dos Açores e eu aterrisei em Lisboa , com um delicioso cozido português que me fez ter a certeza de que a viagem seria maravilhosa.
    Depois entrei num restaurante em Vitoria, onde serve um delicioso bacalhau com vinho e garante muito romance na minha história com Adauto.
    E repasso um conselho que recebi desse marido guloso: quando escolher um lugar para comer, prefira o que tenha a comida que faz mais mal – com certeza, será a mais gostosa!!!
    Sempre um momento agradável ler suas crônicas!
    Grande abraço.

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  15. Irmão
    Já estava ficando nervosa e preocupada se você ia comer essa comida tão desaconselhavel….
    Putz!!! Foi salvo pela “cordinha”aaa!!
    Haja estômago dessa turma da pesada!
    Bjokas sabor paillard !!!!!

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  16. Meu bom amigo Antônio Carlos.

    Uma boa crônica sobre diversos aspectos.
    Em verdade todos nós já passamos por semelhantes situações conforme foram descritas em sua crônica.
    Vou confessar ao amigo que quando estou em uma reunião social ou de família, tomando uma bebida com amigos, quase sempre, costumo pedir para a minha namorada que já conquistei a 40 anos, apenas de casados, mais uns 10 de namoro, ( rssssss ), fazer um prato para mim.
    Confesso ao amigo que em 97% das vezes, a sua escolha não é o que gostaria de comer, porem, como sinalizei um pedido e em respeito pelo carinho com que foi trazido para mim, aceito sem contestação e agradeço para ela.
    Sei que é difícil, mas compreendo em se tratando de convivência, já diz o nosso maravilhoso Catecismo da Igreja Católica, as fls. 454, nº 1659. (sic):

    “S. Paulo diz: Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja.. “ .
    Um fraterno abraço para você e todos da família.

    Oslúzio Félix Fonseca

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    1. Querido amigo Oslúzio,
      Obrigado por seu comentário.
      A sua gentileza e atitude amorosa não é só com a Nazaré e suas filhas: estende-se a todos aqueles que têm a sorte de conviver com você!
      Um carinhoso abraço!

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