METADE

Quando esperamos algo positivo, chamamos de expectativa. Se negativo, podemos dar o nome de ameaça, indício. Diante de uma viagem, por exemplo, o otimista cria expectativas, enquanto o pessimista enxerga indícios de contratempos e procura se precaver. O genial Millôr Fernandes dizia que é melhor ser pessimista, pois este fica feliz quando acerta e quando erra…

Mesmo assim, me considero um otimista incorrigível, ainda mais quando se trata de viagens. Há 4 anos, cheio de expectativas, fui com minha mulher aos Lençóis Maranhenses. Não se preocupe o leitor, pois não vou contar a viagem, coisa entediante e inútil. Muito menos falarei sobre os atrativos e belezas locais, que é para serem vistos e não lidos. Vou focalizar algumas topadas e tropeços como uma introdução para relatar uma passagem que, enquanto eu me lembrar, não permitirei que volte a acontecer.

A coisa começou cedo. Na véspera da viagem, recebi um e-mail da empresa aérea para fazer o check-in online. Achei ótimo — olha o otimismo. Porém, ao entrar no site percebi que, sem nenhum comunicado prévio, meu voo direto havia se desdobrado num périplo por várias cidades. Eu achava que o Maranhão ficava no Brasil, mas o trajeto com três escalas e conexões, durava mais que um voo internacional!

Na mesma hora procurei uma alternativa em outra companhia e, por ser fora de temporada, consegui um voo para o mesmo destino, no mesmo dia, sem a peregrinação que havia recebido de bônus e à qual renunciei com prazer.

Voltei a ficar otimista: as reservas de hotel e carro não precisaram ser alteradas e tudo estava contornado.

Chegamos ao aeroporto de São Luiz num horário um pouco mais tardio do que o previsto, cerca de dez da noite. Com a bagagem em mãos, fomos à locadora retirar o carro, que desde já, por precaução, não revelarei a marca: minhas crônicas são lidas por centenas, talvez milhares, quiçá milhões de pessoas em vários países e não quero arriscar um processo internacional…

Partimos então para o hotel, usando um GPS como guia. Logo após a saída do aeroporto já ficamos na dúvida, pois o mapa parecia estar desatualizado e indicava um caminho inexistente, mandando entrar à direita numa reta protegida por mureta de concreto. Perdidos, resolvemos entrar na primeira rua à direita achando que o GPS errara o local, mas não a direção — olha o otimismo. Caímos então numa avenida nova, inexistente no aparelho.

Seguimos em frente, até que avistei um pequeno bar com uma única mesinha do lado de fora e cinco ou seis rapazes em volta:

— Amigo. Pode me dar uma informação?

Um dos rapazes olhou para os outros e percebendo que ninguém se mexia, veio até o carro.

— Boa noite. Sabe onde fica este hotel?

— Chefe, segue em frente e sai desta zona da cidade. Aqui é muito perigoso. – orientou, olhando para os outros rapazes como a demonstrar o que acabava de dizer.

Mastiguei um “obrigado” e saí voando. Rodamos quase uma hora até achar o hotel, que também era novo e não aparecia no mapa. Mas o otimista é obstinado e eu disse à minha mulher:

— Bom hotel, hein? Escolhemos bem!

— Melhor seria um que constasse no mapa. — rebateu ela, ainda aborrecida e tensa.

— Está tudo bem. Chegamos em segurança.

— Não. Estamos em segurança, chegamos no maior perigo.

Dei razão, mas preferi brincar:

— Roupa de cama limpinha, tecido de 300 fios. Os verdadeiros lençóis maranhenses.

Ela não riu. Dormiu.

Daí em diante a viagem seguiu tranquila. Dois dias depois, fomos para a cidade de Barreirinhas, ponto de apoio para visita aos Lençóis. O veículo alugado se comportou bem na viagem e foi muito útil, uma vez que nosso hotel ficava um pouco distante do centro, onde estavam os restaurantes e lojas.

Tudo corria bem até que resolvemos fazer um sobrevoo na região, passeio muito recomendado. Chegamos ao pequeno aeródromo e lá estava o avião. Para 4 passageiros. Era um monomotor… Minha mulher estava animada, enquanto eu queria desistir. Só não fiz porque minha imagem perderia uns noventa por cento da masculinidade.

Ao embarcar, deixei meu otimismo na pista e levei só preocupações. O aparelho embicou na pista, posicionou-se e acelerou fazendo um ruído ensurdecedor e, para mim, apavorante. Parecia um liquidificador, ali parado, sacudindo e produzindo o irritante barulho. Para meu desespero, o piloto abaixou a máscara e partiu, percorrendo a precária pista — ou trilha, não sei o correto nome técnico daquilo — e em pouco tempo foi pelos ares, já que não posso chamar aquele movimento de levantar voo.

O passeio para mim foi como uma visita à um presídio: muita coisa nova, mas uma tensão insuportável. Sempre achei que avião e barco não podem ser pequenos. O tempo estava bom, mas tinha vento e aquele aviãozinho parecia de papel, um origami aerodinâmico.

O melhor momento foi quando, após pousar, o piloto me olhou e sorriu, como quem diz: “Viu? Deu certo”. Saltei sentindo as alegrias da ressurreição. Eu estava tão feliz e aliviado que arrisquei um comentário com o piloto:

— Esse avião é muito bom, não é?

— É ótimo. Ficou muitos anos parado num hangar. Depois recuperamos e agora está voando direto.

— Sei. Qual o ano de fabricação dele?

— 1952.

O quê? Mais velho do que eu? Senti uma cólica que durou uns dois dias.

Estamos chegando finalmente ao fato que me inspirou a contar alguns acontecimentos desta viagem. A tal passagem que não saiu mais da minha memória e que me comprometi a jamais permitir a repetição.

Foi na viagem de volta. Partimos de Barreirinhas logo após o café da manhã. A saída da cidade é uma reta, com comércio dos dois lados. Uma coisa meio tumultuada, pois o asfalto é só na pista e as laterais não são pavimentadas. Tem muito movimento de carros e caminhões e com o entra e sai, uma nuvem de poeira permanece no ar. Neste ponto, olhei o marcador de gasolina do carro e indicava meio tanque. Vi ali alguns postos de gasolina, mas pouco atrativos devido ao cenário que acabo de descrever.

Decidi então, que abasteceria o carro em algum outro local a frente, um posto mais calmo e aprazível. Se cheguei ali gastando meio tanque, claro que havia combustível para praticamente chegar à São Luiz. Acelerei e, aliviado, deixei aquele trecho desordenado e desagradável.

Coloquei uma música e fomos desfrutando da viagem. A estrada, quase sem movimento, percorre uma região muito pouco habitada, com vegetação abundante, formando um cenário natural e agradável. Um belo passeio!

Transcorridos uns vinte minutos percebi que o ponteiro da gasolina havia percorrido quase a metade do espaço em direção ao tanque vazio, ou seja, restava um quarto do precioso líquido. Achei que desceu rápido demais. Aí começou a minha raiva do carro. Como os franceses fazem um mostrador tão ruim? Inconfiável.

Mas tudo funcionava normalmente e, portanto, não havia motivo para desespero. Agora era só parar no primeiro posto, calmo ou não, aprazível ou não, e encher o tanque.

Mais uns dez minutos, o ponteiro continuava descendo aceleradamente e nada de posto: só mato. Eu olhava mais para o ponteiro que para a estrada. Até este momento, não havia comentado nada com a minha mulher para não gerar preocupações desnecessárias. E críticas necessárias…

Outros dez minutos e o desgraçado do ponteiro beberrão chegou no último tracinho. Nada de posto. Só mato, formando um cenário natural e desagradável. Um péssimo passeio!

Eu amaldiçoava os franceses enquanto suava no ar condicionado. Minhas costas grudavam na camisa molhada. Uma sensação de arrependimento me torturava: por que não abasteci naquela poeirada mesmo? Porque não sabia da traição dos franceses.

De repente deu-se o inevitável: a lâmpada de abastecimento acendeu e emitiu aquele som característico – plim:

— O que foi isso? — indagou minha mulher, até então entretida em lixar as unhas. Não sei por que, mas parece que nada desgasta mais as unhas de uma mulher que viajar.

— Gasolina. — respondi lacônico, com a boca seca e a camisa molhada.

Ela esticou o pescoço e viu o marcador no zero.

— Vai acabar a gasolina. Aqui não tem posto? — perguntou, como se eu conhecesse aquela estrada.

— Deve ter logo aí na frente. — respondi, fingindo tranquilidade nas palavras, mas revelando angústia na voz.

Um “ai meu Deus” antecedeu o seu silêncio.

Já contando o desastre como certo, peguei o celular no bolso para checar a carga e o sinal, pois precisaria ligar para a locadora, informar a pane seca e pedir o socorro. Depois pagar o prejuízo já que o seguro não cobre este acontecimento. Mas aquilo que o dinheiro resolve não deve ser motivo de sofrimento. Peguei o celular e constatei que eu tinha de sinal mais ou menos o que tinha de gasolina: quase zero. Estava no mato sem socorro!

Saber disso aumentou uns trinta por cento a irrigação das minhas costas e acabou de secar minha boca. A esta altura eu quase não acelerava, para evitar o consumo. E nada de posto. Só mato.

Restou-me fazer uma promessa para São Cristóvão: nunca mais comer pão francês!

E prometi a mim mesmo que não deixaria mais acontecer esta falha. Eu sei que o ser humano deve ter uma alteração genética, que ao longo da história da evolução reduziu a níveis mínimos a paciência para abastecer o carro. É universal a resistência a parar em posto de gasolina. Mas comigo, em viagem, isso jamais voltaria a acontecer.

A invocação do Santo surtiu efeito e após alguns longos e torturantes minutos, avistei lá na frente, do outro lado da pista, um posto maravilhoso, todo empoeirado, com veículos entrando e saindo. Super aprazível.

Arrastei-me até lá, só no vapor da gasolina e, aliviado, parei na bomba de combustível. Um anjo fantasiado de frentista cantou uma linda música:

— Enche o tanque doutor?

— Até a boca — concordei, com ela seca, mas sorridente.

Este acontecimento me mostrou que, em francês, metade não é cinquenta por cento!

Antonio Carlos Sarmento

17 comentários em “METADE”

  1. A minha vivência (experiência) em carros antigos não me permite acreditar na qualidade dos veículos de origem francesa. Dispenso-me de revelar as marcas, por motivos óbvios.

    A minha filha, certa vez, adquiriu um top de linha, automático etc. Para minha surpresa, decorridos 02 meses, o carro apresentou vazamento de óleo na caixa automática. Depois, os vidros elétricos dianteiros pararam de funcionar. Foi uma sucessão de outros e diversos defeitos, que me fez vender o maldito carro em 08 meses, com 6.000ks rodados.

    Gosto muito dos carros Japoneses, especialmente, Honda, que considero o melhor carro da atualidade, embora não o tenha, no momento.

    Sds. e parabéns pela descrição da bela, mas angustiante, viagem.

    Carlos Vieira Reis

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    1. Querido amigo Carlos,
      Com mais um pouco de detalhes esta saga da sua filha daria uma outra crônica…
      Felizmente não citamos as marcas, até porque nosso objetivo não é fazer este tipo de análise, certo?
      Fiquei feliz em saber, que segundo o amigo que é especialista, no momento acertei no meu japonês que está na garagem.
      Um afetuoso abraço!

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  2. Pela primeira vez li sua crônica maravilhosa, mas tão bem descrita que passei meia hora com sentimentos e sensações de lembranças amargas. Quase recorri a um Rivotril pra manter um domingo relaxado… Porque nós passamos, TODOS, essas tristes experiências: programa de indio, nao ser previdente no abastecer o carro, visitar lugares “descolados” quando o que gostamos mesmo (Pelo menos no imtimo) é um belo resort, onde voce deixa o carro no dia que chega e só pega pra voltar pra casa? Talvez a resposta seja: pra no futuro nos tornarmos um belo cronista como voce! Bom domingo, Deus abençoe sua semana e de sua familia.

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    1. Caro Luigi,
      Deus me livre a crônica te levar a tomar um Rivotril!! hahahaha
      De fato parece que todos nós já fizemos um programa de índio!
      Obrigado pelos comentários e pelos “exagerados” elogios.
      Fique na paz de Deus!

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  3. Cara eu odeio essa sensação sabe o quão pão duro eu sou mas ver o carro na reserva me arrepia a espinha. Na nossa viagem de agora passei por isso aí ir ao Safari, pois na volta constatei que após a metade do tanque o odômetro vai em exponencial negativo. Por sorte as estradas aqui de Portugal possuem posto a cada trinta minutos e me salvou desse possível sufoco pois estávamos no meio do nada também.

    Uma pena ter ficado sem seu pão francês.

    Ótimo relato e como sempre uma bela crônica que nos faz pensar.

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    1. Jean,
      Não sei se no caso de vocês era carro francês, mas é um perigo mesmo.
      Agora faço o seguinte: chegou em meio tanque paro no primeiro posto e encho o tanque.
      A questão do pão francês, devo esclarecer que a promessa foi quanto à nacionalidade e não o tipo, certo? hahahaha
      Grande abraço!

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  4. Quem nunca se arriscou um pouquinho mais quando não era necessário? O prêmio em geral é pequeno mas sempre relutamos em parar e, na maioria das vezes, para não “perder tempo” na estrada como se tivéssemos uma meta a cumprir.
    Uma bela crônica para relaxar o fim do domingo.
    Ahhh, obrigado por mais esta bela e entusiasmante crônica.

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  5. Querido amigo Antonio Carlos,

    Imagino o desgaste com a possibilidade da falta de combustível no meio do mato e sem sinal de telefone.

    Prefiro os carros japoneses.

    Em matéria de combustível prefiro abastecer antes de viajar. Nunca se sabe!
    Abraços.

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