FALA!

Não sei se é por efeito de algum vírus que ataca nossos mecanismos da fala e da audição, mas estou propenso a acreditar que a humanidade cada vez mais se divide entre os que falam e os que escutam. E a divisão é completamente desproporcional, com a maioria esmagadora no primeiro grupo. Claro que os falantes também escutam, mas pouco. Claro que os que escutam também falam, mas pouco. O equilíbrio entre o falar e o escutar, este parece que foi abalado pelo suposto vírus, perdeu-se no tempo, ficou nas exceções ou, quem sabe, nunca existiu…

Note o caro leitor que usei a palavra escutar e não ouvir, coisas bem diferentes. Enquanto ouvir é algo involuntário, decorrente do sentido da audição, escutar é um ato de vontade: envolve dar atenção, interpretar o que se está ouvindo e buscar compreender seu sentido. É a mesma diferença entre ver e olhar. É possível ouvir e não escutar, olhar e não ver…

Ao iniciar esta crônica deparei-me com uma lacuna na língua portuguesa, tão rica e que tanto admiro: eu queria começar dividindo a humanidade entre falantes e escutantes, mas esta palavra não existe e senti certa timidez de inventar um novo vocábulo. Embora me pareça, neste caso, muito necessário já que a palavra oferecida pela nossa língua é ouvinte, coisa bem diversa.

Estes pensamentos me perseguem desde que, há poucos anos, em meus horários de almoço pelo centro da cidade do Rio de Janeiro, muitas vezes optava por trocar a companhia dos colegas pela minha própria: ia almoçar comigo. Preferia comer alguma coisa leve e depois passear pelas ruas, observando a vida que fervilhava nos cafés, restaurantes, lojas, esquinas e, claro, livrarias.

Nestes passeios, muitas vezes notava pessoas falando sem receber a menor atenção de quem ouvia. Nas mesas, em grupos caminhando nas calçadas ou aos pares, cansei de ver uma pessoa fazendo um eloquente e interminável discurso, enquanto suas entediadas companhias tateavam o celular ou olhavam distraídos para as vitrines. O curioso é que a falta de escuta de forma alguma amainava o ímpeto de falar.

Passei então a notar o passo seguinte deste processo, em que o falar deixa de ser um meio e passa a ser o fim. É quando alguém passa a falar consigo mesmo. Até então eu achava que só louco falava sozinho, mas várias vezes eu vi homens e mulheres, normais e bem vestidos, trabalhadores de escritórios, caminhando e falando sozinhos. Sim, pessoas falando sozinhas, resmungando queixas, fazendo planos, comentando acontecimentos e argumentando consigo mesmo. Umas balbuciando em voz baixa como numa oração, outras em voz alta e clara, gesticulando. A insaciável vontade de falar e a escuta garantida por si mesmo, sem precisar de outra pessoa.

Nos tempos ainda do telefone fixo, este objeto hoje em fase de extinção, minha mãe recebia frequentes telefonemas de uma, digamos assim, amiga. Esta levava duas horas falando, dois minutos ouvindo e nenhum escutando.  Na realidade, quando o telefone tocava não era minha mãe que atendia, mas apenas uma orelha, já cansada daquilo que ainda iria ouvir. Como escutar não faz barulho, ela às vezes ronronava ou resmungava apenas para dar sinal de vida e garantir à tagarela que a ligação não havia caído. Em algumas ocasiões, eu a vi deixar o telefone ligado em cima da mesinha e ir mexer uma panela, pregar um botão ou beber água, sem que a faladeira sequer notasse sua ausência. Na realidade não era uma conversa: nada é mais monótono que um monólogo…

Nestes tempos tecnológicos, eu tinha vontade de dar uma ideia para um desenvolvedor de aplicativos de celular, que poderia ser a imunidade ao tal vírus. Coisa simples e útil para quem desejasse curar ou pelo menos conter sua própria incontinência verbal. Seria assim: o aplicativo mediria em todas as ligações de celular, o tempo de falação e o de escuta, ou seja, uma conjugação de falômetro com escutômetro – notem que superei a timidez de inventar palavras nesta crônica.

Como o celular está sempre junto à pessoa (já tem gente até dormindo com ele embaixo do travesseiro), não seria difícil medir também estas duas variáveis nas conversas ao vivo. O aplicativo funcionaria como um gravador ligado todo o tempo e com capacidade de identificar vozes humanas e também diferenciar a voz do dono, coisa que com certeza o estágio atual da tecnologia já permite.

Com isto, ao final do dia, o feliz e eloquente usuário do celular poderia ter um balanço do tempo total que levou na fala e na escuta. Claro que os mais palavrosos, com alta carga viral, começariam com um resultado bem desequilibrado, surpreendendo-se por ter falado talvez 80 ou 90 por cento do tempo de conversação!

Acrescento ainda um recurso que talvez fosse útil: ultrapassado certo limite e estando o dono ainda dominado pela sarna da verbalização, o celular poderia ficar vibrando, alertando-o quanto ao excesso de loquacidade. O recurso talvez não venha a ser muito agradável ao próprio, mas os outros agradeceriam de joelhos.

Consciente do controle realizado pelo aplicativo e desejando evitar o balanço desfavorável no fim do dia, a pessoa poderia ir se educando até ficar livre da maldição, curando assim o seu próprio descomedimento oral.

Concluo sugerindo o nome do Marquês de Maricá para o tal aplicativo, por ter ele formulado a frase: “quando falamos despendemos, quando ouvimos arrecadamos”.

Só não sei como o desenvolvedor iria ganhar dinheiro, pois acredito que quase ninguém acometido por esta praga se disporia a comprar o tal aplicativo. Afinal há pessoas que querem única e exclusivamente falar, falar, falar…

Antonio Carlos Sarmento

21 comentários em “FALA!”

  1. Caro Antonio Carlos:

    Meu pai dizia de ouvir é melhor e mais prudente do que falar.

    Já o meu sábio e saudoso Prof. Mairo Caleira de Andrade, com quem aprendi a advogar, dizia que telefone foi feito para dar recados e não para fazer dissertação. ]

    A minha esposa, Leila, reclama de mim, dizendo que, no telefone, sou monossilábico, sem dar chance ao meu interlocutor de “esticar” a conversa. É uma grande verdade . . .

    Por fim, gosto muito de ouvir e ver, para falar por último.

    Sds. e parabéns pelo excelente artigo.

    Caros Vieira Reis

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  2. Muito bom, Antonio! Tenho sentido isso cada vez mais forte ultimamente. É estranho identificar aonde nossa atenção está: no falar loucamente, no celular, no amanhã. Acho que a dificuldade de estar presente reflete na dificuldade da grande maioria – na qual me incluo de vez em quando – em escutar. Abraços e bom domingo!!

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  3. Muito intetessante, o equilíbrio é necessário.
    Porém, uma boa colocação é sobre o vício que vem geralmente de gerações passadas em que existe o modelar.
    E o “viciado” só perde o hábito, se em primeiro lugar ele mesmo identificar o vicio.

    Parabéns Cacau!
    Show de crônica

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  4. Meu Ilustre Amigo e Irmão, Antônio Carlos.

    Gostei demais da crônica, ( FALA! ).

    Parabéns pela eloquência do texto e dos seus ensinamentos na relação de uma boa convivência.

    Amigo, confesso que a grandeza literária de seus textos, não me credencia a fazer qualquer comentário, visto que, não disponho de conhecimento e capacidade para analisar e comentar as suas credencias como escritor.

    Analiso todas as semanas os seus textos, mas, nem sempre comento para não causar nenhuma divergência, ante o respeito e admiração a sua literatura.

    A crônica dessa semana chamou a minha atenção, para a sua conclusão do texto: (sic)

    “Concluo sugerindo o nome do Marquês de Maricá para o tal aplicativo, por ter ele formulado a frase: quando falamos despendemos, quando ouvimos arrecadamos”.

    É sábia essa inteligência de pensamento: “quando ouvimos arrecadamos”.

    Gostei muito! Parabéns!

    Um beijo na sua linda família, que faz da felicidade a pratica do bem-estar.
    Para você, a minha permanente admiração.

    Oslúzio.

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    1. Querido amigo Oslúzio,
      É sempre um grande prazer receber seus comentários.
      Só em saber que continua lendo as crônicas já fico muito contente.
      Agradeço a gentileza do amigo e as palavras de incentivo!
      Um beijo em toda esta maravilhosa família!

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  5. Há pessoas que esquecem que o seu amigo, parente, esposo, esposa e por aí a fora também quer falar, quer expor sua posição . O certo é temos dois ouvidos.

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  6. Irmão,
    Sua crônica me fez lembrar Rubem Alves que relatou sua frustração ao criar um curso de Escutatoria, ninguém se matriculou…. em compensação o de Oratória lotou.
    Ou seja, as pessoas querem falar e não escutar. Quanto ao interesse verdadeiro na vida do outro é para pouquíssimos !!!
    PARABÉNS por trazer essa reflexão tão importante para a saúde dos relacionamentos !!!!

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  7. Prolixo x lacônico, a dualidade se expressando mais uma vez.
    Em média, uma mulher fala 20 mil palavras por dia enquanto nós homens, 7 mil, segundo uma pesquisa divulgada por um livro de neuropsiquiatria estadunidense.
    Aí já podemos diferenciar bem essa tendência até por sexo.
    Isso sem contar com o avanço da idade que independente do sexo, nos torna prolixos e repetitivos.
    O difícil mesmo é ser ouvinte e ainda dar atenção aos assuntos mais diversos sem nenhum interesse pessoal ou envolvente, tornando o monólogo enfadonho e que no meu caso, serve de cantiga de ninar, capisce?
    Muitas vezes já até fui repreendido pelo protagonista da conversa, pego em flagrante, até roncando, rs.
    Mas para encerrar, lembro de um adágio popular, se não me engano chinês: “Deus nos deu dois ouvidos e uma boca para ouvirmos o dobro e falarmos a metade “.
    Mas isso é só para os sábios.
    Tenha uma boa semana e parabéns por mais esta inspiração.

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  8. Prezado Amigo, Muito boa tarde, Nessa crônica você subiu uns degraus, inventou duas palavras, e as traduziu, eu nem precisei correr ao dicionário para saber do que se tratava . . . Recomendações à Sonia.

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  9. Eu sou do time que mais ouve do que fala, mas me dou o direito de escolher o que escutar. Nada me entedia mais do que monólogos que não me interessam. Neste ponto, me lembro bem da mãe de uma vizinha de quem eu sempre fugia. Invariavelmente, ela ia emendando uma história na outra sem parar nem para respirar. E o pior: raramente eu conhecia os personagens em questão! E nem adiantava tentar interromper ou inventar uma desculpa, ela não parava de falar nunca mais.

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  10. Cacau , com essa crônica descobri que faço parte do time falante , apesar de me achar uma ótima escutante. Em tempos de pandemia, obrigada a usar máscara, passei a falar sozinha, balbuciando claro ! Já me deparei várias vezes caminhando no condomínio planejando Cardápio, lembrando de sonhos, tudo conversado comigo mesma. O que será de mim sem máscara? Uma louca solta por aí? Bjks

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