NAS NUVENS

Quando ela entrou os homens emudeceram.

Era a sala de embarque do Aeroporto Santos Dumont no Rio de Janeiro onde aguardava-se um voo com destino a São Paulo. Naquela época, o avião utilizado na chamada ponte aérea era o famoso e quase lendário Electra, avião que deixou saudades naqueles que voaram neste trecho, de meados da década de 1970 até o início dos anos 90.

Era o voo das 8 da manhã, sempre lotado. Todo mundo com uniforme de executivo: terno azul marinho ou preto, camisa azul ou branca e na mão a inexorável maleta 007, armamento padrão dos exércitos dos escritórios naqueles tempos.

O avião cabia umas 90 pessoas, ou melhor 90 homens, pois a presença feminina era uma raríssima exceção. Por isso, a presença dela causou frisson. Naquela sala lotada havia 88 homens quando ela chegou…

O silêncio não se fez de repente, mas aos poucos, à medida que a presença daquela mulher belíssima foi sendo notada. Parecia que ela espalhava uma fumaça inebriante que, à medida que alcançava cada executivo, sequestrava sua alma. Cada um que a via ficava hipnotizado, vidrado e congelava o olhar na direção daquele monumento à beleza.

A moça tinha uns 22 anos e enfeitava a cidade com suas imagens espalhadas em dezenas de outdoors, promovendo uma famosa grife de moda. Era, de fato, dotada de uma beleza excepcional.

Vamos a difícil tarefa de descrevê-la. Diferente do padrão de magreza das modelos, a moça tinha impressionantes pernas, que começavam roliças na cintura e desciam num desenho cônico, afinando em proporção harmoniosa até os pés. Estes, calçados com um salto muito alto, somavam-se à já elevada altura própria e tornavam a única mulher do recinto a figura humana mais alta do ambiente, pairando sobre todos como um anjo.

Seu tronco subia suavemente, abrindo na direção dos ombros. Dali desabrochavam os braços torneados até chegar às delicadas mãos bem desenhadas, de dedos longos e retilíneos. O colo da moça era um capítulo à parte e sua blusa branca, com um decote de alguma generosidade e muita classe, deixava entrever a linha central das duas esculturas quase que completamente encobertas – se fosse dar nome às esculturas certamente se chamariam “beleza oculta”.

Chegando ao rosto, a perfeição das formas e a veludez da pele eram impressionantes, tudo emoldurado pelos longos cabelos que escorriam como uma cascata de águas negras, com correntezas aqui e ali, derramando-se ao longo das costas. Reinando no extremo do encantamento, dois topázios de um azul incomum ocupavam o lugar dos olhos.

Ela entrou, mas não adentrou: deu apenas um pequeno passo para o interior da sala. Mas foi como se tivesse pisado numa mina terrestre que fez explodir uns 20 executivos que estavam sentados e, num pulo, disponibilizaram um assento para aquela dama. Ela olhou apenas para o sujeito que a acompanhava, um tipo impossível de descrever já que ninguém o notou. O tal acompanhante indicou a cadeira mais próxima e ela acomodou-se sob a supervisão dos 176 olhos de experientes engenheiros, advogados, administradores e empresários.

A sala permaneceu silenciosa. Ela então passou a buscar algo na bolsa, numa ocupação ociosa, constrangida como se estivesse num elevador com 88 estranhos. Felizmente, menos de um minuto depois, foi salva pelo sinal sonoro e o chamado para embarque. Em situações normais seria a hora do alvoroço, com os passageiros se acotovelando para embarcar o quanto antes, como se o avião pudesse decolar antes do último estar acomodado. Mas naquele voo ninguém saiu do lugar.

O pretexto era o cavalheirismo, mas na realidade todos desejavam que ela fosse a primeira a deixar a sala e caminhar até o avião — naquela época a ponte aérea não usava finger e era preciso caminhar na pista. Assim, poderiam observar aquela pintura ganhar vida, a beleza em movimento. E mais, conhecer o verso da obra prima, vê-la por outro ângulo, coisa que os homens fazem questão absoluta. Mas ela permaneceu sentada, indiferente ao chamado.

O funcionário encarregado do embarque precisou intervir:

— Senhores, por favor. Vamos embarcar.

Muito a contra gosto, o fã clube, arrastando os pés foi deixando a sala e andando lentamente pela pista em direção à aeronave. Teve gente fazendo promessa a São Judas Tadeu, padroeiro das causas impossíveis, para a moça ocupar o assento ao seu lado.

Aos poucos, todos foram se acomodando e o avião encheu, restando apenas dois lugares na primeira fila do lado esquerdo. Havia grande expectativa, mas os pessimistas já imaginavam a aeromoça anunciando o fim do embarque para desapontamento de todos.

Foi quando ela se materializou na porta — o acompanhante estava junto, mas ninguém viu. Num movimento rápido, sentaram-se naqueles dois últimos lugares. Finalmente havia chegado a cereja do bolo. E a vela também…

O Electra decolou. A bordo, as reuniões dos executivos tinham a rainha como pauta única. Falava-se baixo para evitar indiscrição, mas não havia outro assunto e o alvoroço era tal que ninguém assistiu as instruções dos comissários e muito menos prestaram atenção aos avisos do comandante.

Para quem não conhece este avião por dentro é preciso explicar que tem um layout muito particular: o corredor central, com poltronas dos dois lados como uma aeronave convencional, termina num lounge no fundo da cabine, tendo os assentos dispostos numa espécie de semicírculo. Ali, os privilegiados passageiros podem acomodar-se confortavelmente, esticar as pernas e desfrutar de conversas, como numa agradável sala de estar.

Este arranjo incomparável do Electra formava uma perfeita passarela, fazendo com que uma ideia fixa percorresse a cabeça de alguns executivos mais sonhadores. Logo propagou-se um burburinho que pululava de fila em fila, sobre o que poderia ocorrer. Havia a passarela e a modelo. Portanto, aproveitando que já estavam nas nuvens, os executivos deram asas à imaginação. A beldade, para demonstrar seus talentos de modelo, iria levantar-se quando alcançada a estabilidade do Electra e se posicionaria para um desfile ao longo do corredor.

Tomaria posição na porta da cabine de comando, as luzes seriam reduzidas, o sistema de som iniciaria a tocar New York, New York em versão orquestrada e a partir dali a diva desfilaria seus atributos, sob os olhares sôfregos da plateia.

O percurso seria realizado com encantadores passos e benevolente lentidão, permitindo a observação dos mínimos detalhes. Ao chegar no lounge, a divindade faria aquela parada clássica, com as mãos na cintura. Neste momento, o silêncio seria absoluto e até os motores do avião seriam desligados, em gigantesca expectativa pelo momento apoteótico. Com o Electra planando, a musa faria então um movimento de cabeça, jogaria os cabelos sobre o ombro direito e logo em seguida realizaria aquele prodigioso giro sobre o pé esquerdo, com uma graça e leveza que faria os expectadores explodirem numa aclamação espetacular, aplaudindo de pé o voo mais deslumbrante da história da ponte aérea.

Ela então retornaria pela passarela — desculpem, pelo corredor — com a mesma classe e chegando de volta à porta da cabine de comando, olharia finalmente para o público, ofertaria um leve sorriso, uma breve reverência e desapareceria em seu lugar, ouvindo por mais uns 5 minutos os esfuziantes aplausos. O avião experimentaria a chamada turbulência de céu claro, sacudindo sem nenhuma aparente razão meteorológica.

Obviamente nada disso aconteceu e o voo seguiu a rotineira monotonia de sempre.

Até que chegou o momento do desembarque. O complô masculino havia sido organizado em conversas secretas e pactos de sangue. Ninguém desembarcaria antes da deusa: assim, no trajeto do avião até a sala de desembarque poderiam finalmente observar a obra de arte em movimento, sob ângulo privilegiado.

Assim foi: como ninguém desembarcava, a ninfa perdeu a paciência e saiu primeiro, junto com seu ignorado acompanhante. Atrás dela instalou-se um frenesi, todos querendo chegar à porta de saída o quanto antes para apreciar a cena.

Em solo o que se viu foi a soberana caminhando, tendo ao lado o bobo da corte e atrás uma legião de súditos. Nenhuma mulher precisa olhar para saber que está sendo observada e a prima-dona, consciente da fuzilaria de olhares, apertou o passo. Melhor dizendo, ela usou um passo batido, sem feminilidade, quase uma marcha militar, rígida e apressada, recusando-se ao tão esperado desfile. A decepção foi geral. A tal ponto que um engenheiro de controle de qualidade chegou a comentar em voz alta:

— Mulher é um bicho esquisito…

Ao entrar na sala de desembarque, livre dos 88 observadores e aliviada, a moça desabafou com seu acompanhante:

— Homem é um bicho bobo…

 

Antonio Carlos Sarmento

21 comentários em “NAS NUVENS”

  1. Mais uma genial!!
    Algumas vezes vi estes desfiles de musas na passarela da ponte Rio/São Paulo!! Privilégio da profissão!!
    Você foi perfeito na descrição das bobeiras, que nós homens cometemos casualmente!
    Tenho saudades das maravilhas que os “eletras” nos proporcionaram, não só quantos as mulheres, sempre bem produzidas e cheirosas, como também dos frequentes defeitos e “embaredamento” das élices daqueles possantes motores da aeronave.
    Não devemos, no entanto, despresarmos as charmosas aeromoças que engrandeciam aqueles 50 minutos de viagens!! Bons tempos!!!
    Um abração!!!

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  2. “… Homem é um bicho bobo…” e eu acrescentaria: e previsível! Kkkkk vi essa cena em 100 % dos voos que fiz na vida… somos previsiveis. Grande abraço meu amigo, e Deus lhe abençoe.

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    1. Caro Luigi,
      Como sempre, com muito prazer recebo seu comentário.
      É incrível que nós mesmos concordamos que homem é bicho bobo… Isso é muito engraçado!
      Grande abraço e se for votar para Presidente amanhã, capricha pois a disputa parece muito dura.
      Saúde à você e toda a família. Fiquem com Deus!

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      1. Qto a eleição, nao voto aqui, mas hoje, dia 08/11 esta caindo o mundo aqui com um furacão que se formou de ontem pra hoje. São as noticias de hoje aqui de Miami. Abraços.

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  3. Devia ser muito legal esse avião com lounge. Tentei ficar imaginando. Rsrsrs… aliás, a imaginação é uma coisa maravilhosa, né? Criamos o que quisermos, como uma parte desse texto descreveu a imaginação coletiva e previsível dos “bobos”. Hihihihi…

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  4. Você me fez viajar novamente de Electra, era exatamente isso…e quantas foram as vezes. …perfeito!

    Homem é “bicho bobo”, a única diferença para hoje que é comum a presença das mulheres, mas a observação masculina para os destaques é a mesma!!!
    * notem : Eu disse masculina, e não dos homens. O que hoje também é comum.

    Show Cacau!
    Beijos

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  5. Os dois estão certos, mulher é bicho esquisito e homem bicho bobo.
    Acho que somos bobos até demais rs.
    Mas se fosse diferente o mundo não daria certo.
    Abraços primo

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  6. Hahahaha….. linda descrição da beleza feminina!!!
    Creio ter sido uma sensação semelhante à que Vinicius de Moraes sentiu quando viu Helô Pinheiro e compôs Garota de Ipanema.
    Adorei esse fascínio delicadamente declarado, com destaque especial para a “alma sequestrada”, que LINDO irmão!!!!!

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    1. Minha irmã,
      Achei ótimo você lembrar do nosso grande e genial poeta da Garota de Ipanema, fascinado com a passagem da menina a caminho do mar. A da minha história ia a caminho do ar…
      Obrigado pelo gentil comentário!
      Bjks

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  7. Caro Amigo, Muito bom dia, Hoje eu só quero rir, deliciosa a descrição da cena imaginária, até para mim, que não viajei de Eletra uma única vez . . . rsrsrs Recomendações à Sônia.

    Livre de vírus. http://www.avast.com .

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  8. Bobos meninos se aviltam por mais uma visão , a perfeição profanadora e sonhadora dos eternos bobos meninos .
    Doce sonho ilusão .
    Um grande abraço Sarmento !

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  9. Querido Irmão,
    Fiquei a imaginar a cena tão bem descrita dos bichos bobos, me parece serem assim mesmo. Kkkkk….
    À propósito, ontem assisti o filme”Beleza Oculta” na Netflix , embora nada tenha a ver com o vôo dos homens é também intrigante, recomendo.
    Beijos.

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