O DUELO

— Não sei como você aguenta ver noticiário todos os dias — desabafou Maria Lúcia, durante o almoço.

— Não sei como você aguenta ver novela todos os dias — replicou Miguel, o marido.

— A novela distrai, o noticiário estressa.

— A novela aliena, o noticiário informa.

— Você está me chamando de alienada? – disse ela, elevando a voz.

Ele pensou em continuar contrapondo e ia perguntar se ela o estava chamando de estressado. Mas percebeu que a resposta iria jogar gasolina na fogueira que se formava. Resolveu jogar água:

— Não é isso, Maria Lúcia. Melhor não discutirmos exatamente na hora da refeição — chamá-la pelo nome fez parte da estratégia de arrefecimento.

— Disse bem: “da refeição”, pois é a única que fazemos juntos.

— Por causa das novelas à noite. Não sei por que você perde tempo vendo um amontoado de coisas ruins: mortes, doenças, traições, golpes, violência, drogas, ganância, desprezo, preconceitos. O pior do ser humano — resmungou.

— Pois é! Exatamente como no noticiário. O pior do ser humano.

Ele sentiu-se como se estivesse engolindo um osso do frango que estava comendo. Ela tinha razão…

Maria Lúcia continuou:

— Pelo menos na novela a gente sabe que é ficção. Nos telejornais, sempre sensacionalistas e tendenciosos, você acredita nas versões distorcidas que apresentam. Eu vejo a mentira e sei que é mentira. Você vê a mentira e acha que é verdade.

— Que exagero! Eu sei que misturam fato com opinião e que são tendenciosos — é assim no mundo todo. Mas sempre é possível ter uma ideia dos acontecimentos pelas imagens e não apenas pelo texto. Se houver uns 30% de realidade já é melhor que a novela, que tem zero. Você fica meses assistindo e depois vem aquele finalzinho decepcionante, no estilo de conto de fadas, com o vilão na cadeia ou morto e os pombinhos casando e sendo felizes para sempre.

— Você está parecendo repórter de telejornal: não conhece a matéria e sai dando opinião. Primeiro assiste uma novela comigo, do início ao fim, para depois poder avaliar com base, sem achismos e opiniões pré-concebidas.

Miguel achou melhor silenciar para não estragar de vez o almoço. Soprou ar pelo nariz fazendo um barulho típico que utilizava para manifestar sua discordância e calou-se. Mas o prazer da refeição dissipou-se.

Maria Lúcia percebeu a contrariedade dele e resolveu também deixar a discussão para outro capítulo da novela domiciliar. Aquela conversa estava destemperando a comida. Arrependeu-se de ter puxado o assunto, que não levaria a lugar nenhum, pois nem ele deixaria de ver o noticiário, nem ela suas novelas.

O silêncio tomou conta da refeição e permaneceu até a sobremesa. Já no cafezinho, Miguel resolveu ser conciliador:

— O mais comum mesmo é o homem gostar de noticiário e a mulher de novelas. Deve ser genético.

— Genético? Aonde você ouviu isso? Deve ter sido no noticiário…

— Minha filha, é o gosto masculino e o feminino. E gosto não se discute — contemporizou Miguel.

— Não se discute? Coisa mais autoritária.

— Não é neste sentido, Maria Lúcia. É que não adianta discutir, não é produtivo, pois ninguém vai ficar convencido de deixar o que gosta ou aderir ao que não gosta.

— Você vive dizendo que gosto é hábito, que podemos comer com menos sal, que quiabo é bom, que banho frio é mais saudável. Por que não se habitua a deixar de ver o noticiário todos os dias? Vai passar a gostar…

— Se você fizer o mesmo com as novelas, eu topo!

Maria Lúcia sentiu o golpe. O desafio precisava de uma resposta. Prescreveu para ele um remédio que ela mesma não queria tomar.

— Tudo bem, posso até topar, mas o que faríamos todos os dias à noite?

— Vamos jantar juntos. — respondeu de bate-pronto.

— E depois? Até a hora de dormir?

— Sei lá. Não pensei nisso. Ler um livro, por exemplo?

— Ótimo. Leio dois parágrafos e durmo na poltrona.

— Podemos conversar — tentou Miguel, logo se arrependendo.

— Todas as noites? Haja assunto. Sobre o que vamos conversar se você não souber o que está acontecendo e eu não tiver as histórias das novelas para comentar?

— É verdade…

— Melhor deixar como está, Miguel. Eu janto na hora do noticiário e você na hora da novela.

— Está bem. Jantamos juntos aos domingos.

— É.

Maria Lúcia achou que a conversa não poderia terminar assim e emendou:

— Mas continuo sem entender como você aguenta ver o noticiário todos os dias.

Ele levantou e foi escovar os dentes.

Antonio Carlos Sarmento

27 comentários em “O DUELO”

  1. “A vida como ela é” foi uma coluna de Nélson Rodrigues que fez muito sucesso no passado e também deve ter algumas linhas certamente sobre o tema da crônica deste domingo.
    A vida cotidiana de um casal não é glamorosa e sim cheia de controversas e cousas mal resolvidas mas que temperam a relação e até a tornam pitoresca.
    Você se enxergar no seu par dificilmente te faria feliz, acho até que seria demasiadamente monótono.
    A dualidade homem x mulher é engrandecedora e acredito também ser da espécie humana.
    Um abração.

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  2. Muito bom! O difícil nas relações é, muitas vezes, aceitar experimentar a preferência do outro e conseguir entender tal sentimento exposto por ele para, daí sim, poder opinar. Mudar pensamentos é mudar sentimentos. Obrigada pelas suas crônicas. Sempre muito bom lê-las aos domingos. Um abraço, Bete.

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    1. Bete,
      Com alegria recebo seu comentário e a notícia de que continua lendo com frequência aos domingos.
      Espero que todos estejam bem por aí!
      “Mudar pensamentos é mudar sentimentos”: gostei!
      Um grande abraço a você e Marcos André!

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  3. Kkkkkkkkk… o melhor foi “— Podemos conversar — tentou Miguel, logo se arrependendo.” Acho que puxei a minha avó e minha mãe que não são muito de novela, mas a minha reação aos noticiários é como a dela. Hihihihi…

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  4. Na minha casa, a D. Leila dá preferência às novelas eu, como o Miguel, gosto mais dos noticiários, especialmente, da parte política, onde mais me divirto, por ter um alto teor de comicidade. Provoca-me gargalhadas de desprezo, que ainda é melhor do que chorar.
    Parabéns pelo excelente artigo.
    Bom domingo e uma ótima semana, com muita inspiração.
    Carlos Vieira Reis

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  5. Muito boa crônica! A compreensão é o cerne da questão. Muitas horas sem noticiário e novela permitem momentos felizes juntos. Forte abraço amigo!

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  6. Prezado Amigo . . . Infelizmente, essas cenas são mais comuns do que se pensa, tão perto e tão longe, amanhã quando um dos dois morrer, o sobrevivente, vai cair no desespero, não pela falta daquele que se foi, mas pela falta do que discordar . . . haja coragem para mudar de hábitos . . .

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  7. As diferenças podem ser complemetos essenciais para o crescimento do casal.
    De qualquer forma o caminho do meio é sempre a melhor opção!!!!
    Boa reflexão para a conjugalidade meu irmão!!!
    Bjo

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  8. Achei ótimo e muito oportuno.
    Já passou da hora de rever esses conceitos, o mais importante é jantar e estar juntos.
    Noticiário e novela, não tem que constar no cardápio.
    Temos meios de comunicação rápidos e eficazes, estão a disposição e não são tóxicos.

    Parabéns!
    Excelente crônica

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  9. Caríssimo eng. Sarmento.

    Como não sou um assíduo, constante, do Facebook e como, na maior parte das vezes que ali acedo, limito-me a dar uma olhada, na diagonal, desta vez, quiçá, pela pela curiosidade da crónica e, sobretudo, pelo seu autor, fui para a leitura vertical para captar a mensagem subliminar.
    Ora, aí está e, sem sofismas! A relação quotidiana de um casal, seja de que natureza for, não é pera doce e não há uma fórmula mágica que a torne um mar de rosas.
    Não sei porque cargas d’água, ao ler a sua crónica, veio-me á lembrança o dia do seu casamento e, com ele, a oferta/presente que os Inspetores de Trem (peço desculpas se foram mais) lhe ofereceram e que foi uma serra elétrica de cozinha e, partindo deste objeto cortante, faço duas sugestões: a primeira, satirizando uma relação a dois, uma solução pode ser fazer como na comédia “como esquartejar o meu marido”, uma solução muito sanguinária. A segunda, seria um esforço comum, p. e., partilharem o que de bom e mau lhe aconteceu; divertirem-se e rirem juntos, seja a assistirem uma comédia, seja a gozarem um com o outro as desgraças do dia; jogarem qualquer jogo, desde que não se duelem com armas; fazerem desportos juntos; dividirem tarefas domésticas, etc.,
    É evidente que isso seria o supra-sumo de uma relação, onde não houvesse qualquer entropia mas, como nas últimas décadas as tecnologias de informação nos tem levado para a individualização social e, principalmente, nestes tempos de COVID, onde os limites dos casais estão a ser postos em dificílimas provas, devemos esforçar-nos q.b., pois, quem faz o que pode a mais não é obrigado.

    Parabéns pela crónica e, doravante, segui-lo-ei atentamente.
    Abraço

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    1. Manuel,
      Com muita alegria e surpresa recebo seu comentário.
      Que maravilha fazer-me lembrar do presente de casamento dos inspetores de trem!!!!! Foi em 1980, ou seja, há 40 anos e você lembrar disso, para mim, é uma preciosidade.
      Como é bom revivermos momentos felizes de nossa vida: foi um tempo de trabalho duro e não faltavam problemas e dificuldades. Mas a lembrança é doce e gratificante!
      Obrigado por trazer ao meu coração estas recordações. Fico feliz que esteja seguindo as crônicas.
      Um cordial abraço!

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