TOQUE DE RECOLHER

Peguei a Covid. Ou melhor, a Covid me pegou.

Desde que começou a pandemia, decidi que não falaria dela aos meus leitores, que estariam provavelmente com a mente abarrotada pela imprensa e pelas redes sociais, cheias de notícias e orientações. Até então, procurei que minhas crônicas fossem uma alternativa, outro assunto, para que representassem breves momentos de ausência do tema dominante e massacrante. Se possível, uma colherzinha de açúcar no café amargo.

Mas agora, vivendo a experiência, veio uma comichão nos dedos para escrever sobre o que acabo de passar. O último dia de novembro de 2020 é também o dia derradeiro de meu isolamento doméstico, momento em que iniciei esta crônica.

Tranquilizo desde já o leitor de que passei bem e não vou me arvorar em dicas e recomendações, muito menos em medicamentos e aspectos médicos, por absoluta falta de competência para tal. Se não posso prestar um serviço, pelo menos evito o desserviço.

Era sexta-feira 13 deste mês quando depois de ir a diversos locais, acompanhei minha mulher numa consulta médica ao final da tarde. Nós e o médico de máscara, nada de apertos de mão e aquele cheiro enjoado de álcool gel. Em cerca de quarenta minutos ele concluiu o exame físico e deu suas prescrições, encerrando a consulta. À noite, já em casa, o médico telefonou informando que testou positivo pela primeira vez desde o início da pandemia. Tudo bem, era sexta-feira 13, o que poderíamos esperar? Também não tenho a menor ideia se o vírus me pegou em algum dos outros lugares onde estive naquele dia, ou no dia anterior…

O alerta do médico foi de grande valor, pois me deixou atento. Na semana seguinte comecei a perceber sintomas, na sexta-feira iniciei medicações e no domingo testei positivo — eu reluto em usar esta palavra, pois este resultado pode ser qualquer coisa, menos algo “positivo”.

O resultado do teste foi o meu toque de recolher. Iniciei imediatamente o isolamento doméstico, experiência nova que perdurou por nove dias de total confinamento num quarto de minha casa.

Até então, os únicos momentos de restrição de liberdade que tive ao longo de toda a minha vida foram na infância. Ainda me recordo o dia em que cumpri meu primeiro castigo. Minha mãe costumava aplicar seus corretivos com tapas nos braços e safanões — na época era um método consagrado e largamente praticado.

Um belo dia, tendo eu crescido e minha mãe envelhecido, os tapas já não tinham o mesmo impacto. Resolvi não chorar e ficar olhando nos olhos dela enquanto me batia. Grande besteira! A partir daí começou a fase dos castigos e logo o primeiro foi: “sábado não sai de casa!”.

Para mim aquilo foi muito pior que apanhar. Passei a manhã inteira dentro do quarto, sozinho, angustiado, imaginando as brincadeiras, o futebol e outras diversões da garotada na rua. Quase pedi à minha mãe uma boa surra, pois as dores logo passavam e vinha a liberdade.

Depois do almoço, debrucei na janela do quarto que dava para a lateral do prédio e fiquei observando o nada. Morávamos no segundo andar e o chão estava ali, bem pertinho. Ao olhar para baixo vi que a grade da janela do vizinho de baixo poderia ser usada como uma escada para chegar ao solo com tranquilidade. Nem pestanejei: tranquei a porta por dentro e escapei por ali. Cheguei correndo ao encontro dos meus amigos. Controlei bem o horário e retornei ao castigo em tempo da “carcereira” sequer perceber minha ausência. Algumas vezes repeti a temerosa desobediência, arriscando tudo por algum tempo de alforria.

Mas agora, muitas décadas depois, a experiência de uma restrição de liberdade tem outro sabor. Senti verdadeiramente o gosto amargo do isolamento e a angústia da solidão. Passei bem, tive poucos sintomas, da Covid não posso me queixar, mas a reclusão não é fácil.

Sem dúvida, há de ser bem diferente para cada pessoa. Sem dúvida, o conforto, alimentação e recursos de comunicação atenuaram grandemente as dificuldades. Sem dúvida, não se compara a um encarceramento real e suas inúmeras consequências. Mas seja como for, experimentar uma limitação de liberdade, permanecendo trancado em espaço exíguo por quase 10 dias é uma amostra considerável.

Acho que no início passei por duas fases: a primeira de pensar em tudo que poderia fazer e a segunda de não fazer nada do que pensei. A limitação da liberdade desnorteia. É preciso tê-la, mesmo sem usá-la. Logo senti com muita clareza a diferença entre o ócio e o tédio. Um tempo ocioso é bom, útil e muito aproveitável, mas nosso estado de espírito pode transformá-lo num tempo tedioso, enfadonho, sem motivação, como um bocejar sem sono, um beber água sem sede…

Este sentimento não desapareceu, mas logo perdeu peso e abriu caminho para uma fase de assimilar a situação e buscar viver aqueles dias da forma mais equilibrada possível. Acredito que a saída foi mesmo a espiritualidade. Sem este sustento da alma não sei como teria sido… E fiquei pensando que os religiosos que vivem em clausura suportam a vida exatamente por isto. O corpo limitado, a mente transcendente.

Enfim, passei os dias numa alternância de leituras, orações, trabalhos no computador, navegação na internet, noticiários e alguns filmes. As ligações da família e dos amigos foram um verdadeiro bálsamo. Mas escrever, o primeiro dos meus propósitos, não aconteceu. Claro, ninguém controla a inspiração. Só hoje, dia derradeiro, animei-me a abrir uma página em branco e, vindo sabe-se lá de onde, chegou o desejo de contar aos leitores o acontecido.

Ficou para mim uma reflexão sobre a severidade da prisão. O encarceramento de alguém que cometeu um crime, com a supressão quase absoluta da sua liberdade, é uma penalidade duríssima, muito mais do eu imaginava antes de passar por estes dias. Talvez os que correm este risco não imaginem o preço altíssimo a pagar. Sim, uma coisa é saber, outra é sentir.

No primeiro dia de dezembro abri a porta do quarto e retornei à vida. A primeira coisa que fiz foi buscar minha mulher e trocamos um abraço longo, muito longo e apertado. Chorei. De alegria. O abraço é tão essencial como o alimento.

O que passei me ensinou que a vida sem liberdade perde a plenitude.

Na verdade nem é vida, apenas sobrevida.

Antonio Carlos Sarmento

28 comentários em “TOQUE DE RECOLHER”

  1. Meu amigo:
    Graças a Deus você se tornou um vencedor, frente à Convid. Que Deus lhe dê muitos anos de vida e saúde, com bastante inspiração literária, para nos brindar, aos domingos, com suas belíssimas crônicas.
    Sds. do amigo,
    Carlos Vieira Reis

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    1. Caro Amigo Carlos,
      Muitísssimo obrigado! Também lhe desejo muita saúde e que possa desfrutar por longos anos da convivência com sua família e amigos.
      Espero que o amigo esteja melhor, recuperando-se do acidente.
      Fico feliz que esteja sempre acompanhando as crônicas.
      Grande abraço!

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  2. Bom dia Parceiro! Tudo bem com vocês? Muito legal a crônica de hoje. Gostei muito, principalmente do desfecho. Parabéns!! Deus te abençoe.
    Enviado do meu iPhone
    >

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  3. Bom dia.
    Vim apenas desejar muita saúde e muita paz junto aos seus.
    Aproveito a dizer, que apesar de não morar mais no Brasil, a Internet me proporciona o privilégio de ter notícias de amigos do Metrô, e consequentemente todas as semanas ler suas crónicas.
    Parabéns.

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    1. Caro Armando,
      Obrigado por comentar.
      Graças ao bom Deus estou bem e atravessei este momento sem maiores consequências.
      Um grande abraço ao amigo e Valéria além, é claro, de toda a sua querida família!
      Fiquem com Deus!

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  4. Querido Irmão, foram dias difíceis e penso…intermináveis, que serviram para belas e profundas reflexões e reforço da valorização da Vida.
    Nada como um abraço forte de acolhimento e Amor.

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  5. Prezado Amigo, Muito boa noite, Que bom que já estejas bem . . . Eu sempre encontro uma referência em seus textos e esse, abaixo, é um síntese do que seja, para mim, viver bem: ” . . . mas logo perdeu peso e abriu caminho para uma fase de assimilar a situação e buscar viver aqueles dias da forma mais equilibrada possível”. Viver, da forma mais equilibrada, possível deve ser a nossa busca diária. Recomendações à Sonia.

    Livre de vírus. http://www.avast.com .

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  6. Não consigo nem imaginar a experiência de ser obrigado ao confinamento… Quanto aos castigos, lembro de ter sido como você na infância: sempre preferi apanhar da minha mãe do que ficar submetido aos castigos que meu pai aplicava. Apanhar dói na hora e depois passa, mas o castigo – para mim – tinha o tempo da eternidade…

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  7. Oi Antonio Carlos, fico feliz por voce estar bem, voce e Soninha, a familia…..Este isolamento abateu todos nos, com tristeza, com doencas, mas o que mais penso é sobre a sobrevivencia dos vínculos, nao como o seu e Soninha, como relatou no seu texto, que é um vinculo proximo, solido, mas ….. irmaos, primos, amigos….. a necessidade de estar com o outro, ……parece que podemos sobreviver sozinhos….. É uma nova forma de vida que , receio nos acostumemos…,só que mais triste! Risos, gargalhadas…. só com o outro, com outros ! Penso principalmente nos mais jovens . Eles conseguem viver com o celular … O celular basta …e sempre sisudos…. Seremos no futuro , fico imaginando, sem religiao (- re-ligare mesmo) ?,Cada um por si…. nos acostumamos a nao ir a Igreja, a Missa presencial e daqui a pouco ja nao nos faz falta …E receio que se consuma aquele ditado: “Longe dos olhos , longe do coracao.”. Nao sei se me fiz entender, afinal …o escritor aqui é voce !!!!

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    1. Querida Armanda,
      Seus comentários enriquecem o tema. Eu sou um pouco mais otimista e acho que não sobrevivemos sozinhos. Passada a pandemia, penso que voltaremos às relações, tão importantes na vida de todas as pessoas.
      Agradeço muito por você comentar e acompanhar as crônicas.
      Fique com Deus!
      Um carinhoso abraço!

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  8. Sempre me surpreendem e alegram suas histórias infantis. Hihihihi…

    É verdade. Tb experimentei essa sensação de privação de liberdade qdo fiquei 11 dias internada num hospital. Eu olhava as pessoas que andavam na rua e pensava “nossa, como essa mulher deve ser feliz. Ela pode ir aonde ela quer.” Sem dúvida, sentir na pele é diferente mesmo.

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  9. Linda crônica…
    Colocação perfeita quanto a experiência, que também acabo de passar em situação idêntica.
    Nada é mais precisoso que nossa liberdade.

    Parabéns Cacau @
    Bj

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  10. Antonio Carlos,
    Andei com o emocional abalado nas últimas semanas, com parentes, amigos e conhecidos doentes com covid e outras doenças.
    Não tem sido fácil todos esses acontecimentos, inclusive perdas de pessoas conhecidas.
    Tudo isso me deixou sem vontade de escrever ou fazer algo que precisasse de inspiração.
    A saída foi orar muito para esse período passar.
    Graças a Deus está melhorando.
    Abraços.

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    1. Querido amigo Newton,
      O que viveu no lado emocional tem sido muito comum nesta pandemia.
      É realmente uma situação difícil.
      Fico contente que esteja melhor. Sua espiritualidade com certeza possibilitou esta superação.
      A sua fé é forte e lhe deu a força que precisava.
      Receba o meu afetuoso abraço, meu amigo!

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