LIMITES

Houve uma época em que eu trabalhava num escritório na Praça Mauá no Rio de Janeiro. Meu pai, então com 91 anos, ainda muito ativo e lúcido, passava por lá umas duas vezes por mês para almoçarmos juntos. Propositalmente não avisava e assim era sempre uma grata surpresa.

De modo geral, ele não gostava de restaurantes e ainda me lembro que, até se aposentar, levava todos os dias uma marmita de casa para o almoço: era o único entre os colegas que adotava esta prática, àquela época já bem ultrapassada.

Mas o nosso almoço era uma exceção. Íamos a um restaurante numa pequena travessa da Rua do Acre, onde serviam carne de paca, animal cuja criação é rara, pois exige uma licença especial das autoridades do Meio Ambiente. Na realidade, o prato aparecia no cardápio como “coelho à moda da casa” deixando claro que havia algo suspeito, mas os clientes fechavam os olhos para isso em benefício do sabor rústico e excêntrico da carne do animal silvestre. Era saborosa e bem preparada. Afinal, muito melhor comer paca por coelho que gato por lebre…

O interessante é que o restaurante estava sempre cheio e praticamente a totalidade das mesas pedia o “coelho à moda da casa”. Soube há algum tempo que o estabelecimento fechou, mas em minha memória ainda estão nítidas as lembranças daqueles dias, mais pela companhia que pela gastronomia. Em especial, veio à minha lembrança um dia em que, após o almoço, no caminho de volta para o escritório, meu pai colocou a mão no meu ombro e disse:

— Vamos até o Banco.

— Pai, eu tenho compromissos de trabalho à tarde. Tem que ser agora?

— Sim. O Gerente está nos esperando.

— Para que?

— Vamos lá — disse ele, apertando um pouco a mão no meu ombro, evidenciando que eu não tinha escolha.

Chegamos à agência bancária na Rua Sete de Setembro e de fato o gerente nos esperava. Meu pai cumprimentou-o e disse:

— Este é o meu filho, de quem lhe falei. Preparou os papéis?

Fiquei sem entender.

O gerente levantou-se para buscar os tais documentos e perguntei:

— Que papéis são esses?

— Você vai entrar na minha conta corrente. Não quero mais mexer com dinheiro.

Fiquei perplexo. Meu pai sempre manteve suas finanças em segredo e nem com minha mãe compartilhava quaisquer informações. De repente, aquela decisão tão repentina quanto surpreendente. Ele ainda complementou, num tom de voz mais baixo:

— Estou ficando um pouco confuso com os números.

Daquele dia em diante passei a pagar as contas, organizar as aplicações e disponibilizar o dinheiro necessário para o dia a dia de meus pais. Foi assim por mais de uma década, quando faleceram, ele aos 103 anos e ela um ano e meio depois, aos oitenta e oito anos.

O fato me fez pensar que muitas vezes erramos por não enxergar nossos limites, ou não os respeitar. Ora nos excedemos indo longe demais, ora perdemos oportunidades indo longe de menos. Encontrar o ponto certo, nem além nem aquém, exige reconhecermos com alguma exatidão nossos limites e orientarmos nossas ações por estas fronteiras, nem sempre nítidas e claras. Talvez este seja um dos grandes segredos da arte de viver.

Começamos a vida com limites estreitos, muito estreitos. Com o crescimento, cada um de nós de acordo com a própria capacidade, vai ampliando e ganhando espaço para evoluir, conhecer e fazer coisas novas, expandir os horizontes e buscar a realização de uma vida plena na idade adulta. Posteriormente, vem o processo de envelhecimento e aí os limites passam a retrair-se aos poucos, reduzindo nossa independência e até nossa autonomia. Sim, porque ainda pior que depender da ajuda de outros é perder a capacidade de fazer escolhas e tomar decisões. Terminamos a vida de volta aos limites estreitos, muito estreitos.

Agora que também estou envelhecendo, olho para trás e cada vez admiro mais aquela atitude do meu pai. Sabia que ele era uma pessoa de coragem. Mas coragem sem sabedoria é mero arroubo. Neste episódio, ele reuniu ambas as qualidades, o que lhe permitiu perceber a nova restrição, saber que era irreversível e ter força e determinação para tomar a atitude necessária.

De fato, conforme a idade avança é preciso coragem e sabedoria para renunciar às nossas vontades quando o restringir dos limites assim o exigir. Felizes daqueles que conseguem, como as crianças, viver com alegria mesmo em limites estreitos.

 

Antonio Carlos Sarmento

37 comentários em “LIMITES”

  1. Querido Sarmento. Essa crônica ao inves de chamar-se “Limites” deveria se chamar “Minutos para sabedoria”. Eu hoje, aos 66 anos, em plena lucidez, graças a Deus, começo a ver que devo começar a compreender que está na hora de reduzir velocidade, exigir menos da vida, e confiar e investir na Fé em Deus. De coração te desejo, e a toda a sua família, um Natal conectado a nosso salvador, e de presente peço a Ele que te cubra de saúde. Meu presente voce vem me dando ao longo desse ano com suas crônicas. Muito obrigado.

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    1. Querido Luigi,
      Agradeço muito sua gentilíssima e carinhosa mensagem. É um agradecimento sincero que faço de coração.
      Considerar as crônicas como um presente recebido ao longo do ano, talvez seja o maior elogio que eu pudesse almejar.
      Desejo ao querido amigo e sua família, um Natal abençoado e que a lembrança do nascimento de Jesus revigore em vossos corações o amor, a paz e muitas alegrias.
      Um grande e carinhoso abraço!

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  2. Que maravilha! Palmas para seu pai.
    Um exemplo de lição, principalmente por mostrar toda a dignidade em saber a hora que devemos parar com algumas atividades reconhecendo nossas limitações à medida que o tempo avança.
    Parabéns !
    Cacau

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    1. Suas crônicas sempre são didáticas.
      Como estamos envelhecendo também, essa, em especial, foi uma maravilha.
      Feliz Natal para vocês.
      Muita curtição com o Gui, neto é uma benção.
      Beijos na Sonia, Tati, Jean, Gui e você.
      Guimo manda votos de um Natal de amor e paz.

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      1. Querida Cris,
        Neste ano atípico não pudemos viver o prazer de estarmos juntos em nosso encontro de final de ano, mas logo que possível faremos isto para recuperar o tempo perdido.
        Obrigado por seus comentários sobre a crônica e fico feliz que tenha apreciado.
        Um grande beijo à você, meu querido amigo Guimo e toda a sua maravilhosa família!

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  3. Meu irmão, sua crônica de hoje é um presente de Natal, não só pela lição de vida como pela doce lembrança.Parece que estou vendo vocês JUNTOS!!!
    De qualquer forma papai percebeu a confusão com os números mas preservou a lucidez pelos sabores…. um apreciador da boa culinária contumaz!!!!!

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    1. Minha querida irmã,
      Se achou a crônica um presente de Natal já estou feliz.
      É preciso lucidez para perceber que ela está diminuindo, o que é um verdadeiro paradoxo.
      E nosso pai teve este mérito.
      Não sei porque este episódio veio à minha memória, mas gostei de lembrar dele. E, pelo visto, você também!
      Valeu!
      Beijokas.

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  4. Quanta grandeza teve seu pai em, reconhecendo as próximas limitações, escolheu justamente o filho para confiar. Em geral, filhos tendem a ver pais como super-heróis, e pais fazem de tudo para que assim seja até o fim. Não foi o caso do seu pai, que teve a coragem de renunciar ao controle que nós, adultos, tanto prezamos. Que grande exemplo ele foi!

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    1. Pedro,
      Concordo muito com você no aspecto dos super-heróis que fazem tudo para assim permanecer mesmo não tendo mais condições para tal. Por isto achei que é preciso coragem e sabedoria para abrir mão deste papel na hora certa.
      Muito obrigado por seu comentário.
      Grande abraço e um Natal alegre junto à sua família!

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  5. Acho tão lindo pertencer à família dessas histórias. Tanto orgulho de vovô. Maravilhoso ter um pai que vai almoçar autonomamente aos 91 anos no centro do Rio, né? E parabéns a você por ter herdado essa confiança dele. 🙂

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  6. Prezado Antonio Carlos:

    Para este assíduo leitor de suas belas colunas, a frase que mais me calou e fez refletir sobre os poucos anos de vida que ainda tenho foi “De fato, conforme a idade avança é preciso coragem e sabedoria para renunciar às nossas vontades quando o restringir dos limites assim o exigir. Felizes daqueles que conseguem, como as crianças, viver com alegria mesmo em limites estreitos.”, que se traduz, na verdade, em um grande ensinamento de vida.

    Tem muita coisa a ver com o meu presente, já que minha filha Carla resolveu administrar meus negócios particulares, devido não só a pandemia, como, também, em razão dos meus 74 anos, com completarei no dia 02 de fevereiro.

    Parabéns pelas belas colocações e feliz erudição.

    Sds.

    Carlos Vieira Reis

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    1. Querido amigo Carlos,
      Uma das melhores coisas de escrever as crônicas é que me mantenho conectado com pessoas que gosto e admiro, como você, e que de outra forma talvez estivessem distantes.
      Agradeça a Deus por ter uma filha como a Carla que se dispôs a administrar seus negócios particulares – é um privilégio!
      Embora eu ache que o amigo ainda está muito lúcido e tem longos anos de vida plena pela frente.
      Aproveito para desejar ao caro amigo e sua amada família um Natal abençoado e repleto de amor e alegrias.
      Um abraço afetuoso e muito obrigado por seu comentário!

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  7. Grande Meu Amigo Sarmento, Muito bom dia, Li com muita atenção e interesse a sua crônica de hoje, bela e profunda, como sempre. Não tive o privilégio de conviver com o seu pai, mas recordo-me, com nitidez da nossa festa de formatura da ESG, no antigo Itamaraty, daquela figura ímpar, leve, solto, desenvolto e, sobretudo, alegre, naquele tempo com mais de 80 anos, penso eu. Meu caro, sempre procuro algo em suas crônicas que desperta a minha atenção. Hoje, a sua última frase, sintetiza o que tenho pensado há alguns anos: Felizes daqueles que conseguem, como as crianças, viver com alegria mesmo em limites estreitos. Recordar a criança que fomos um dia, nos torna longevos, e sábios, com certeza. Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Gui e ao pai dele, boas festas e até domingo que vem.

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    1. Querido e verdadeiro amigo JH,
      Seu comentário de hoje me emocionou. A lembrança de nossa formatura e você lembrar da presença dele foi demais.
      Muitíssimo obrigado, meu amigo de sempre!
      Fico sempre curioso por saber o que chamará mais sua atenção em cada crônica e nesta, este também seria o meu destaque.
      Desejo ao querido amigo, Sueli, Luizinho e Junior um Natal de muitas alegrias e emoções, provocadas pelo amor que une a sua família!
      Um generoso abraço!

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  8. Que recordação maravilhosa de almoçar com o vosso Pai…nos fez lembrar os almoços com o nosso Pai no Real Astória nos fins de semana…um forte e afetuoso abraço
    Armando e Valéria

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    1. Querido amigo Armando,
      Que bom ter trazido à sua lembrança os almoços com seu pai. Recordar é viver!
      Muito obrigado pelo comentário, meu irmão.
      Desejo um Natal abençoado à você, Valéria e toda a sua amada família!
      Grande abraço!

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  9. Que maravilha querido amigo.
    Realmente chegar a velhice e aceitar o estreitar do nosso caminho é uma dádiva de Deus.
    Essas suas histórias com seus pais são sempre exemplos significantes para todos nós.
    Que momento lindo você viveu e agora nos recorda com tanta clareza. Obrigado.
    Sobre a frase de efeito fico com a que coragem sem sabedoria é mero arrobo.
    Parabéns amigo. Quanta lição você nos passa.
    Abrs na Sônia,Tati,Jean e Gui.

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    1. Querido amigo Nei,
      Você dá exemplo de viver bem aos 80 anos. Aí está a sabedoria e coragem a que me referi na crônica.
      Agradeço muito seu gentil comentário e aproveito para desejar aqui de Portugal, um Natal muito próximo de Jesus pra você e Jaciara.
      Este ano será diferente, não pior. Aproveitem muito este momento excepcional e sintam a presença Dele em seus corações.
      Amamos vocês!
      Beijos.

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  10. Coragem, sabedoria e principalmente a humildade em reconhecer as mudança que o tempo provoca. Muitos não conseguem e complicam tudo, num período da vida em que a tranquilidade deveria ser o mote.
    Um pai a valer!

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  11. Antônio Carlos, que delícia de crônica! Lembrei do meu avô Joaquim sobre quem já conversamos e que faleceu ainda lúcido aos seus 110 anos. Algumas histórias que ele me contou nem mesmo minha mãe ou tios conhecem, conversávamos muito e me lembrei dele ao ler esse conto delicioso sobre seu saudoso pai. Abraços do amigo,
    Fabrício Lessa

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    1. Querido amigo Fabrício,
      Lembro-me bem de trocarmos impressões, você sobre o seu avô e eu sobre meu pai. Nós dois tivemos olhos para admirar estes personagens e sua sabedoria na velhice.
      Isto é muito bom!
      Muito obrigado por seu comentário, meu querido amigo!
      Um beijo para você, Anike, Lucas e Júlia! Que tenham um Natal feliz, em segurança.

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  12. Meu jovem amigo e irmão, Antônio Carlos.
    Eu gostei muito, parabéns, pelo belíssimo texto.
    Meu comentário:
    Segundo o evangelho: A ciência do sábio cresce como dilúvio e seu conselho é como uma fonte de água viva.
    Quem honra seu pai encontrará alegria nos próprios filhos, e no dia em que se dirigir a Deus, terá seus pedidos atendidos.
    Você é extraordinário em suas crônicas.
    Osluzio e família.

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    1. Meu querido amigo Oslúzio,
      Fico muito contente que tenha gostado da crônica e agradeço seus elogios.
      Aproveito para desejar ao amigo e sua querida família um Natal abençoado e que a paz de Cristo se faça presente intensamente no coração de vocês!
      Beijos em todos

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  13. Meu primo talentoso,
    Ouvir da propria familia é muito gratificante e prazeroso. Traz à mente otimas recordações. Ainda mais por se tratar do meu querido tio Alfredo.
    Ele também almoçava comigo quando eu fazia cursos no Centro Cultural Banco do Brasil. E se unia à turma que sempre gostava de sua presença.
    Muito interessante a reflexão de hoje -reconhecer os limites com sabedoria e resiliência . Felizes queles que encontram pessoas carinhosas que os ajudam a suprir essa dificuldade , com paciência e boa vontade.
    Tenho certeza de que você correspondeu perfeitamente.
    Grande abraço!

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    1. Minha prima querida,
      Com MUITA alegria recebo o seu comentário.
      Não sabia dos seus almoços com ele, mas sempre soube que gostava muito de você.
      Fico feliz que tenha gostado da reflexão e sei que também fez muito pelo seu pai, com grande carinho.
      Aproveito para desejar à você e suas filhas e netos, um Natal abençoado com a presença viva do Cristo, trazendo paz e saúde à todos.
      Um beijo afetuoso!!

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  14. Olá Antonio Carlos, bom dia ! Adorei a sua crônica e a sabedoria e determinação do seu saudoso pai. Que felicidade ter esta admirável lembrança.

    Abraço Fernando

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  15. Querido amigo Antonio Carlos,

    que sabedoria e momento oportuno para escrever esta crônica. Tive problemas parecidos com o meu pai, mãe e irmãos e tenho despertado para o fato de que estou velho. Sim, a idade chegou, o tempo passou e agora fico buscando força e sabedoria na fé para saber como fazer na hora que precisar compartilhar minha conta bancária e outras iniciativas com alguém. É um momento difícil mas que precisa ser enfrentado, sem dúvida.
    Obrigado pelas crônicas que me levam a reflexão sobre a minha vida.
    Um abração e um Natal com saúde e paz para você e todos da família.

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    1. Querido amigo Newton,
      Mais uma vez agradeço muito o seu comentário sempre gentil e elogioso. É bondade de amigo!
      Grato por tudo e também desejo à você e Nuri um Natal de muito amor e muita proximidade com Deus.
      Recebam o nosso afetuoso abraço. Se Deus quiser nos veremos em 2021 para matar as saudades!

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  16. Antonio Carlos gosto de ler suas crônicas. como diz o ditado popular, recordar é viver. estou vivendo um momento de grandes recordações de fatos vividos. algumas recordações muito felizes, mas também algumas me deprimem. no saldo final, acho que as boas recordações são maioria. abraços

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