CALOTEIRO

Uma das invenções humanas que mais admiro é o automóvel. Que coisa espetacular terem inventado uma caixa metálica que se desloca a uma velocidade umas 20 vezes mais rápido que uma pessoa e nos permite a liberdade de chegar com conforto e rapidez ao destino. E faz isto nos mantendo protegidos do vento, do sol e da chuva. Ainda abusaram, colocando bancos confortáveis, música a bordo, climatização e a cada dia acrescentam mais itens de conforto e segurança que vai tornando o carro, a meu ver, cada vez melhor.

O que dizer então do prazer de dirigir? Difícil definir em palavras a sensação da velocidade, a delícia de uma estrada aprazível numa tarde ensolarada, a sensação de ver a paisagem deslizando pelo vidro do carro como um belo filme.

Arrisco a dizer que nossa relação com o carro não é apenas pela sua grande utilidade. Existe também o encanto da propriedade, de ser dono dele. Em carros isto é muito forte, pois o carro que temos diz um pouco sobre nós mesmos. Por isto a gente escolhe com tanto cuidado o modelo e a cor.

É parecido com ter um cavalo: a gente gosta dele e também gosta de tudo que ele pode nos proporcionar. Uma coisa é ter, outra é utilizar. Isso explica os carros muito pouco rodados ou os cavalos que passam meses sem que o dono monte, sequer para um breve passeio. Até com livros ocorre este simples prazer de ter. Conheço pessoas que possuem muitos livros virgens… E continuam comprando. Só para ter, mesmo sem ler.

Certa vez comprei um carro novo, mas escolhi a cor errada (devo justificar: estava bem mais barato…). Era cor de abacate, juro! Não precisou muito tempo para que ele conquistasse minha total antipatia. A gente olha para o carro toda vez que vai entrar nele e sempre, neste momento, eu sentia o arrependimento. Em pouco tempo virou aversão e mal podia olhar para aquele monumento ao mau gosto. Vendi com dificuldade e prejuízo, porém aprendi a nunca mais cometer este erro. Na realidade aquele carro mais barato foi o mais caro que já comprei!

E este prazer de ter um carro que apreciamos, com o visual e design certos, às vezes nos leva a focar nos mínimos detalhes. Foi o que aconteceu com um automóvel que tive na década de 1980. Coisa linda, zero quilometro, todo preto com as rodas prateadas como era moda na ocasião. Encantado com o bólido, parti com minha mulher numa longa viagem de um mês pelas estradas do Brasil. Ai meu Deus, as estradas do Brasil…

Em certo ponto, que sei com exatidão, mas deixo de mencionar para não constranger ninguém em relação ao seu Estado natal, subitamente mergulhei a roda direita num buraco enorme, ou melhor dizendo, numa cratera a céu aberto! Foi bem no final de uma longa subida, quando o trecho fica plano, mas o carro ainda inclinado, não permite uma perfeita visualização do asfalto.

A pancada nos assustou, pois foi um barulho de bate-estacas! Fiquei transtornado. Meu carro novinho… Parei logo adiante para entender as consequências, rezando para não ser perda total. A roda de ferro apresentava uma deformidade grande provocada pelo choque com a borda do buraco e com isto, a calota prateada, linda e brilhante já não estava no seu lugar. Olhei em volta e nem sinal dela. Provavelmente com a violência da pancada foi parar longe.

Só me restou seguir viagem, contrariado com o episódio e em velocidade reduzida até que pudesse reparar a roda tão afetada. Ao chegar à cidade de destino procurei um borracheiro que desempenou a roda e restabeleceu seu formato circular, porém não tinha uma calota daquelas para vender e adiantou-me que provavelmente eu teria que comprar, não uma só, mas o jogo de 4. A chamada venda casada. Ah, o cumprimento das leis no Brasil…

Completei o resto da viagem com o carro naquele estado, ou seja, pleno em suas utilidades, porém deficiente em sua aparência. Parecia uma mulher linda quando olhada do lado esquerdo, mas do lado direito era como se a mulher sorrisse e estivesse faltando um dente na frente.

Em todas as cidades em que estive tentei achar a calota, sem sucesso. Ao final, sem solução, empreendemos a viagem de retorno com o desdentado. Qual não foi a minha surpresa quando, logo após passar no ponto onde deu-se a “extração do dente”, notei uma barraca na beira da estrada vendendo calotas. Uma instalação precária, mas enfeitada por amarrados de calotas penduradas como bandeirinhas de festas de São João. Na ida eu não havia notado o estabelecimento, até porque o dente ainda não havia sido arrancado.

Saltei e logo um “especialista” veio ao meu encontro:

– Procurando calota para o carrão, doutor?

– Você tem aí a calota deste carro?

Em segundos voltou com a calota na mão e instalou na roda. Encaixou perfeitamente e era exatamente igual às demais. Eu tive a certeza de que era a minha mesmo que havia ficado ali, me esperando, saudosa do seu verdadeiro dono.

– Quanto custa?

– Faço um preço camarada para o senhor.

Cheguei a pensar em não comprar, afinal era a minha calota e não caberia comprar algo que me pertence. Queria também desincentivar aquele comércio, a meu ver desonesto ou, no mínimo, oportunista. Mas as dificuldades até então para achar a peça e o restabelecimento da beleza original do carro, me levaram a fechar o negócio. A chamada compra por impulso.

Porém, pensei eu, vou denunciar esta turma na primeira delegacia que encontrar. Provavelmente estão mantendo o buraco aberto e ganham a vida desta forma. Para eles, se poderia ratificar o velho ditado de que a vida é um buraco…

Imagino que, com a experiência, já ficavam no mato, a postos, na área exata onde as calotas das vítimas iam parar. Se um dia algum deles tivesse que responder que profissão exercia, não teria outra alternativa senão declarar: caloteiro!

De volta ao carro e retomando a viagem comentei o ocorrido com minha mulher e, para atenuar minha culpa por ter cedido, mencionei a intenção de denunciar o caso à polícia. Ela olhou de lado, deu um sorriso amarelo e balançou levemente a cabeça em desaprovação. Pensei então na cena, ao chegar na Delegacia:

– Policial, fui vítima de um sequestro e tive que pagar resgate.

– Sim. Mas está tudo bem agora?

– Está. Mas a polícia precisa agir.

– Claro. Quem foi sequestrado?

– A calota.

– Carlota de que? Nome completo, por favor.

Desisti.

Minha mulher tinha razão.

Antonio Carlos Sarmento

26 comentários em “CALOTEIRO”

    1. Pedro,
      Sei que muitos jovens, como você, estão deixando de buscar possuir um automóvel. Mas, para mim, o libertador é ter a chave do carro no bolso, à disposição em qualquer momento. E sair dirigindo por aí.
      Grato pelo comentário!
      Abraços

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  1. Caro Antonio Carlos:

    Você não tem ideia do prazer que sinto ao dirigir um carro antigo, pelas nossas ruas. Este prazer me levou a formar uma coleção de “antiguidades” que vão dos anos 50 até 1960.

    É reviver um passado muito gratificante, com toca fitas tocando músicas dos anos 60.

    Parabéns pela coluna e especialmente elo seu gosto por automóveis.

    Sds.

    Carlos Vieira Reis

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    1. Caro Carlos,
      Sei deste seu gosto por automóveis antigos. E confesso que também me atraem, embora não tenha a inciativa de adquiri-los, como você fez. E sei que os conserva muito bem.
      Viva o mais intensamente possível este prazer!
      Muito obrigado pelo comentário, meu amigo!

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  2. Ótima crônica! Conheço bem esse amor por carros. Só sentimos o prazer total da viagem, se o carro atender às necessidades e aos sonhos.
    Torço para que , em seus próximos escritos, as estradas do Brasil estejam melhores e possa descrever as suas belezas e a sua segurança. Colocamos nossas esperanças num Governo sério.
    Parabéns e um grande abraço!

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  3. Quando jovem eu tambem era fanatico pelo meu primeiro carro. Lavava-o dia sim, dia não. A cor nao era bonita, mas como naquela epoca havia “pedagio” pra comprar carro, foi aquele mesmo. Mas sofri muito bullying por causa da cor.. Um dia assistindo um programa de TV, vi um cara perguntar ao entrevistado: qual a cor predileta de carro na sua opinião. Ele respondeu: qualquer uma, eu ando DENTRO do carro. Achei a resposta genial e que teria resolvido meus bullyngs daquela epoca. Bom domingo, boa semana e fiquem com Deus voce e sua familia.

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  4. Legal essa crônica para degustar num domingo calorento aqui no Rio.
    Quem não teve um carro que não gostasse da cor?
    Tive um Fusca amarelo Kodak. Era horrível… Meus colegas o apelidaram de amarelo cocô…
    Sobre o caloteiro é coisa de brasileiro… Desculpe a sinceridade … E o perigo de acidentes !!!
    Saudades. Abrs.

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  5. Querido Irmão,
    O prazer de dirigir é indescritível, confesso que para mim é como se fosse uma seção de terapia. Quanto maior o trecho à ser percorrido mais me acalenta. Hoje com o conforto e opções dos fabricantes chega ser difícil a escolha.
    Com sua crônica de hoje lembro de um colega de trabalho que todos os dias após o jantar dos três filhos colocava as crianças no carro, já prontos para dormir, e dava uma volta na Lagoa Rodrigo de Freitas , percurso perfeito para eles adormecerem e então levá-los direto para as camas.
    Por prazer ou por necessidade considero o carro fundamental para meu dia a dia, de preferência todo impecável conforme adquirido.
    Ainda bem que os carros não possuem mais calotas, porque as “crateras” no asfalto continuam, assim como os “caloteiros” (aqui com outro significado) cada vez mais em número crescente.
    Beijos e saudades .

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    1. Minha irmã,
      Sei do seu gosto pelos carros, do qual compartilho. E também gosto dos passeios, mas não tão longos quanto os seus…
      Obrigado por seu comentário. Ficamos sabendo que o carro também pode ser um excelente berço para ninar crianças!
      Beijos saudosos!

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  6. Eu gosto de curtir o carro, mas nunca fui muito cuidadoso embora adore dirigir… cor abacate é brabo! rsrsrs…tive um azulão rsrsrs…
    Muito boa a crônica, como sempre, o final da calota. É ótimo!
    Valeu Cacau!

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  7. Na verdade não gosto de dirigir e tenho medo de estradas. Posso passar 15 horas num avião mas não passo duas horas na estrada. Adorei a sabedoria da sua mulher!

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    1. Lúcia,
      Está aí um ponto em que o nosso gosto não combina: eu detesto aviões e só viajo neles quando não há alternativa.
      Não é por medo, mas pela monotonia…
      Muito obrigado pelo comentário e desejo uma excelente semana!
      Beijos

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  8. Grande meu Amigo, Muito boa noite, Mais uma deliciosa crônica . . . Recomendações à Sonia e demais familiares de além-mar . . .

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  9. Cau,
    Também curto carros e dirigir é um ato de independência fundamental para “dirigir” a própria vida!!
    Creio você escolheu a formação acadêmica certa, quando optou pela engenharia mecânica!!!
    Já os caloteiros….🙄

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  10. O automóvel é um ícone na vida de muitos de nós, uma extensão da família como bem colocado no texto.
    Os borracheiros e mecânicos são a parte cômica e até folclórica deste pedaço da família.
    Obrigado por mais esta reflexão, abraços.

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    1. Caro primo Rômulo,
      De fato é melhor levarmos com bom humor os borracheiros e mecânicos…
      Felizmente os novos carros já não precisam de reparos tão frequentes.
      Grato por comentar e envio um grande abraço a todos por aí!

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  11. Meu primo,
    Interessante você pontuar o quanto os automóveis representam os homens.
    E nós, mulheres , o que retrata nossa imagem, na sua opinião?
    Tomara que não sejam os carros, também. Imagina como me vêem todos os que me observam, enquanto chego com meu pequeno Uno Vivace, sempre empoeirado…
    Carinhoso abraço.

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    1. Querida Prima,
      Claro que nem todos têm o gosto pelos automóveis.
      Conheci um francês que, apesar de abastado, possuía um carro popular, bem velho e sempre sujo. Um dia perguntei-lhe por que não comprava um carro melhor e ele disse simplesmente que não dava nenhum valor a isso: bastava que o levasse onde queria e fim.
      São as diferenças entre as pessoas que tornam tudo mais interessante, não é?
      Obrigado por comentar e retribuo o carinhoso abraço!

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