ESTÁ ERRADO

É praticamente um consenso que muito mais se aprende com os erros cometidos que com os acertos. Dizem até que os mais espertos são aqueles que aprendem muito com os erros dos outros. Frases como “os erros são os portais das descobertas” são aceitas e até apreciadas pela maioria de nós.

Entretanto, na prática, parece que a realidade é bem diferente. Quase ninguém fala de seus erros, quase nenhum livro de autoajuda se baseia em equívocos cometidos, quase nenhum curso tem em seu conteúdo experiências mal sucedidas. Nunca assisti uma palestra na qual o relato fosse de derrota…

Toda instrução e conhecimento se baseia em acertos. Só vejo títulos que falam em leis do sucesso, regras para a vida saudável, segredos para a felicidade, hábitos para ficar rico e coisas semelhantes. Fico achando que o destino dos erros é um sepultamento rápido, sem velório, em cova profunda e sem identificação.

No mundo em que vivemos parece ser assim: os erros ficam no rascunho e só os acertos passamos a limpo. Dedicamos aos acertos, a glória e aos erros, o ostracismo. Ou seja, aos acertos, o estrelato; aos erros, o anonimato.

Talvez pouco saibamos até sobre os nossos próprios erros, pois tenho a impressão de que não nos debruçamos muito sobre eles, mesmo nas raras vezes em que os reconhecemos. De certa forma, parece que contar um erro cometido é auto depreciativo e, portanto, os guardamos no íntimo, cuidadosamente.

Quando nosso erro se torna público, é muito comum procurarmos um álibi, uma justificativa ou até uma esquiva. É assim desde a criação do mundo, quando Deus pergunta a Adão se comeu do fruto proibido e ele, sem pestanejar, diz que foi Eva quem o convenceu. Esta, por sua vez, também procura se isentar do erro e transfere a culpa para a serpente… Quantos jogos destes encontramos e até fazemos pela vida afora.

Ser flagrado em erro então, é terrível. Seja no trabalho, na família ou no ambiente social, pode significar um desastre ou, quem sabe, resultar num rótulo negativo que pode durar muito ou até para sempre. Ter que assumir um erro nos leva a sofrer de arrependimento e nos martirizamos até esquecer o infeliz acontecimento. Via de regra, maior e mais duradouro o dissabor de um erro cometido que a efêmera alegria de um acerto.

Enfim, parece haver uma conjugação fatal da ideia de que “errar é humano” com a de que “perdoar é divino”, ou seja, se errou por aqui é bom se preparar, pois o perdão não é assunto nosso!

O erro de fato útil talvez seja aquele que só nós sabemos que cometemos e assim, abrigados da crítica alheia, temos serenidade para refletir e tirar valiosas lições. Esta ideia me fez lembrar uma passagem, quando eu tinha uns 12 anos.

Desde criança, eu costumava acompanhar a preparação dos pratos na cozinha de casa, comandada com muita habilidade pela minha mãe. Aquilo me encantava: descascar, picar, misturar, temperar, assar e todas as alquimias envolvidas na preparação da comida, que resultava sempre deliciosa.

Minha mãe cozinhava maravilhosamente bem, sendo difícil saber se era melhor em doces ou salgados, o que aumentava ainda mais a minha motivação. O fato é que algumas receitas, muitos anos depois, ainda são repetidas frequentemente nas mesas da família, alegando que é em homenagem a ela, quando na realidade deveríamos confessar que é mais por gula mesmo!

Ao longo da minha infância, pelo meu constante interesse, minha mãe foi me encarregando de etapas na preparação dos pratos, o que muito me alegrava e envaidecia. Inicialmente eram coisas como descascar as batatas, picar alguma coisa, pegar uma travessa no armário, untar uma forma e outras tarefas secundárias. Com o tempo, para me incentivar, passou a permitir que eu me envolvesse diretamente na preparação dos pratos, colocando temperos e acrescentando ingredientes.

Foi assim que, certa noite, estávamos preparando uma cocada com leite condensado e abacaxi, que levava muito tempo cozinhando na panela, em fogo brando. Minha mãe então me surpreendeu:

— Você que vai preparar a cocada hoje. Tem que mexer com frequência para não agarrar no fundo e controlar até atingir o ponto certo. Pode fazer isso?

— Claro, mãe — respondi, orgulhoso.

Fomos para a sala assistir televisão e eu, zeloso de minha responsabilidade, a cada dez ou quinze minutos ia até a cozinha mexer a panela e avaliar o ponto. Voltava de lá com ar de especialista e minha mãe me olhava, como a inquirir se estava pronto. Do alto da minha sabedoria e experiência eu afirmava categórico:

— Ainda não está no ponto.

Mesmo preocupada em perder a receita, minha mãe permanecia firme na decisão de me conceder a preparação do prato. Era muito generosa.

Lá pelas tantas notei que a cocada estava no ponto ou perto dele e resolvi provar a iguaria para melhor avaliar. Só que escolhi um método absolutamente irracional e inadequado: levantei a colher de pau e, sem pensar, derramei uma pequena porção na palma da mão esquerda. Após tanto tempo no fogo, o preparado parecia lava de vulcão no momento da erupção.

Sem saber o que fazer, excedi-me em burrice e tomei a mais insensata das decisões: joguei na boca! Passei então a saltitar como se estivesse fritando por dentro e fui mudando a posição da cocada incandescente na boca até conseguir engolir. Quanta estupidez!

Claro que, com isto, consegui queimar a boca em muitos pontos e a língua em todos. A prova virou uma provação. Mesmo abalado, concluí que a cocada estava pronta e apaguei o fogo. Voltei para sala com as queimaduras ardendo, sem conseguir falar já que a língua estava em chamas, mas mantendo a pose de mestre cuca.

Ao olhar de minha mãe, respondi com a elevação do polegar direito — a mão esquerda estava imprestável.

Ela ficou na dúvida e pediu confirmação:

— Ficou pronta? Já desligou?

Balancei a cabeça afirmativamente.

— Que ótimo! Fez tudo direitinho. Depois que esfriar eu vou ver.

Esfriar era tudo que eu queria. A mão esquerda ardia, porém o interior da boca era muito pior: parecia um forno siderúrgico. Acho que nem umas 30 pimentas jalapeño produziriam a mesma sensação…

Fui dormir de mão espalmada e boca aberta. E é claro que nunca mais provei comida deste jeito.

Já aos 12 anos, sem precisar da orientação de ninguém, guardei a falha no meu íntimo. Queimei a boca e a mão, mas não a minha imagem perante aquela que acreditou em mim. Está errado. Mas às vezes, o errado dá certo…

 

Antonio Carlos Sarmento

25 comentários em “ESTÁ ERRADO”

  1. Quem nunca queimou a boca, lingua, ceu da boca, etc pela falta de experiência ou mesmo ansiedade de testar o prato. Otima lembrança. Afirmo que os grandes chefs aprenderam sua nobre arte com a mãe e avó, notadamente se de origem europeia… Boa lembrança. Bom domingo e que Deus o abençoe.

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    1. Amigo Luigi,
      Isso mesmo! Queimar a língua é tão comum que virou até uma expressão do nosso idioma.
      Mais uma vez agradeço ao amigo a generosidade de sempre comentar as crônicas. É um grande incentivo!
      Muito obrigado e tenha uma ótima semana!

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  2. Muito interessante toda a colocação, os nossos erros são a maior fonte para nossos aprendizados, desde que tenhamos a autorresponsabilidade e assumirmos o acontecido.
    Quem nunca errou?
    E queimar a boca faz parte disso, tanto na questão diretamente ligada, no exemplo acima,ou quando queimamos a língua ao falar de alguém.
    Excelente crônica!
    Cacau cada dia melhor.
    Abraço saudoso.

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  3. Que linda lembrança Cacau da nossa mãezinha , cozinhava e cuidava de nós maravilhosamente bem!!!
    Os erros são inevitáveis mas aprender com eles é uma arte mesmo!!!
    Mamãe foi uma grande mestra e você um aprendiz exemplar.
    PARABÉNS!!!!

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  4. Meu caro Antonio Carlos:

    Nos meus 74 anos de vida, já passei por muitas experiências negativas e positivas. Mas confesso-lhe que, das negativas, extrai bons ensinamentos, que me são úteis nos dias atuais.

    Parabéns, mais uma vez, pelo excelente artigo.

    Sds.

    Carlos Vieira Reis

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    1. Caro amigo Carlos,
      Agradeço novamente por seus assíduos e gentis comentários.
      Tenho certeza de que aproveitou muito bem as lições que a vida lhe trouxe, pois chegou aos 74 anos com muito sucesso pessoal e profissional.
      Grande abraço!

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  5. Ri muito, pois já experimentei a mesma tragédia.
    Parece que é instintivo retirar da mão e colocar na boca.
    Quanto a esconder as más experiências, também me parece bem instintivo, quem quer ser responsável por algo errado?
    Bom domingo e abraços.

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  6. Adorei , até porque até hoje me queimo. Quando pequena , “ roubava “ da panela o arroz que estava sendo feito por minha avó que ficava desesperada com a quantidade de colheres dentro da pia, que denunciava quanto havia sido roubado. Vira e mexe, no afã de que ninguém me visse , a queimadura era certa. Até hoje, aos 72 anos, tenho meus momentos de roubar arroz e aí, os olhos lacrimejando, a língua queimada, me trazem de volta minha avó brigando: menina não vai sobrar pro almoço! “ xispa” da minha cozinha!!!
    Obrigada pela recordação

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  7. Prezado Amigo, Muito boa tarde, Bastante interessante, eu diria mesmo instrutiva, a crônica de hoje . . . Há poucos anos me deparei com a afirmação: “o erro é o começo do acerto”, avancei na pesquisa e descobri que de fato, o erro é o começo do acerto, desde que dele se tire algum conhecimento, a experiência vivida por você, comprova exatamente isso, ou seja, independente de contado ou não para alguém o episódio, tirou vários aprendizado dele, a tal ponto que tantos anos após o ocorrido, relembra-o de uma forma que pode servir de ensinamento para outros seres, não necessariamente tão jovens como você na ocasião . . . Parabéns!!!! Recomendações à Sônia e aos familiares de além-mar . . .

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  8. Mais uma vez, palmas!!!
    Colocações muito bem feitas!!
    Cada parágrafo retrata uma fraqueza que temos diante dos nossos ” deslizes”.
    Mas há um tipo de erro que vejo com mais condescendência: o exagero – exagero de atenção, exagero de carinho, de gentileza, de compreensão, exagero de paciência e de amor. E preferível errar na dose a deixar de oferecer.
    Grande abraço!

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    1. Querida Prima Gena,
      Seus comentários sempre trazem uma colocação para enriquecer o texto: “é preferível errar na dose a deixar de oferecer”.
      É mais um caso do errado que dá certo…
      Beijos prima e desejo uma semana abençoada!

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  9. Querido Irmão!!
    Acertos/Erros/ Desacertos todos nós tivemos e aprendemos ou tivemos lições com eles por isso somos “experientes”.
    Quanto ao aprendizado com nossa Mãe, maravilhosa “gourmet”, lamento não ter tido curiosidade de acompanhá-la nos preparos, um erro!
    Essa Cocada Cremosa (dos “Deuses “) assim como o Quebra-queixo e a Cocada Baiana, deixaram saudades maiores ainda do cuidado, amor e dedicação que ela acrescentava à cada prato executado.
    Acerta a mão aí a meu Irmão, sem queimá-la (rs..rs..) , para repetir a receita e juntos matarmos saudades de nossa Glorinha!
    Beijos. Saudades de vocês.

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    1. Minha querida irmã,
      Eu gostaria muito de fazer o doce e juntos matarmos as saudades da nossa mãe, mas mesmo tendo queimado a mão e a língua, a receita não ficou na memória…
      Obrigado por seu delicioso comentário!
      Beijos e uma maravilhosa semana.

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    1. Querido amigo Nei,
      A Cacoa é a minha irmã caçula (Sonia) e não a Beth, mas isso não tem a menor importância pois de fato foram comentários emocionantes.
      Tenho notado a sua predileção pelas crônicas familiares. Deve ser por tanto amor que dedica à sua própria família!
      Obrigado por comentar, meu amigo.
      Bjs a você e Jaciara!

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  10. Crônica maravilhosa, Antônio! Adoro seus resgates da infância para contextualizar o tema. Esse foco nos acertos e apagão dos erros mostra como às vezes não damos atenção para a caminhada, para o processo. O foco de atenção fica no lugar em que se quer chegar.
    Um abraço!!

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