POR ACASO

Meus 11 anos foram inesquecíveis. Não por fatos positivos ou festivos, mas porque tive hepatite. Fui diagnosticado com a doença no meio do ano.

O médico me perguntou se, por acaso, eu havia bebido água em algum local fora de casa. Tive que confessar que, durante o período das férias de julho, após o futebol quase diário, todos os meninos bebiam água numa torneira próxima ao campo.

Ao ouvir a confissão, ele pendeu a cabeça em direção ao ombro direito, espichou os lábios, franziu a testa e mostrou a palma das mãos, evidenciando que ali estava a causa da doença. Minha mãe, que me acompanhava na consulta, logo quis mudar o foco da causa para a consequência e indagou sobre o tratamento. Ficamos então sabendo que seria longo e com muitas restrições alimentares. E, de fato, assim foi.

Na ocasião eu estudava em um colégio público, pois meu pai andava sobrecarregado de despesas: com apenas o seu salário sustentava a mulher, quatro filhos, a mãe e uma irmã solteira. As escolas públicas em geral tinham boa reputação, mas infelizmente não era o caso da minha…

Para dar uma ideia do rigor do colégio, basta contar que em determinado ano fui monitor da turma, encarregado de carimbar o comparecimento dos colegas na caderneta escolar. Muitas vezes, no horário das aulas, formávamos um grupo para jogar futebol ou passear num parque próximo e lá eu generosamente distribuía abundantes carimbadas de comparecimento nas cadernetas dos faltosos e na minha própria. Naquele colégio nomeavam bandido para xerife…

Por conta da doença perdi praticamente todo o segundo semestre do ano letivo. Quando me restabeleci, o colégio decidiu que eu deveria fazer as provas finais de todas as disciplinas, junto com os demais alunos, como se tivesse frequentado as aulas. Se conseguisse bons resultados, eu passaria de ano apesar das faltas.

Ainda convalescendo da doença, precisei ser autodidata. Mergulhei profundo no conteúdo das matérias, debatendo-me entre livros e apostilas e recorrendo a minha mãe para explicações complementares. Foi uma experiência tensa e cansativa, pois ao invés de absorver o conhecimento de modo gradativo, progressivo, fui obrigado a deglutir doses cavalares de informação sem muita orientação e prioridade. Foi como ficar muitos dias sem comer e de súbito, num único dia, devorar tudo que ficou acumulado…

Finalmente chegou a época das provas. No primeiro dia, mesmo tendo almoçado pouco, devolvi tudo no banheiro do colégio antes de iniciar as provas — era muito nervosismo para um pré-adolescente.

Como todos os alunos, eu só teria uma segunda chance em três matérias, ou seja, ser reprovado em quatro ou mais significava ter que repetir o ano.

Saiu o resultado e foi uma decepção: reprovado em quatro matérias!

Minha mãe, mesmo assim orgulhosa do meu desempenho, manifestou ao meu pai sua inconformidade:

— Passou na maioria das matérias, apesar da doença. Ótimo resultado. Das quatro que não conseguiu a nota, uma foi Português, onde faltou apenas meio ponto. Se a professora revisar a nota, ele poderá fazer as provas das outras três e tentar não perder o ano. O menino merece, se esforçou tanto.

— Eu vou no colégio falar com a professora. — respondeu meu pai, determinado.

Acho que foi única vez em que ele esteve no colégio de um filho, pois na ocasião esta era uma função de minha mãe.

Eu fui junto. A conversa com a professora foi péssima. Ela abriu minha prova, folheou para frente e para trás e ao final declarou que nada poderia fazer, não obstante meu pai explicar a excepcionalidade da situação.

Eu sai de lá frustrado. Meu pai saiu de lá indignado.

No caminho para casa, desabafou:

— Vou procurar outro colégio para você. Esse aí, nunca mais!

Acabei sendo matriculado num colégio particular, pertinho da minha casa, na época o segundo melhor do Rio de Janeiro. Minha vida melhorou muito: 5 minutos a pé até a escola e um outro patamar de organização e ensino. Estudei lá por muitos anos, até entrar para universidade. Guardo ótimas lembranças deste período tão importante da minha vida.

Estes acontecimentos brotaram na minha memória quando, andando pela rua, passei por duas pessoas que conversavam e uma delas deixou nos meus ouvidos uma frase muito conhecida:

— Nada é por acaso!

Foi só o que ouvi. Claro que eu não sabia o contexto da conversa e, portanto, não tinha como avaliar esta opinião.

Mas fiquei pensando naquela frase e lembrando que muitos acham exatamente o contrário, pregando que tudo é por acaso. São ideias completamente antagônicas: se nada é por acaso, os acontecimentos de nossa vida são consequência dos nossos atos, mas se tudo é por acaso, tais acontecimentos são imprevisíveis.

Nada é por acaso… Se assim for, peguei a hepatite porque bebi água contaminada, fui reprovado porque meu nível de conhecimentos foi insuficiente, mudei de colégio porque meu pai excepcionalmente se envolveu no assunto.

Tudo é por acaso… Peguei hepatite por acaso, já que isso não aconteceu a nenhum outro companheiro do futebol, fui reprovado por acaso, devido a uma professora intransigente, mudei de colégio por acaso já que meu pai nunca se envolveu com colégios dos filhos e ainda, por acaso, morávamos perto de uma excelente escola.

Enfim, acho difícil afirmar que nada seja por acaso, como também não acredito que tudo seja por acaso. Há coisas que, sem dúvida, são consequências diretas de nossas atitudes e decisões. Mas também existem os acontecimentos fortuitos, independentes de nossos atos e vontades.

Ou seja, o acaso existe mesmo e seu impacto em nossa vida pode ser enorme, mudando nossos planos e nosso destino, para melhor ou pior. Acho que a nós cabe sempre fazer o melhor possível dentro das circunstâncias que o acaso nos trouxer. E ele trará, para o bem ou para o mal, queiramos ou não.

É preciso viver sabendo que, por mais cuidado que tenhamos, por mais planos que façamos, por mais desejos que alimentemos, por mais preparados que estejamos, o acaso pode vir e nos surpreender. É certo que a vida é incerta!

Vem à minha mente uma cena do genial filme “O Náufrago”, com o igualmente genial Tom Hanks. Há um momento em que ele já está quase desesperançado de conseguir sair da ilha onde estava isolado por muito tempo, após sobreviver à queda do avião em que viajava. É quando ouve um barulho de algo que, com o movimento do mar, bate de modo repetitivo numa pedra. Era uma porta do banheiro do avião. Ele recolhe o objeto, coloca-o na areia da praia e fica olhando-o sob vários ângulos. Leva nesta observação muito tempo, tentando imaginar de que modo aquele acaso lhe poderia ser útil. Acaba por usá-lo como uma vela numa jangada, conseguindo assim ultrapassar as ondas da arrebentação e lançar-se em busca do salvamento. Ou seja, deu ao objeto uma utilização decisiva para o seu destino.

Ficou a profunda lição de que não temos como controlar o que a vida pode nos trazer, mas podemos sim, refletir e buscar sempre a sabedoria de fazer o melhor possível com aquilo que o acaso nos oferece.

Resta-me assim discordar da bela música “Epitáfio” consagrada pelos Titãs, pois não acredito que “o acaso vai me proteger, enquanto eu andar distraído”. É melhor andar bastante atento para fazer o melhor possível com aquilo que, por acaso, chegue em nossa vida.

Antonio Carlos Sarmento

32 comentários em “POR ACASO”

  1. Excelente!
    Perfeita colocação, as oportunidades surgem não por acaso, as graças nos são dadas todos os dias, depende de nosso olhar para o que acontece, e a gratidão é fundamental, em todos os casos.
    Exemplo
    Uma batida de carro: O otimista diz: Ainda bem que só quebrei o braço, poderia ter morrido, graças a Deus! …O pessimista: Que droga e agora? Carro amassado, braço quebrado, que azar!
    Tudo se torna benéfico com os “acasos” da vida, quando enxergamos com os olhos das possibilidades positivas no futuro.

    Parabéns Cacau!
    Beijos

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    1. Isso aí, Chico!
      Recebemos graças e dores: depende de nós fazer bom uso delas em nossas vidas.
      E sempre confiar em Deus!
      Grande abraço e obrigado pelo seu comentário, que sempre acrescenta uma nova reflexão.
      Bjs

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      1. Querido Cau, meu irmão, agradecemos por mais esta belíssima crônica, muito bem escrita, que contribui para enriquecer a experiência de vida de todos nós. Na ocasião também tomávamos água da BICA da Raínha? Lembra-se?
        Reflexão desta crônica agrega valor no grau de sabedoria para o bem viver, não por acaso. PARABÉNS Forte Abraço.

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      2. Querido irmão Wellington,
        Me lembro da Bica da Rainha como se fosse hoje. Fui muitas vezes lá com nosso pai, que estava sempre em busca de uma boa água, sem cloro, para beber.
        Obrigado pelos gentis comentários: fico feliz que tenha gostado da crônica.
        Uma maravilhosa semana para vocês, em especial para Aquiles e Saulo!

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  2. Adorei a conclusão. Bela reflexão. Também sempre me questiono sobre o quanto devo agir em pensamento e comportamento e o quanto devo deixar a cargo de Deus – meu “acaso”.

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    1. Noivinha,
      Confiar em Deus já é um grande passo para enfrentar os “acasos” e deles tirar bom proveito.
      Por exemplo, se “por acaso” não houver voo de Portugal para o Brasil até maio, iremos à nado ao seu casamento… hahahaha
      Beijos e obrigado por comentar!

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  3. Muito do que ocorre conosco está escrito nas estrelas, já nascemos com destino.
    Outra parte depende de nós e ainda tem uma terceira, completamente aleatória., sem explicações, como se para nos informar da imprevisibilidade da vida e confundir.
    Só nos resta levantar as mãos para o céu e agradecer.
    Bom domingo

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    1. Caro primo Rômulo,
      Concordo com você.
      Não há dúvida de que muito do que acontece depende de nós, já que somos dotados do chamado “livre arbítrio”.
      O mais fica no terreno das explicações que não alcançamos e aí depende da fé de cada um de nós.
      Grande abraço Primo e grato pelo comentário!

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  4. Caro Antonio Carlos:
    Com muita atenção li a sua bela coluna. De fato o “acaso” sempre rompe em nossas vidas, trazendo alegrias ou dissabores, por vezes insuperáveis.
    Bom domingo,
    Sds.
    Carlos Vieira Reis

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  5. Ótima crônica e fez me lembrar do início da minha hepatite . Também devido a água contaminada cheguei na casa dos meus avós na ilha do Governador para começar minhas férias em janeiro com uns 14 anos. No final do primeiro dia de férias, febre! Falei com meus avós para não se preocuparem que no dia seguinte estaria bom. Mas minha avó saiu escondida para telefonar na padaria num telefone a manivela para o meu pai. Fim de férias! Depois do jantar chegou meu pai para me apanhar. Janeiro e fevereiro passei em repouso e dieta sem gordura. Saúde pública sempre deficiente ! ABS. Bom domingo.

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    1. Isso aí, Mario Guilherme!
      Vivemos experiências semelhantes. A hepatite pegou muita gente nesta época e o tratamento restringia muito a alimentação: praticamente gordura zero! Felizmente sobrevivemos!!
      Muito obrigado pelo comentário.
      Grande abraço!

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  6. Caríssimo amigo.
    Quanto a mensagem passada pela crônica não vou fazer comentários pois já estou acostumado…
    Fiquei surpreso apenas por esse lado negro da sua vida de xerife bandido carimbador de carteirinhas estudantis. Isso justifica algumas desconfianças que eu e o Chico tínhamos de você. Mas vamos deixar pra lá.
    Quanto a sua reprovação em Português foi muito boa.
    Isso ocasionou esse escritor maravilhoso que você é …
    Não foi por acaso essa reprovação…
    Grande abraço amigo. Saudades.

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    1. Querido amigo Nei,
      Muitas saudades. De verdade!
      Obrigado por seu comentários, que começaram mal, mas depois recuperaram todo o terreno perdido…
      Muito obrigado por seus elogios. Seus comentários sempre me interessam.
      Um grande abraço à você e Jaciara!

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  7. Mais uma bela crônica . Falando nos acasos, um amigo me disse certa vez que “coincidência” são milagres que Deus não quis assinar. Bela frase e concordo com ela. Bom domingo e que Deus o abençoe.

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  8. Querido Cacau ,
    E não foi por acaso que nascemos do mesmo ventre e somos irmãos!!!
    Que privilégio, que maravilha, que sorte!!!!
    Saudade danada…..😘

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  9. Caro Amigo, Você me obriga a ser repetitivo, mas o sou com muita satisfação . . . Mais uma crônica sensacional . . . Eu sou daqueles que não crêem em acaso, penso que para tudo o que nos ocorre, para o bem ou para mal, tem origem em nós mesmos, contudo, admito que algo imprevisível poderá ocorrer, e, neste caso devemos recorrer ao poder de adaptação que todos nós, ainda que alguns o ignorem, possuímos . . . Uma bela semana para todos nós . . . Recomendações à Sônia e demais familiares, sobretudo, àqueles de além-mar . . .

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  10. Querido Cacau,
    A preocupação com a qualidade da água me lembra belos passeios que fazíamos às bicas das montanhas. Papai enchia o carro de garrafões e partiamos , curtindo todo o verde e toda a beleza que você já conhece.
    Era rotina.
    Apesar desse cuidado com a familia, na hora da bricadeira de rua, abria-se a torneira do quintal e resolvia- se a sede. A meninada toda fazia assim- fosse no Rio, em Vitória ou em Marte.
    A preocupação com o acaso nao me atinge: estou certa de que o nosso Deus, com amor, ordena os acontecimentos de formas inusitadas. Descanso no Seu controle.
    Abraços carinhosos nessa turma portuguesa.

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    1. Querida prima,
      Este era mais um ponto comum entre nossos pais. Quantas vezes eu também acompanhei meu pai em busca de água pura e de boa qualidade para beber. Com o carro cheio de garrafões!
      Quanto ao acaso, sei de sua fé em Deus e certamente é maravilhoso confiar no Seu amor.
      Muito obrigado pelo seu comentário e tenha uma maravilhosa semana!
      Beijos

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