COISAS VIVAS

Eu tive um sapato que era mau caráter.

Juro! Quando o conheci na loja era um tipo brilhante, pele lisa, traços bem definidos, boa aparência, esguio e elegante. Ao testá-lo naquele pequeno tapete da loja, apresentou um andar macio, meio de malandro, todo folgado. Enfim, me conquistou e levei-o pelo braço para o meu apartamento.

Quando chegou a noite, saímos pela primeira vez. Eu, o calçado e a calçada: uma perfeita integração. Fomos caminhando pela cidade, em direção a uma festa, principal causa da minha ida à sapataria mais cedo.

Não demorou muito e ele começou a pegar no meu pé. Ou melhor, nos meus pés. Principiou alfinetando os calcanhares a cada passo, o que já me incomodou muito. Um pouco mais adiante, talvez querendo voltar para casa, passou também a comprimir meus dedos mindinhos como se estivesse usando um alicate.

Resisti, pois sempre achei que não se pode ceder muito facilmente à vontade de outro sem se passar por fraco.

Para não dar o pé a torcer, chegando à festa resolvi tirar uma moça para dançar. Foi um sucesso. Eu que normalmente danço no estilo boneco de posto de gasolina, nunca dancei tão bem quanto naquela oportunidade. Eu quase flutuava, mal tocando os pés no chão. Era muito mais pela dor que pelo ritmo, mas só eu sabia disso. A menina ficou encantada. Quando resolvi parar, pois não aguentava mais as bolhas ardendo e os dedos latejando, ela agradeceu:

— Obrigada, gato!

Mal sabe ela que aquela dança fez de mim gato e sapato!

Voltei para casa e aposentei definitivamente aquele suplício de couro, que permaneceu no armário, sempre me olhando com um ar sarcástico. Um debochado!

Ficou ali por mais alguns meses apenas para reduzir um pouco meu arrependimento da compra e depois acabou doado para algum inimigo, a quem eu devia uma vingança implacável.

Eu tive uma televisão que era cínica!

É isso mesmo, cínica e indolente. Apenas 4 dias após o término da garantia apresentou tela preta, um luto fechado, recusando-se definitivamente a cumprir suas luminosas obrigações. É verdade que tela preta ainda é melhor que muitas programações da televisão, mas aquilo me irritou. Enquanto era subordinada à fábrica fez o seu serviço, talvez temerosa de ser substituída e passar a ocupar, não mais uma sala de estar, mas uma empoeirada prateleira de sucata ou quem sabe uma lata de lixo. Porém, cúmulo da desfaçatez, tão logo perdeu este vínculo e passou a ter uma relação apenas comigo, vestiu o luto por tempo indeterminado.

Chamei então um técnico, que após examiná-la condenou a placa mãe, parentesco que eu nem sabia que televisão também tinha. No dia seguinte, ele me ligou informando que a tal placa não era mais fabricada. Aí entendi o luto…

Precisei ir à loja onde havia adquirido a cínica e após um breve protesto de umas 2 horas, que incluiu até alguns palavrões, consegui levar para casa uma prima dela, ainda virgem, mais ou menos da mesma estatura e aparência. Felizmente, a prima simpatizou comigo e ficamos juntos por uns 8 anos, sem problemas de relacionamento.

Eu tive um carro que era neurótico.

Foi meu primeiro carro, presente do meu pai por ter entrado para a faculdade de engenharia. Ele me deu duas opções: um Fusca zero quilômetro ou um Corcel seminovo, supostamente em excelente estado. Inexperiente, acabei optando pelo equino de segunda mão.

Parecia um puro sangue, bonito e bem acabado, mas com o uso revelou-se um verdadeiro pangaré lustroso. Era de comportamento imprevisível e só funcionava quando queria. Empacava como se fosse uma mula, não fazendo jus à sua raça, o que aconteceu um sem número de vezes, me deixando a pé em várias situações.

A cada episódio, ia para a oficina, o problema era dado como resolvido, mas impertinente e depressivo, ele tornava a repetir o comportamento irritante. Só podia ser uma neurose, já que nenhum componente do motor explicava estas paradas. Compreendi então porque foi vendido tão novo.

Após alguns meses, o sonho já tinha virado insônia. Convenci então meu pai a me permitir rever a decisão e, mesmo tardiamente, optar pelo Fusca zero quilômetro. Muito generoso, ele concordou desde que minhas economias cobrissem a diferença de preço. Ele disse que era para que eu aprendesse a ser responsável por minhas decisões, mas eu desconfio até hoje que foi avareza mesmo…

Num sábado de manhã, fomos juntos à uma concessionária Volkswagen. A loja ficava numa rua de mão única e para chegar viemos por uma transversal. Parei no sinal fechado e de onde estava já via a entrada da concessionária. O sinal abriu e seguimos em frente. Foi quando um táxi que vinha em disparada avançou o sinal e colidiu com o Corcel na altura da roda dianteira direita. A pancada foi tão forte que entortou a frente, ou seja, ficamos olhando para o norte e os faróis para o nordeste.

Depois de muita discussão, o motorista de táxi acabou por assumir a despesa do reparo, mas fiquei uns 40 dias sem carro zero nem usado. Ninguém tira da minha cabeça que aquilo foi uma vingança do equino, que deu um pinote à frente e lançou-se na rota do táxi quando percebeu o humilhante destino que o aguardava do outro lado da rua.

Findo o reparo, livrei-me do animal numa loja próxima da oficina e, mesmo sabendo ser uma atitude injustificada, nunca mais em toda a minha vida comprei outro carro daquela marca.

Por estas e outras sou levado a imaginar que existem coisas dotadas de personalidade própria. E algumas implicam comigo. Eu simpatizo com elas, tanto que as adquiro, mas elas, por motivos não declarados, me detestam!

Sei que é uma insanidade, mas já passei por tantas experiências que poderia escrever um livro ao invés de uma crônica.

Por causa disto, quando ouço falar de “internet das coisas” fico apavorado. Imagine objetos cotidianos conectados na internet, interagindo, recebendo sinais de sensores, interpretando dados e controlando dispositivos. Para mim isso não vai dar certo e quando digo “para mim” não é que seja a minha opinião, mas a consciência de que para a minha pessoa não vai funcionar. Eu sou dado a conquistar a antipatia das coisas…

Deus me livre casa inteligente, carro inteligente…

Se isso virar realidade, já tomei minha decisão: desligo o wifi!

 

Antonio Carlos Sarmento

31 comentários em “COISAS VIVAS”

  1. É, o mundo das coisas também tem vida própria.
    São muitos os relatos como o seu nessa crônica e eles, tal como filhos, estão ficando independentes e a se rebelar contra seus criadores.
    Tenho uma camionete 1984 que já faz até parte da família e tem até o carinhoso apelido de “Jubi” mas, ao contrário do seu Corcel, nos traz boas lembranças.
    Enfim, vamos ter que aprender a lidar com essa nova espécie da criação humana.
    Abraços e um ótimo domingo com uma sardinha na brasa e um bom vinho em família.

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    1. Meu primo Rômulo,
      Sorte sua desfrutar de uma camionete que simpatizou com você…
      Realmente muitos desafios estão por vir e precisamos nos adequar a estes tempos de tantas mudanças.
      O vinho certamente estará presente no nosso domingo aqui em Portugal, mas a sardinha na brasa por enquanto não degustamos pois os restaurantes estão fechados.
      Grande abraço, ótima semana e muita saúde!

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  2. Antonio Carlos:
    Se você desligar o Wifi você vai perder a chance de aprender como mexer na Internet 5G, que em breve estará presente em nossos lares, para facilitar a vida e não para dificultá-la.
    Quanto ao Corcel e o Fusca, já tive várias e várias experiências semelhantes às suas. Mas, não desisti, o último Fusca, do ano 1980, com o coração partido, acabei de vender com apenas 38.000 ks rodados.
    Feliz domingo e parabéns pelo excelente artigo.
    Sds.
    Carlos Vieira Reis

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    1. Meu caro amigo Carlos,
      Certamente não desligarei o wifi, mas espero que nenhuma destas “coisas” antipatize comigo… hahahaha
      Se puder manda para o meu whatsapp uma foto do Fusca 1980. Só para que eu possa conhecer e apreciar.
      Grande abraço, meu amigo e mais uma vez obrigado por sempre comentar.
      à você e sua família desejo uma semana maravilhosa!

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  3. Irmão
    Em compensação você é especialista em conquistar a simpatia das pessoas, o que é MUITO mais importante e vital para uma vida saudável!
    As coisas passam e os vínculos “simpáticos” são definitivos!!!
    Bjokas

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    1. Fefe,
      Bom que se divertiu: esse foi o meu principal objetivo nesta crônica. Acho que todo mundo já viveu situações semelhantes.
      Vamos ver o que nos aguarda nos próximos anos…
      Beijinhos e que tenham uma semana maravilhosa!

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  4. Querido amigo.
    Desculpe não ter comentado a crônica da semana passada.
    Mas comentar essas coisas vivas de hoje é muito bom.
    Nada como começar um domingo dando boas gargalhadas.
    Fica difícil escolher qual das três coisas mais me impactaram.
    Fico com o mau caratismo do sapato e o cinismo da televisão.
    O seu modo de dançar como um boneco de posto e o mau caráter ter feito de você gato e sapato foi muito bem bolado.
    O luto fechado da TV foi sensacional.
    Obrigado amigo por mais essa obra prima. Suas crônicas já fazem parte do meu cotidiano.
    Grande abraço a todos . Saudades.😃😃😃

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    1. Querido amigo Nei,
      A do “gato e sapato” me fez lembrar de você, quando a ideia surgiu.
      Mas fico contente em saber que também apreciou outras tiradas.
      Obrigado por incluir as crônicas no seu cotidiano e por sempre trazer estes prazerosos comentários.
      Um beijão para você e Jaciara!

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  5. Amei e me diverti com seu texto e passei à pensar na “vida” das minhas …
    A primeira “coisa” que vi foi esse “smartphone” onde li “Coisas Vivas”e comento . Que aparelho polivalente espetacular!!!! O avanço da tecnologia vem à nosso favor e hoje não me imagino viver sem ele , faz parte integrante da minha vida. Nele falo, leio, escrevo, pesquiso, compro, agendo , vejo horas, desperto, faço videoconferência, foto, vídeo e interajo.
    Deus me livre , viver sem ele…
    Beijos irmão querido. Até breve! 🙏🏼

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    1. Minha querida irmã,
      Que bom ter se divertido!
      De fato estamos vivendo tempos de invenções espetaculares, como o seu smartphone.
      Obrigado por comentar e desejo que tenham uma semana tranquila, com muita saúde e ótima comemoração junto do aniversário da Nina.
      Beijos

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  6. Já tive sapatos assim, na loja maravilhosos , mas, ao usar, vão começando a criar vida e a mastigar meus pés. Não há nada pior do que incômodo provocado por sapatos. Por esse motivo quando encontro um par perfeito, volto para comprar outros iguais. Saudades!

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    1. Oi Cris,
      Que bom ter se divertido. Só leu hoje porque deve ter tirado o domingo para pintar mais um belo quadro, não é?
      Fico contente que esteja apreciando as crônicas.
      Muito obrigado por comentar.
      Muitas saudades de vocês!
      Beijos

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  7. Caro Amigo, Muito bom dia, Crônica alegre, leve, deliciosa e eu me perguntando onde está o gancho que sempre identifico? Qual não foi a minha surpresa, estava lá nas duas últimas frases:

    Deus me livre casa inteligente, carro inteligente…

    Se isso virar realidade, já tomei minha decisão: desligo o wifi! Mais uma vez, parabéns . . . Recomendações à Sônia e demais familiares . . .

    Livre de vírus. http://www.avast.com .

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  8. Cacau, que ideia original!!
    Parabéns!
    Realmente, às vezes os objetos nos provocam sentimentos como se nos desafiassem.
    Vou prestar mais atenção nos meus relacionamentos ( rsrsrs) : aquela calça comprida que me deixa barriguda, os óculos que me envelhecem, o fogão que engordura o cabelo…e o espelho? Com que falta de respeito denuncia as marcas no rosto e os cabelos brancos .
    Preciso tomar uma atitude. Mas é
    mais sensato ignora-los, por enquanto , e focar a atençao naqueles que me fazem bem e me trazem doces
    recordações. Como esta xicara antiga, presente de casamento, exalando um cheirinho de café recém- passado e oferecendo, no pires, uma broa mineira de fubá.
    Au revoir, meu primo!
    Deixa eu curti essa boa companhia.

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    1. Querida prima Gena,
      Praticamente uma nova crônica, leve e doce.
      Fiquei com vontade de tomar este cafezinho e degustar a broa mineira.
      São pequenas grandes coisas!
      Obrigado por comentar. Desejo um ótimo fim de semana!
      Abraços!

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