VIA LÁCTEA

Um amigo, que leu muitas de minhas crônicas, comentou que adoto uma linha saudosista. Não sei se quis me elogiar ou criticar…

Para descobrir, como faz quem sempre está às voltas com a língua portuguesa, fui aos dicionários. No sentido formal da palavra, me pareceu que o saudosista é antes de tudo um exagerado! É quase uma unanimidade nas definições, que sua principal característica é possuir um gosto excessivo por coisas do passado. Aí já fiquei achando que o amigo fez mesmo uma crítica, pois todo exagero é condenável.

Talvez eu tenha de fato traços saudosistas, mas não do tipo que olha para o passado com o desejo de estar lá. Para mim, lembrar certos acontecimentos e costumes do passado, longe de ser melancólico ou nostálgico é coisa agradável, alegre e me traz boas sensações. Porém, não penso que “antigamente é que era bom”, afirmação que parece ser típica de quem realmente merece o adjetivo.

Para mim, só a evolução da medicina já seria motivo para não desejar fazer o tempo recuar. Eu não entraria numa máquina do tempo, de volta ao passado.

Basta lembrar que há menos de 200 anos as cirurgias ainda eram feitas a frio: a anestesia foi inventada mais ou menos nesta época. Para mim este antigamente não era bom…

A menos de 100 anos atrás foi inventado o antibiótico. Se eu vivesse naquela época teria perdido minha única filha, vítima de uma pneumonia dupla e curada graças a este medicamento. Para mim este antigamente não era bom…

O saudosista é excessivamente otimista quanto ao passado. Ele olha para trás e só vê as coisas boas. Ignora as adversidades e foca apenas naquilo que lhe agrada e que já não faz parte da sua realidade. O saudosista faz com as coisas do passado, o que fazemos com as pessoas que morrem. Vai-se a pessoa e junto com ela seus defeitos. Com o tempo, ficam apenas as qualidades, até as que não tinha…

Em ambos os casos é o luto bem resolvido. A morte transforma o defeituoso em virtuoso. O passado transforma algo banal em sensacional.

Entretanto, não há como negar que no passado havia coisas maravilhosas que já não existem mais. Uma delas é o leite!

Sim, o leite de vaca. Aquele colhido na fazenda, tirado das tetas das vacas, espumante, quente e saboroso. Para quem vive em cidades médias e grandes, nos supermercados existe um produto com o mesmo nome, mas não se enganem: não é leite, posso afirmar.

Outro dia fui a um supermercado e havia um corredor enorme com o nome de “laticínios”. Ah, isso tem e muito. Mas ali, naquelas prateleiras lindas e refrigeradas não havia leite, mas sim seus derivados. Do outro lado do corredor, havia umas caixas de cartolina, fora do gelo, que continham um líquido branco e um rótulo escrito “leite”, mas cujas propriedades, em sua quase totalidade, haviam sido cedidas para seus coirmãos do outro lado do corredor. Naquelas caixas o que havia era praticamente o resíduo líquido da fabricação dos laticínios.

Lembro, como se fosse hoje, da cozinha na fazenda que tínhamos há uns 50 anos (olha o saudosismo aí…). O leite recém-chegado do curral precisava ser fervido. Para tal, havia um objeto na cozinha chamado, pasmem, leiteira. Juro que isso existia.

Era minha mãe quem se encarregava da tarefa, na beira do fogão à lenha. A leiteira cheia estacionava sobre as chamas e o cheiro da madeira penetrava no leite, como faz no vinho ou no whisky envelhecidos, proporcionando um aroma inesquecível e um gosto de defumado.

Ao atingir a fervura, o leite começava a subir pela leiteira, aflito, efervescente, querendo escapar do calor. Era a hora de tirar do fogo e deixar esfriar. Aí vinha o fenômeno: em pouco tempo formava-se uma camada de nata sobre o líquido. Uma substância pastosa, branquinha e com um sabor inacreditável. Minha mãe então recolhia com uma colher, colocava num pires, adicionava um pouco de sal e isto era então passado no pão.

Eu tenho certeza de que o café da manhã no paraíso tem este leite fervido no forno à lenha e pão com nata. Senão, Deus não existe…

Nesta mesma época, na cidade, o leite chegava em nossa casa não do curral, mas pelas mãos de alguém que exercia uma profissão, hoje inexistente, chamada “leiteiro” (apresentei ao leitor a palavra no feminino e agora o faço no masculino). Era o sujeito que entregava de porta em porta o leite fresco, puro, conservado em baixa temperatura, numa garrafa de vidro de boca larga com uma tampinha de alumínio. Claro que na cidade não tínhamos fogão à lenha, mas mesmo fervido no fogão a gás o leite era delicioso.

Enfim, há 50 anos éramos todos bezerros não desmamados…

Quem bebeu leite de verdade, hoje não consegue desatarraxar a tampa de uma caixa de cartolina forrada de alumínio, conservada fora do gelo por um misterioso e insidioso método chamado de ultra pasteurização, beber um líquido branco inodoro e insípido e chamá-lo de leite.

Escrevi acima que eu não entraria numa máquina do tempo, de volta ao passado. Vou reformular: eu entraria sim numa máquina do tempo, voltando 50 anos, só para tomar uma generosa xícara de leite de verdade e pão com nata. Logo em seguida, embarcaria de volta em busca do mundo que progrediu, feliz e com os sentidos saciados. Existindo esta máquina, eu faria isto muitas vezes!!!

Relendo agora o que escrevi, não tenho alternativa.

Devo admitir: sou lacto-saudosista!

Antonio Carlos Sarmento

32 comentários em “VIA LÁCTEA”

  1. Sou bebedor de leite. Normalmente com café, mas com uma peculiaridade, sempre leite gelado e café quente. O leite quente sempre me fez mal. Me provoca gases. Algo a ver com o meu metabolismo. Outra coisa que reparei agora morando nos EUA, é que aqui é raro o tal leite longa vida, e o leite tem excelente qualidade e é um alimento respeitado. Nas escolas iniciais as crianças tomam leite fresco no lanche. Saudosismo só é criticável por quem tem medo de olhar o passado. Sem provocação… bom domingo e que Deus te abençoe e a tua família.

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    1. Caro Luigi,
      Não sabia que o leite por aí era de verdade. Muito bom!
      Por aqui o “longa vida”, que talvez devesse ser chamado de “longa lucratividade”, reina praticamente sozinho.
      Obrigado pelo comentário, meu amigo e também desejo as bênçãos de Deus sobre você e toda a sua família!
      Abraços

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  2. Não associo as suas crónicas ao termo saudosismo, mas sim a emoções que ficaram na memória. Doces ou amargas, mas todas marcantes. Como a de hoje, que me levou a voltar à minha infância…mas contrariamente ao António, porque nunca gostei muito de leite e era obrigada a beber!
    Recordei esse ritual do leiteiro, que andava de porta em porta de bicicleta e com o leite num grande bilha de metal com uma torneira…o leite a ferver, a espuma a vir por vezes por fora… a nata que se comia com açucar… e também eu ter muitas vezes vómitos quando ficava um pouco dessa “pele” no leite e depois eu sentia na boca ao beber. Ainda hoje me arrepia essa sensação…
    Estas são memórias que ficam na pele.
    Gostei muito da crónica!

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    1. Dulce,
      Fico muito feliz quando a crônica desperta boas recordações nos leitores. Muito bom ter voltado um pouco à sua infância: quantas alegrias deixamos lá, não é?
      Quanto ao ritual do leiteiro que você descreveu, com a bilha de metal e uma torneira, um amigo que morou em cidade pequena aqui no Brasil contou também deste método, só que ao invés de bicicleta, numa carroça puxada a cavalo.
      Muito obrigado pelo comentário.
      Abraços

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  3. Ô delícia de lembranças Cau que trazem de volta à memória o paladar e o coração, ambos saciados de um tempo bom!!!
    Boa reflexão sobre reconhecer o desenvolvimento como uma evolução onde cabem todas as nossas histórias!!!
    Afinal: “Recordar é viver “

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  4. Eu comecei a escrever, que gostaria de voltar cinquenta anos, e ficaria por aí. Porém, pensei acrescento que voltaria na condição de ter a repetição da minha família, filhos e amigos, entre eles o privilégio de ter você como um irmão.

    Bem, o leite…deixa para a próxima, nessa vida já foi.

    Valeu Cacau!
    Bjs

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  5. Eu gosto de conhecer as histórias da sua vida através das crônicas. 🙂

    Sobre saudosismo, qdo assisto alguns filmes fico realmente com um sentimento misto de “que bom que o mundo evoluiu” x “que pena que o mundo mudou”. Mas na linha saudosa das comidas, lembrei da canção “goiabada cascão em caixa, é coisa fina, sinhá, que ninguém mais acha.”

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    1. Fefe,
      Realmente o progresso é necessário e inevitável. E, claro, deixa para trás coisas ruins e coisas boas também.
      Só fico um pouco triste com os casos em que as coisas deixam de existir em nome de lucros e ganância… Talvez seja o caso do leite de verdade!
      Beijos para você e Tom. Muito obrigado pelo comentário.

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  6. Querido amigo te peço que se fizeres essa viagem quero ir junto, por que só quem bebeu desse leite de garrafa com tampinha de alumínio entregue pelo leiteiro na porta de casa, sabe que valeria a pena voltar no tempo. Hoje vc despertou em mim saudades da infância. Bjs

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      1. Querida Soso,
        Uma falha quase imperdoável. Graças a Deus foi com você, um coração enorme e bondoso…
        Sempre respondo aos comentários na segunda-feira, mas esta semana me atrapalhei e só consegui fazer na quarta-feira. Apressado, acabei pulando o seu comentário… Que desastre!
        Ia te fazer o convite para ir comigo tomar o leite de garrafa e, como sempre, agradecer seu comentário que tanto valorizo.
        Mas não quero dar desculpas e sim pedir desculpas.
        Você jamais será excluída de qualquer coisa, se depender de mim!
        Um beijo querida e perdoe este episódio que não vai se repetir.
        Abração no meu amigo Fred!!

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  7. Amigo querido, não compartilho seu amor pelo leite, que só bebia obrigada, quando criança. Mas adoro seus derivados e as comidas em que o leite entra na preparação. Quanto ao saudosismo tenho ótimas lembranças de quando brincávamos na rua sem perigo, violência, assaltos. Hoje as crianças ficam dentro de casa muitas vezes por medo. Quanto a evolução da tecnologia, você sabe bem disso, que maravilha pegar o celular e ver , sim, eu escrevi VER, os netos e filhos que moram do outro lado do mundo. Tem algo melhor?!?!

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    1. Amiga Lucia,
      Você declara que não compartilha meu amor pelo leite, mas para compensar compartilha totalmente meu amor pelo vinho!!!! hahahaha
      Quanto a ver netos do outro lado do mundo é algo que não tem preço, coisa maravilhosa que abranda as saudades e acalma o coração.
      Já a violência e assaltos me parece ser o caso do Brasil e não algo do progresso. Minha filha foi para Portugal para buscar uma vida com mais segurança pública, sem violência e assaltos.
      Beijos e assim que acabar a pandemia vamos compartilhar um copo de leite, desculpe, uma taça de vinho!!!

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  8. Querido amigo “Imortau” Cacau.
    Tirando as suas costumeiras firulas iniciais dessa saborosa crônica em que procura negar o seu perfil saudosista mais uma vez início o meu domingo cada vez mais ansioso palas suas escritas.
    Com a Graça de Deus você é um indivíduo totalmente saudosista… Isso é muito bom pois nos brinda com suas lembranças que são imortais…
    Não vamos confundir saudosismo com ufanismo que se fosse fosse também não seria nada demais…
    Mas vamos falar da vaca pois ela pode não gostar da nossa omissão.
    Realmente aquele leite de outrora não existe mais ….
    O mais ingrato com a vaca afirmarem que saíram dele os Integrais, os Desnatados, os Semi desnatados e os famigerados Zero Lactose… Esse último é como se beber um copo de água.
    Parabéns amigo mais uma vez ….
    Fiquei apreensivo no início se você estava extinguindo a cadeira de História do currículo escolar. Bom domingo a você e sua família.

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    1. Amigo Nei,
      O sujeito se esforça para escrever um bom texto e aí vem um amigo (?) e chama de “firula”, como se o início da crônica tratasse de penduricalhos e balangandãs… É dura a vida de quem escreve. hahahaha
      Quanto à vaca, ela manda dizer que ficou muito contente com as referências elogiosas e por ter sido tema de crônica, quando normalmente é usada para xingamento de pessoas do sexo feminino.
      Amigo, seus comentários são deliciosos. Percebi que os amigos que mais gosto são os bem humorados, como você.
      Beijos na Jaciara!

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    1. É possível, Pedro.
      Sabe que minha filha tem por hábito pingar leite no café, pela manhã. O litro então fica muito tempo na geladeira para ser consumido e dura uma eternidade. Quando finalmente estraga, fica doce… Coisa estranha.
      Grato pelo comentário!

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  9. Voltei no tempo com você. Adoro relembrar essas passagens que aquecem nosso ser. Independente do significado encontrado no dicionário, continue nos brindando com essas doces e inesquecíveis lembranças. 😁

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    1. Claudete,
      Voltar no tempo e desfrutar de gostosas lembranças é muito bom. Fico feliz que as crônicas lhe proporcionem estas sensações.
      Agradeço por comentar por aqui, pois prestigia o site.
      Uma ótima semana!

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  10. Amigo, não gosto de leite e, há muito tempo, não o bebo puro. Aliás, nem me lembro quando o bebi. Mas aprecio se for transformado em chocolate. Tenho excelentes recordações do passado, mas prefiro viver o presente e sonhar com o futuro. O presente e o futuro são muito melhores. Imagina a minha vida sem meus netos. Retrocedendo mais um pouco, sem meus filhos! Impossível imaginar! Adoro minha família e, se retroceder no tempo, vou desfazendo-a. É lógico que aparecerão outros personagens aos quais devo minha vida, minha educação e, muito especialmente a formação da minha personalidade e do meu caráter. Sei que o que sou hoje, devo a eles! Muito agradeço a Deus o privilégio da formação que tive e os valores morais e de família que me passaram e hoje muito contribuem no meu cotidiano de vida.
    Perdoe, amigo, já falei demais e não sei se o fiz bem. Gosto de ler as suas crônicas que, algumas vezes servem para avaliar a minha maneira de pensar mas, principalmente, são divertidas.
    Receba um fraterno abraço.

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    1. Amigo Roberto,
      Você não falou demais e fez muito bem em compartilhar suas reflexões sobre o passado. E mais ainda sobre seu amor à família, que é a sua marca!
      Agradeço seu comentário e fico contente que esteja se divertindo e acompanhando as crônicas.
      Grande abraço à você, Aidê e toda a sua amada família!

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  11. Primo, eu não gosto de leite! Mas sua crônica me fez voltar no tempo…que foi muito bom e divertido!! Hoje, não quero voltar para lá, mas sou o resultado de uma parte desse tempo de incriveis histórias Bjs

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    1. Querida prima,
      Está ótimo: não gosta de leite, mas gostou de voltar ao passado.
      Eu tenho lembranças de nossas aventuras na infância que nunca saíram da minha memória.
      Obrigado por comentar Rosângela!
      Beijos e uma ótima semana.

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  12. Também tenho meus momentos saudosistas, memórias que me trazem conforto e mantém viva a minha existência e até me impulsiona a continuar, servindo como um remédio para as dores do presente e recarregando as baterias rumo ao futuro.
    No frigir dos ovos é como se te dissesse, valeu e vale a pena viver!
    Continue!
    Imagine o quão ruim seria se desprezasse o passado totalmente?

    Abraços primo

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  13. Querido primo ,
    Muitas vezes sentimos alegria quando olhamos a vida pelo retrovisor. Vemos com saudade e gratidão os momentos e as pessoas que deixaram marcas não só na memória mas também em nosso caráter.
    As recordações nos lembram que experimentamos muitas coisas boas na vida. Mas não abrigo o saudosismo. Vivo intensamente o presente e aguardo o futuro sempre com esperança.
    Se um dia você embarcar na máquina do tempo, vou pegar carona. Não preciso viajar muito, um ano ou dois atrás. Há uma saudade muito forte que eu preciso amenizar.
    Beijo

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    1. Prima,
      Fiquei comovido com sua carona para um ou dois anos atrás. Sei desta dor e daria esta carona com grande prazer…
      Como você mesma disse temos que viver bem o presente e aguardar o futuro com esperança.
      Prima, de coração, te desejo muitas alegrias com suas filhas e netos.
      E agradeço por estar acompanhando as crônicas e sempre comentando.
      Beijos!

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  14. Quanto tempo Sarmento!! É tanta coisa a se ver que não nos sobra tempo para deliciar histórias verdadeiras como esta que você apresenta.
    Fez-me retornar à beira do fogão à lenha da casa de Petrópolis.
    Bons dias passados nas férias na casa de meus avós. Fogão à lenha, panelão cheio, aromas diversos e a lentidão da vida passando com calma.
    Eta! coisa danada de boa!!!
    Horários de poucos compromissos e muita satisfação de gosar uma boa prosa!!
    Toca em frente meu mestre do tempo! A saudade e a lembrança fica para trás. Voltemos depressa para o presente, que o futuro já está a bater na porta!!
    Tanto faz se fazemos esta viagem no tempo de carroça ou de supersônico. O que vale é curtir cada momento e termos sempre na lembrança os bons momentos inesquecíveis que vivenciamos de prazer!!! Eta coisa prá lá de boa Sô!!!!!

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    1. Quinta,
      Muita alegria em receber seu comentário. Desculpe o plágio, mas “Eta coisa danada de boa!”.
      Como você disse é certo que só temos o presente para viver, mas um breve passeio ao passado pode ser agradável e trazer boas sensações.
      Só em você ter lembrado seus avós, o cheiro da lenha queimando e as delícias sendo cozinhadas, já valeu a leitura.
      Um grande abraço e muito obrigado por comentar!

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