NO SAPATINHO

Acabei de ler um livro e fui guardar no armário. Foi quando me deparei com um par de sapatinhos metalizados. Eram os sapatos que eu usava quando tinha uns 2 ou 3 anos. Meus pais mandaram metalizar em bronze e estão perfeitos até hoje, mais de 60 anos depois. Uma decorativa recordação que guardo com carinho.

A simples visão daquele par de sapatos me fez pensar na infância e lembrar algumas passagens e brincadeiras. A gente cresce, amadurece e envelhece, mas a vontade de brincar está ali, dentro do peito, naquela criança que mora para sempre em cada um de nós. De uma certa forma somos sempre crianças, só mudamos nosso jeito de brincar.

Vindo não sei de que lugar da minha mente, duas passagens da infância vêm à tona. Não tenho lembrança da minha fase de dois ou três anos, mas a de alguns anos depois ainda está bem viva.

Certa vez jogávamos bola na rua — coisa inconcebível nos dias de hoje — quando um chute mal calibrado encaçapou a pelota na janela aberta do segundo andar. Ficamos na expectativa, pois mesmo a bola sendo leve, de plástico, receamos que tivesse causado algum dano, quebrado alguma coisa.

A moradora, uma senhora conhecida por ser mal humorada e irritadiça, cuja criança interior devia viver de castigo permanentemente, enfiou uma faca no nosso brinquedo. Veio à janela com cara de bruxa e atirou a bola de volta, murcha e inútil, assim como ela.

Acabou a brincadeira.

Não reclamamos, pois já havíamos aprendido que o bom cabrito não berra. Frustrados, nos reunimos para planejar a inevitável vingança, pois ninguém pode estragar uma brincadeira de criança e ficar impune, coisa que deveria estar até na Constituição Brasileira.

Despreocupados com o politicamente correto, expressão ainda inexistente na ocasião, consultamos o catálogo telefônico, anotamos alguns números, reunimos uns trocados e compramos três fichas de telefone. Naquele tempo, década de 1960, as ligações nos telefones públicos eram feitas com a introdução de uma ficha metálica que possuía ranhuras e, ao descer no aparelho, acionava o sinal de discagem — os números eram então discados e não teclados, por incrível que pareça!

Primeira ficha. Iniciamos a revanche na farmácia, onde na parede interna, quase do lado de fora, havia um telefone público. Dali mesmo ligamos para o próprio estabelecimento, ouvindo o telefone tocar ao fundo:

— Por favor, eu queria fazer uma encomenda. É aqui pertinho. Vocês podem entregar agora de manhã? — perguntou um de nós, que tinha a voz mais grossa.

— Pois não. Posso entregar sim. — respondeu o farmacêutico.

Fizemos então um pedido, dando o endereço da matrona e o elaboramos de acordo com as circunstâncias. Um rolo de esparadrapo e um vidro de iodo, para o caso dela ter se cortado com a faca na hora de furar a bola, uma caixa de supositórios laxativos, pois talvez seu mau humor tivesse esta origem, um vidro de shampoo, pois notamos os cabelos desgrenhados e em mau estado e, para completar, um vidro do delicioso óleo de fígado de bacalhau ou, na falta dele, óleo de rícino.

Feita a encomenda, partimos para o destino e aguardamos a entrega. Ficamos por ali, jogando o primeiro tempo com a bola moribunda, enquanto o rapaz da farmácia subia as escadas para realizar a entrega dos tão esperados e necessários produtos. Demorou um pouco e ele desceu aborrecido, olhando para os lados, com o pacote em mãos. A feiticeira chegou na janela exalando suspeição, mas ninguém olhou…

Segunda ficha. Após o almoço foi a vez da mercearia. Um quilo de inhame para combinar com o rosto da destinatária, um de batata doce para combinar com seu corpo, sal para combinar com seu temperamento e, claro, um vidro grande de pimenta malagueta. Logo no início da tarde, jogamos o segundo tempo da partida com a bola murcha enquanto acompanhávamos a entrega. Era uma daquelas bicicletas de carga, com três rodas e o compartimento de carga na frente. O rapaz voltou emburrado, jogou a mercadoria de volta no pequeno baú e partiu. A megera chegou na janela exalando indignação, mas fingimos não perceber…

Terceira ficha. Fomos ao telefone público da esquina e concluímos a derradeira etapa. A voz circunspecta foi do mesmo menino da voz grossa. Feita a tarefa, voltamos ao jogo para a disputa de pênaltis com os restos mortais da bola. Após uns 30 minutos, vimos subindo a rua um conhecido biscateiro, um faz-tudo que costumava atender os moradores em pequenos serviços nos apartamentos. Nossa reclamação era relativa à dois vasos sanitários completamente entupidos na casa dela. Claro, estávamos contando que ela aceitaria as encomendas da farmácia e da mercearia e assim o desentupimento seria indispensável. O sujeito já veio com o equipamento próprio para o serviço e saiu sem compreender direito o que havia acontecido. A jararaca chegou na janela exalando exasperação, mas aparentamos estar com foco no bate-bola…

A vingança estava consumada.

Só não tivemos como agradecer aos colaboradores involuntários, que infelizmente acabaram sendo vítimas também. Mas, para a garotada, foi por uma causa nobre e logo compensada por mais compras na farmácia, na mercearia e na prioridade para o biscateiro em todos os reparos de casa.

Numa época posterior, houve um verão muito quente no Rio de Janeiro. Muito quente sempre é, mas aquele foi acima do normal. Quase não se conseguia dormir. O abençoado split ainda não havia sido inventado e os aparelhos de ar condicionado eram muito caros, além de consumir muita energia, tornando a conta de luz estratosférica.

Assim, nós preferíamos ficar na rua, num banco da praça ali existente, conversando, contando coisas, aguardando o frescor da madrugada e a chegada do sono.

Nossa conversa incomodou um morador do prédio em frente, pois era sempre entremeada de risadas e vozes altas. Ele então abriu a janela, botou a cabeça para fora e proferiu um indignado pedido de silêncio:

— Shhhhhhhhhhhh! São uma e meia da manhã!

E bateu a janela. Na primeira vez procuramos nos conter e tentamos atender a justa reclamação. Mas o passar do tempo e a pouca disciplina trouxeram de volta o excesso e mais uma vez ele repetiu o gesto, desta vez um pouco mais prolongado e enérgico:

— Shhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh! São duas horas da manhã!

Pronto. A imaginação da garotada entrou em ação. Um disse que aquele vizinho parecia um relógio cuco: abria a janelinha, botava a cara para fora e cantava as horas. Rimos muito.

Passado um tempo, extasiados de tanto rir daquele apelido, alguém gritou bem alto:

— Cuco!

O imprevidente atendeu. Abriu a janela e gritou que queria dormir. A gente riu em silêncio. Ele citou que eram duas e meia da manhã, bateu a janela e se recolheu. Mais risos.

Marcamos mais meia-hora, tempo que um relógio cuco normalmente sinaliza. Aí a cena se repetiu:

— Cuco!

A janela abriu novamente e a figura de pijama apareceu esbravejando, anunciando as três horas da manhã.

Tenho a impressão de que no início ele não associou o nome à pessoa. Reclamava do grito, sem saber que era ele mesmo que estava sendo chamado…

Até que dois dias depois, totalmente transtornado, o Cuco avisou que ia descer e resolver as coisas de uma vez por todas. Achamos que a brincadeira havia chegado ao limite e nunca mais usamos aquele que, para mim, foi um dos apelidos mais bem colocados que encontrei até hoje.

Claro que não pretendo, ao contar estes casos, incentivar trotes por telefone nem violação da lei do silêncio. São apenas lembranças de uma época passada, num contexto que não mais existe.

Porém, confesso que até hoje aquelas brincadeiras me fazem sorrir e acho que volto um pouco a ser criança.

Chego a querer ser de novo o menino que ficava dentro daqueles sapatinhos, agora transformados em adornos que enfeitam a minha vida de doces e divertidas lembranças.

Afinal, como disse Bernard Shaw:

Nós não paramos de brincar porque ficamos velhos. Ficamos velhos porque paramos de brincar.

Antonio Carlos Sarmento

22 comentários em “NO SAPATINHO”

  1. Obrigado por dividir conosco suas lembranças juvenis. Como voce mesmo diz, eram outros tempos com tolerancia e compreensão de que existem coisas que os jovens fazem, porque são jovens. É uma fase que não voltará. Todos nós que passamos dos 60, creio que tivemos experiências semelhantes. Boas lembranças. Bom domingo e wue Deus os abençoe.

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    1. Amigo Luigi,
      Grato por comentar. Com certeza cada um da nossa geração tem muitas histórias semelhantes.
      Vivemos aqueles tempos maravilhosos, com muita liberdade e convivência e sem muitos dos riscos que hoje existem.
      Não é saudosismo, pois hoje temos muitas coisas excepcionais, mas tenho a impressão de que falta à garotada uma convivência mais intensa e diversificada, tão importante na formação para a vida em sociedade.
      Talvez os videogames e telas estejam subtraindo um tempo que estaria dedicado a brincadeiras em grupo, conversas e amizades, coisas essenciais no aprendizado da vida.
      Desculpe ter me alongado.
      Grande abraço para você e sua família. Que Deus os proteja e guarde!

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      1. Voce nunca se alonga. Seus comentários são sempre prazerosos como suas crônicas. Prazer em le-lo.

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  2. Esse baú que são nossas lembranças, as minhas, completamente aleatórias.
    E parecem ligadas por um fio, pois a primeira puxa uma segunda que puxa outra e assim vai voltando a criança e a ternura que foram esses momentos.
    No frigir dos ovos são estes momentos que nos acalentam, adoçam a vida e nos mantém crianças.
    Acordei há pouco e já sorri com a crônica de hoje, pois apesar de não ter tido sapatos metalizados, partilhamos de uma mesma época e hábitos.
    Abraços

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    1. Querido primo Rômulo,
      Sua imagem de um fio puxando lembranças é perfeita. Enquanto escrevia esta crônica muitas outras lembranças brotaram: anotei para escrever em outra ocasião, caso contrário a crônica ficaria muito grande.
      Obrigado por comentar sempre as crônicas: é um retorno essencial para quem escreve.
      Uma ótima semana, primo!
      Grande abraço!

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  3. Que coisa boa!
    Essas lembranças põe um.carimbo de vida feliz, alegria e molecagem de nossa infância e juventude.
    Essa crônica trouxe muitas lembranças de minha infância no subúrbio do Cachambi.
    A saudade dessa época me traz muita gratidão a Deus, por ter me permitido viver esse momentos.
    Fiquei emocionado.
    E o legal, que de uma outra forma, geralmente quem viveu esses momentos, nunca deixa de ser “moleque” até mais velhos.
    Só envelhecemos biologicamente , o restante é a opção de cada um.

    Parabéns Cacau!
    Obrigado

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    1. Chico,
      Você tem razão quando acha que o “moleque” fica vivo dentro de nós.
      É aquela história de viver cada época da vida com intensidade e de acordo com a fase: brincadeiras infantis quando criança, molecagens logo depois, estrepolias quando jovem, etc… Assim, não fica lacuna, vazio dentro de nós. Acho que só ficamos realmente adultos se conseguimos viver plenamente a fase de criança.
      E ainda ganhamos de prêmio uma grande bagagem de recordações divertidas e de um valor incomensurável.
      Obrigado por comentar, meu irmão!
      Beijos pra você, Helen e Pedrão!

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  4. Obrigada por fazer um passado tão distante voltar para me embalar nas minhas brincadeiras também. Acho que éramos crianças mais felizes que as de hoje. Você se lembra de algum amigo que tivesse psicólogo? Eu não. Beijão

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    1. Querida amiga Lucia,
      Na semana do seu aniversário fico ainda mais feliz que a crônica tenha sido agradável para você e trazido boas recordações.
      A felicidade na infância parece que vai se estendendo para a vida toda, não acha?
      Beijos minha amiga!

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  5. Caro amigo.
    Mais um presente nesta manhã de domingo relembrando sua vida e nos forçando a rever a nossa.
    Pelas suas histórias você era bem traquina quando criança….
    Eu era obsecado por uma pelada de rua quando fazíamos de baliza do gol os postes e paredes das calçadas opostas. Hoje como você disse é impossível acontecer…
    Quantas vidraças quebradas e quanta correria para se livrar do flagrante…
    A do Cuco realmente nunca vivi mas foi muito interessante…
    Obrigado amigo por mais esse presente. Bom Domingo e grande abraço.

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  6. Que dia feliz para também voltarmos no tempo e lembrarmos momentos de peraltices de nossa infância! Feliz domingo!!! Bjs

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  7. Vc sabe textualizar os fatos. Quando criança principalmente os meninos sofrem essa perda, a perda da bola, pois chega o fantasma adulto e destroi esse brinquedo que é tão chutado mas se diverte com as crianças e com os adultos também. Na atualidade com as meninas e os meninos.

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  8. Caro Amigo, Muito boa tarde, De fato, devemos sempre recordar da criança que fomos, esse é o segredo de uma vida longa e ditosa . . . Recomendações à Sônia e demais familiares.

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    1. Caro amigo JH,
      Concordo com você!
      Boas recordações só alegram a nossa vida. E os tempos de criança guardam talvez nossos melhores momentos.
      Um grande abraço e uma maravilhosa semana para você e toda a sua amada família!

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  9. Ei, meu primo!
    Sempre me divirto com suas histórias de meninos criativos, alegres, cúmplices – sobretudo por percebe-los como uma irmandade cheia de alianças e de afeto.
    Mas hoje o que me chamou a atenção foi a vizinha intolerante- fico pensando o que pesa tanto no coração de uma pessoa, a ponto de leva-la à violência diante da brincadeira da garotada. Com certeza, não era apenas rabugenta, egoísta e mal- humorada . Era infeliz.
    E vocês, mesmo fazendo muita ” arte”, como diriam os mais velhos, esbanjavam alegria de tal forma que até as lembranças trazem satisfação.
    Bem melhor para viver é essa leveza.
    Grande abraço!

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    1. Querida prima,

      Que bom ter se divertido com a crônica.
      Nós que tivemos uma infância rica e cheia de acontecimentos e aventuras temos estas “lembranças que trazem satisfação”.
      Muito obrigado por comentar!
      Bjs

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