ESCURIDÃO

Normalmente a gente se preocupa com as coisas ameaçadas de extinção em nosso mundo. O que possa fazer falta, claro. Imagino que ninguém há de lutar contra a extinção de uma doença ou de algo que foi substituído com vantagens por outra coisa mais interessante e prática, como o computador fez com a máquina de escrever.

Muitos lutam, por exemplo, para que espécies da fauna e da flora não deixem de existir. Outros por manter uma tradição, um hábito ou algum aspecto cultural. Ou seja, há uma preocupação com as coisas que, se extintas, representarão a ausência de algo positivo no mundo ou necessário ao nosso bem viver.

Eu também tenho uma causa — peço ao leitor que evite o riso — pois travo uma luta individual contra a extinção da escuridão no mundo. Sim, acho que sou o único soldado neste exército e posso até, com justa razão, ser julgado insano, mas não posso negar que a escuridão me faz falta.

O silêncio está para os ouvidos como a escuridão para os olhos. Este é o lema da minha guerra individual, inglória e já perdida antes mesmo de começar. Mas não importa: para mim, ambos são verdadeiras carícias aos nossos sentidos.

Para quem mora em cidades, como a imensa maioria de nós, a noite escura não existe mais. Mal ela se apresenta e, por todo o lado espocam lâmpadas acendendo, nas casas e nas ruas, seja por mãos humanas, seja por sensores de luz. Ao invés de dia e noite podemos estar caminhando para uma alternância entre dia natural e dia artificial.

Chego a pensar que, em breve, ao nos referirmos à rotina como o nosso “dia a dia” estaremos literalmente certos: um dia atrás do outro sem uma noite no meio. E assim, quando uma mãe “der a luz” à um recém-nascido, não será mais no sentido figurado, mas real, em todos os momentos e por toda a vida. A luz que não se apaga…

O fato é que encontrar silêncio já não está sendo fácil, mas encontrar escuridão está se tornando quase impossível. É preciso praticamente sair do mundo para se esconder da luz. No reduto do quarto de dormir é preciso fechar portas e janelas, cerrar cortinas e usar algum artifício para obscurecer as lâmpadas piloto de ar condicionado, televisão e outros eletrônicos, que parecem estrelas artificiais teimando em pontilhar o ambiente. É muito diferente dormir na escuridão ou na companhia de alguma luz.

Mesmo sob a possibilidade quase certa do leitor indicar-me um psiquiatra, vou revelar que descobri uma brecha para uma breve, mas agradável oportunidade de desfrutar da escuridão. Um oásis negro no enorme deserto da claridade.

Na realidade não é algo novo, pois pratico há muitos anos e mantenho até hoje como um hábito que me faz bem. Com uma certa timidez, quase envergonhado, faço saber ao leitor que tomo banho no escuro. Pronto, confessei.

Não satisfeito em confessar, vou saciar a eventual curiosidade sobre como se desenrola esta excentricidade.

Primeiro me asseguro de que todos os itens estão em seus lugares: sabonete, shampoo, toalha, chinelos e piso atoalhado. Ainda com a luz acesa, ligo o chuveiro e regulo a temperatura da água. Apago então a luz e começo o ritual de purificação.

De início, sem enxergar nada, vou tateando até o box, acostumado com o pequeno percurso e guiado pelo barulho da cachoeira, que é como denomino o chuveiro no escuro. Não estou vendo a ducha e, portanto, chamo-a como quiser. Fico livre para imaginar que estou me banhando nas cataratas do Iguaçu.

A água tépida percorrendo o corpo na escuridão produz uma sensação esplêndida. Demoro um pouco ali, relaxando e, aos poucos começando a perceber o delineamento dos objetos no ambiente, mas sem prestar atenção neles. É como se a escuridão fosse diminuindo lentamente, efeito proporcionado por nossos milagrosos olhos, que se adaptam à pouca luz e aproveitam cada réstia. Sim, nós temos visão noturna!

Pego o shampoo sem errar. Não preciso ler o rótulo, ver a marca ou entender como abrir a tampa e, portanto, a luz seria desnecessária. E inconveniente. Sirvo-me da porção exata, que conheço pelo pressionar do frasco e pela presença do shampoo na mão. Via de regra, sei por onde anda minha cabeça e assim fica fácil concluir a tarefa. Além do mais não conheço ninguém que, sem espelho, mesmo com a luz acesa, alguma vez tenha visto sua própria cabeça…

Com o sabonete ocorre o mesmo. Basta pegá-lo e fazê-lo deslizar pelo corpo, este também meu velho conhecido — me refiro ao corpo e não ao sabonete, claro. É uma explosão dos sentidos: o gostoso som da água caindo, o cheiro de lavanda do sabonete, a espuma percorrendo o corpo, a automassagem, uma agradável sensação de limpeza e o descanso dos olhos que nada precisam ver e assim dão repouso à mente.

Tudo termina no aconchego da toalha macia, bem seca e cheirosa. Às vezes, depois de terminar, ao invés de acender a luz e voltar ao mundo iluminado, tenho vontade de reiniciar o banho e renovar o prazer daquele momento.

Um momento único, fora da caixa, fora do mundo, sem pressa e sem pressão, sem claridade, na escuridão.

Como é bom tomar um banho em braile!

 

Antonio Carlos Sarmento

25 comentários em “ESCURIDÃO”

  1. Sarmento, vou te contar um habito/excentricidade meu: ha tempos tomo banho de olhos fechados como se fosse cego! Mas ha uma razão. Tinha um amigo no Brasil, idoso, que na sua igreja dava aulas de “melhoria de vida” a outros igualmente velhos, e uma das tecnicas para melhor manter o equilibrio e melhorar a execução de rotinas, o que para idosos é importante, era justamente tomar “banho de cego” que é como eles chamavam. Te confesso que me ajudou e ajuda muito no fortalecimento da criação de rotinas. É quase como tomar banho no escuro. Aguça os outros sentidos e me fortalece o foco. (Cada doido com suas manias e teorias.) Boa semana e que Deus te abençoe e a sua familia.

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    1. Amigo Luigi,
      Essa do banho de cego não conhecia, mas imagino que o efeito seja bem próximo do banho no escuro.
      Vou testar.
      Como você mesmo disse, cada doido com a sua mania…
      Abraços e desejo uma maravilhosa semana a você e sua família. Fiquem com Deus!

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  2. Ótima a crônica de hoje, abordagem sem estoques.
    Essa confissão íntima como se fosse algo surreal deu um ar intimista e ao mesmo tempo uma exposição para julgamento dos leitores.
    De médico, poeta e louco todos temos um pouco, não se preocupe, rs.
    Parabéns pela inspiração e tenha um ótimo domingo.

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  3. Prezado Amigo, Muito bom dia, Não se envergonhe desse seu hábito, uma ação desconhecida por muitos seres, beirando a totalidade é verdade, mas muito interessante, com certeza . . . Você tem muita razão, com relação ao excesso de claridade. Me encanta apreciar luar, na chácara da minha irmã, lá em Brasília, no Núcleo Rural Casa Grande-Gama, é uma sensação indescritível, quase tocar, com as mãos, aquele céu estrelado; é muito bonito, encantador mesmo . . . Agradeço-lhe por me trazer essa recordação hoje . . . Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Jean e ao Gui.

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    1. Meu caro amigo JH,
      Fico contente que a crônica tenha lhe trazido boas recordações. No campo, um céu estrelado é realmente encantador.
      Suas recomendações à Tatiana, Jean e Guilherme estão sendo dadas pessoalmente pois chegamos à Portugal esta semana para uma estadia de 40 dias.
      Grande abraço meu amigo e muito obrigado por seus comentários.

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  4. Nesse caso, também preciso um psiquiatra, concordo.
    A escuridão me fazia ver o céu com seu potencial inesgotável da beleza das estrelas.
    Hoje é raro ver , por exemplo, uma estrela cadente.
    Evidentemente que existe a necessidade da luz, porém, quando vou a um hotel Fazenda acho totalmente desnecessário o excesso de luz.
    Quando jovem, eu acampava muito e a beleza da noite é inesquecível, com o céu bem próximo.

    A sua crônica trouxe muita luz!
    Beijos
    Chico

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    1. Amigo Chico,
      Se achar o psiquiatra vamos juntos e cada um paga a metade da consulta já que é o mesmo problema, ok?
      Ver um céu estrelado no ambiente rural é maravilhoso: dá vontade de deitar de olhos abertos e desfrutar da paisagem inigualável.
      Obrigado por comentar, meu irmão.
      Bem sacada sua última frase.
      Tenham uma ótima estada em São Lourenço, com muito escurinho e o amor da família!
      Beijos em todos!

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  5. Antônio Carlos, gostei bastante da crônica de hoje, bem construída e interessante . Confesso que tb aprecio a escuridão e o banho de olhos fechados e relaxante e melhora a concentração.
    Quando tenho oportunidade vou pra algum lugar onde seja possível ver as estrelas do céu noturno. Obrigada por me trazer estas recordações agradáveis.

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  6. Desde criança tenho medo de escuro Por onde passo vou acendendo as luzes mas o banho, apesar da luz do banheiro acesa, tomo de olhos fechados! Cada doido com seus traumas e suas manias. A propósito, minha conta de luz é um horror!!!
    Beijão

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    1. Amiga Lucia,
      Você e meu amigo Luigi revelaram o banho de olhos fechados. Assim, me sinto em boa companhia na mania de tomar banho no escuro…
      Realmente de louco todos temos um pouco!
      Beijão e desejo uma excelente semana.

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  7. Muito boa, essa do banho em braile!
    Para além do prazer que possa dar, será sem duvida um excelente exercício para o cérebro na criação de novas ligações sinápticas, pois levará a estimular mais os outros sentidos, gestos, etc.
    Compreendo muito bem os excessos de ruído, luz, palavras… cansaço em que vivemos. Por isso, qualquer fuga é um acto heróico!

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    1. Dulce,
      Tem razão. Todo excesso causa desgaste. E alguns, quem sabe muitos, são imperceptíveis.
      Mas quando tomamos consciência, precisamos encontrar formas de atenuar aqueles que mais nos incomodam.
      Agradeço muito seu comentário e desejo uma excelente semana.
      Por algum tempo estamos no mesmo país, pois vim ao Porto visitar minha filha, genro e neto.
      Saudações!

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  8. Meu grande amigo. Li e fiquei imaginando como seria no meu caso. Acordei do sonho escorregando ou tropeçando e caindo no chão. 🤔
    Mas sua crônica me fez pensar nesta realidade da falta de escuro e da beleza de um céu estrelado, que não é possível de enchergar e sentir no escuro inexistente das cidades.
    Me lembrei então da fazenda de meus tios avós no interior de Minas Gerais onde o escuro era valorizado pelas estrelas do céu e sentido por nós, que ficou bem guardado em nossos corações ✨
    Forte abraço

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    1. Querido amigo Rodolpho,
      Só o fato da crônica ter feito você reviver momentos da infância junto aos seus avós, já é recompensador para mim.
      Obrigado por comentar, meu caro amigo.
      Grande abraço a você, Idalina e toda a família.

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  9. Meu irmão, adorei a crônica!
    Curto muito a escuridão nas pernoites feitas no veleiro fundeado próximos às ilhas desertas com momentos únicos , reflexivos e valiosos. Sensação prazerosa, principalmente quando tomo o “banho de lua”.
    Mas sua crônica veio a calhar com a situação que passamos nesta última semana quando fomos jantar num restaurante no Village Mall numa penumbra inviável de se ler o menu, tivemos que acender a lanterna do celular para escolhermos os pratos e ao olhar ao redor percebemos os “lanterninhas” nas demais mesas em que até mesmo os jovens estavam com a mesma dificuldade. Mas o mais notável foi na hora de pagar, quando nosso amigo pediu a conta e falou para o garçon dividir por dois o valor total, ele por engano digitou o valor integral, entregou a máquina do cartão para nosso amigo que prontamente sem ver (sem auxílio da lanterna) digitou a senha. Só ficamos sabendo do ocorrido porque ao pedir para pagarmos nossa parte o garçon informou que já estava tudo certo. Para desfazer a situação hilária foi preciso chamar o gerente. Foi bom clarear…
    Lembrei da expressão popular “À noite todos os gatos são pardos”.
    Beijos carinhosos aos lusitanos .

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    1. Minha irmã,
      Neste caso que você contou, poderíamos parafrasear e dizer que “à noite todos os gastos também são pardos”, pelo menos neste restaurante… hahahaha
      Muito obrigado por comentar e também compartilhar suas histórias.
      Beijos e uma maravilhosa semana!

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  10. Meu primo, sua inspiração é imprevisível. Acho isso muito bom.
    Somos pegos de surpresa e levados a prestar mais atenção em pequenos ou grandes detalhes de nossa rotina- aqueles que, de tanto ver ou fazer, já não percebemos mais.
    Dessa vez você foi na contramão dos poetas que sempre recorrem às velas e às estrelas para fugirem da escuridão.
    Mas veio bem ao encontro de
    doces recordações- quem não se lembra do escurinho do cinema, grande aliado dos apaixonados?
    Beijos aos queridos de Portugal.
    Fico aqui , já curiosa em saber com o que essa cabeça sentimental vai nos
    presentear no próximo domingo.

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    1. Querida prima,
      Muito bem lembrado o escurinho do cinema. Deu o toque romântico que talvez tenha faltado.
      Fico contente que a leitura possa lhe trazer doces recordações.
      Em Portugal tudo em paz, graças a Deus!
      Beijos e desejo que por aí também estejam alegres e em harmonia.

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