O SORRISO

Chegou a hora de escrever a crônica e fiquei zanzando atrás do tema, como um beija-flor em busca de néctar. Pulei de flor em flor, mas não consegui decidir. Achei melhor então optar por uma trégua, uma paz provisória, algo como dar um tempo num namoro… A mente adora um refresco.

Foi assim que abdiquei da tarefa e resolvi ir buscar meu neto Guilherme, de 2 anos, na creche. Eram umas 4 horas de uma linda tarde na cidade do Porto. Ele me foi entregue em perfeito estado, alegre, limpo e saciado da necessária convivência com outras crianças. Acomodei-o no carrinho e seguimos pelo nosso percurso de uns 15 minutos até em casa, desfrutando do clima ameno do verão em Portugal.

Paramos para atravessar uma rua calma e arborizada. Percebi do outro lado, na entrada de um pequeno prédio, uma senhora idosa na cadeira de rodas. Ela aguardava pacientemente enquanto sua acompanhante realizava os preparativos para um passeio e ajeitava algumas coisas na bolsa.

A visão de alguém em uma cadeira de rodas é sempre triste, pois associamos com uma limitação ou perda de autonomia. Lembrei de meu pai, que aos 90 anos caminhava com alguma dificuldade e usava uma bengala. Certa vez, chegamos ao aeroporto e um funcionário ofereceu a ele uma cadeira de rodas. Era a primeira vez na sua vida que surgia esta oportunidade. Aguardei com expectativa. Porém, ele não hesitou: aceitou imediatamente e seguiu fascinado com aquele deslizar suave, cômodo e seguro que a cadeira lhe permitiu. Ao saltar, olhou para a cadeira e disse ao rapaz: Que maravilha! Daquele dia em diante passei a ver a cadeira de rodas de modo diferente do senso comum.

Mas voltemos ao Porto, de onde eu nem deveria ter desatracado para outra viagem.

Fui atravessando a rua e, à medida que ia chegando mais perto, pude observar melhor aquela senhora. Sua aparência chamava atenção. Postura ereta, mãos no colo e pés ligeiramente cruzados transmitiam uma imagem de autoestima e dignidade. Os cabelos pintados de castanho e muito bem arrumados contrastavam com o vestido azul de botões brancos. Uma leve maquiagem era complementada por brincos e um colar discreto. Não tenho como saber, mas eu poderia apostar que usava um perfume leve e agradável. Lembrei do meu avô, que dizia: velhice é higiene e sol!

Ao passarmos em frente ao prédio, ela viu o Guilherme, que comia um biscoito alegremente, enquanto fazia gestos ritmados e cantarolava uma musiquinha. Quando a senhora o viu, abriu um sorriso que até hoje não saiu da minha memória. Como descrevê-lo? Espontâneo, luminoso, verdadeiro e intenso. Mais que isso: para mim, lindo e emocionante. Havia alegria naquela senhora e esta aflorou com a passagem do Guilherme à sua frente.

Senti aquele momento parar como um retrato. Eu e a acompanhante cumprindo o mesmo papel. A senhora e a criança, ambas na idade das rodas! Ela por ter passado a fase de aptidão para caminhar e o Guilherme por ainda não a ter alcançado plenamente.

Não resisti. Fiquei parado por um instante para fazer durar mais aquele sorriso. Olhei para a senhora e acenei com a cabeça, mas ela não me viu. Estava fixada na criança e sua expressão era de alegria, ternura e encantamento.

Acho que se ela pudesse deixaria aquelas rodas, daria um pulo e brincaria com Guilherme. Tive vontade de dizer-lhe: vem para a roda, pega na mão dele, a vida te chama para dançar! Quem tem um sorriso desses é uma pessoa rica e rara.

Segui em frente, mas meu pensamento ficou lá, parado, degustando a beleza daquele momento simples e profundo. Às vezes é preciso toda uma vida para acabarmos percebendo que a felicidade está dentro de nós. Ali estavam duas vidas em contraste, uma já muito vivida e a outra com muito por viver, mas ambas em pleno momento de felicidade.

Não sei explicar, mas há mais de uma semana aquele recorte de vida não sai dos meus pensamentos. Chego a querer voltar lá com o Guilherme só para ver de novo aquele sorriso. Agora sou eu que preciso dele…

Sei que a alegria está lá, armazenada na alma daquela senhora, esperando algo para que venha à tona. A acompanhante não, eu também não, mas Guilherme em seus dois aninhos, mesmo sem saber, é capaz desta proeza.

Tenho que dar razão ao nosso poeta maior, Carlos Drummond de Andrade:

Há duas épocas da vida, infância e velhice, em que a felicidade está numa caixa de bombons”.

Ou de biscoitos…

Antonio Carlos Sarmento

34 comentários em “O SORRISO”

  1. Que beleza de crônica. Linda, me fez viajar no seu momento. 2 coisas me fixaram a mente: A senhora portuguesa do Porto , e seu sorriso cativante e de paz. Sabe porque Sarmento amigo? Minha vozinha, Dna. Joaquina, que foi um grande amor de minha vida, pessoa que me preencheu de amor verdadeira na minha tenra idade, era do Porto. Veii de la para o Brasil, menina e nunca mais teve a oportunidade de retornar. Quisera eu, nos dias de hoje onde as coisas são mais simples no viajar, poder ter dado a ela essa volta a santa terrinha dela. Obrigado pela profunda emoção e que Deus nos abençoe. Ainda vou voltar a Portugal e conhecer o Porto de vó Quina.

    Curtido por 1 pessoa

    1. Amigo Luigi,
      Se te trouxe boas lembranças e emoção já me sinto recompensado.
      Só faltava a senhora do sorriso também se chamar Joaquina…
      Quem sabe um dia nos encontramos por aqui, você para matar as saudades da Vó Quina e eu para matar as saudades do Guilherme.
      Grande abraço, meu caro e que sua semana seja de paz e alegrias junto à sua família!

      Curtir

  2. Enquanto lia a crônica vi o retrato da cena, e da linda senhora. É interessante como no mesmo instante coloquei no lugar dessa senhora diversas pessoas que passaram pela minha vida, e como sempre acontece quando penso neles, me lembro do sorriso dessas pessoas.
    Ao mês o tempo fiquei imaginando o que essa senhora estaria pensando, talvez a beleza de ser criança que ela foi um dia, lembrança de momentos felizes , de algum neto querido, saudade dos filhos quando pequenos. Enfim, o que um sorriso de criança pode proporcionar.
    Precisamos ser mais criança e aprender com elas que um sorriso sem compromisso, pode mesmo involuntariamente trazer felicidade a outra pessoa.
    Como diria seu pai: ” Que maravilha!”

    Parabéns Cacau, essa crônica foi muito especial senti sua alegria ao escrever com maestria. Na felicidade dessa senhora, vi seus sentimentos e imaginei o que você reflete quando lhe vem a cena.
    Beijos

    Curtido por 1 pessoa

    1. Chico,
      Como você, também fiquei imaginando as lembranças desta senhora ao ver o Gui. A fonte daquele sorriso estava talvez em uma imagem do passado, um filho ou neto distante, ela mesma quando criança ou uma felicidade que andava esquecida. Seja como for, o importante foi a alegria ter surgido na forma daquele sorriso que tanto me marcou.
      Chico, percebo que você compreendeu muito bem os sentimentos envolvidos naquele momento tão singelo e simples. Tempos um coração parecido e aí nos identificamos.
      Muito obrigado pelo seu emocionante comentário.
      Bjs no Pedrão e na Helen!

      Curtir

      1. Acredito que realmente nossos corações são muito parecidos. Muito privilégio para mim.
        Bjs em todos.

        Curtido por 1 pessoa

  3. Lindo. A vida é cíclica, né? Às vezes nos atemos só a beleza dos inícios , mas tb já beleza nos fins. A felicidade realmente está dentro de nós. 🙂

    Curtido por 1 pessoa

  4. Amigo Antonio Carlos:

    Realmente, o sorriso, que externa alegria, é uma das preciosas dádivas que Deus nos proporciona.

    Sds. do assíduo e fiel leitor,

    Carlos Vieira Reis

    Curtido por 1 pessoa

    1. Caro amigo Carlos,
      Tenho certeza que seu querido neto já arrancou deste avô amoroso muitos desses sorrisos.
      E é realmente uma dádiva de Deus!
      Muito grato por comentar e acompanhar as crônicas com assiduidade absoluta!
      Grande abraço e uma ótima semana!

      Curtir

  5. Dileto amigo.
    Muita inspiração nessa crônica de hoje. Muito linda quando você compara o sorriso do Guilherme e dessa senhora na cadeira de rosas. É difícil escolher qual sorriso nos toca mais. Sinceramente o sorriso de uma pessoa idosa ao ver uma criança,em qualquer circunstância, é de um valor incalculável.
    Muito linda a crônica de hoje querido amigo.
    Como comentário adicional…
    Fiquei surpreso e com dificuldade para entender você pulando de flor em flor como um beija flor a procura de um néctar… Estranho !!!!
    Mas valeu….
    Abrs na Sônia e nos portugueses….

    Curtido por 1 pessoa

    1. Amigo Nei,
      Fico contente que tenha apreciado a crônica.
      Seus comentários são sempre interessantes. E a pitada de humor dá o tempero exato!
      Quanto ao beija flor só posso dizer que dei um sorriso…
      Beijos na Jaciara e espero que estejam muito bem, prontos para a viagem a Brasília!

      Curtir

  6. Prezado Amigo, Muito bom dia, “A felicidade ou se compartilha ou se perde”, eis aí um axioma escrito há muitos anos por um Mestre de sabedoria e que a todo momento podemos comprovar, certamente a senhora ao dirigir um olhar alegre e carinhoso ao Gui, estava compartilhando com ele a felicidade que ela sentia, a mesma que intuía nas feições do Gui, isto é fantástico, sem dúvida . . .] Quantos momentos desses nós perdemos por não estarmos atentos . . . Parabéns, mais uma vez . . . Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Jean e ao pequeno Gui.

    Curtido por 1 pessoa

    1. Caro amigo JH,
      De fato perdemos muitos momentos de alegria quando não estamos atentos.
      E a frase que citou sobre a felicidade é uma pérola!
      Grato por comentar e espero que dê largos e felizes sorrisos à Catarina!
      Uma maravilhosa semana, meu grande amigo!

      Curtir

  7. Parabéns pela sua inteligência e sensibilidade,sou seu admirador desde o tempo que VC foi meu chefe no Metro do Rio.Voce e Jorge Ribas

    Curtido por 1 pessoa

    1. Marco Antonio,
      Com muita alegria recebo seu comentário. Saiba que ao menos uma vez por ano encontro o Jorge Ribas e colocamos o papo em dia.
      Também tenho muito contato com o Fred, que você também deve se lembrar.
      Grande abraço e continue marcando presença por aqui.

      Curtir

  8. Meu amigo querido, muito verdadeiro o ciclo da vida. Cuidei das minhas filhas quando bebês e da minha mãe na velhice que virou um bebê. Quanto aos bombons se forem de cherry, a felicidade estará completa, kkkk. Beijão e saudades

    Curtido por 1 pessoa

  9. Quanta sensibilidade meu irmão pra perceber a beleza que há na simplicidade da vida !!
    As crianças são nossa melhor versão de ser humano e capazes de despertar nobres sentimentos e emoções arquivadas pelo tempo !!!
    Em se tratando do Gui, essa capacidade multiplica!!!hahaha…
    Um sorriso pra você!!!!

    Curtido por 1 pessoa

  10. Você é demais meu amigo. Que linda crônica!
    Quando olhamos para esses períodos da vida, infância e velhice, e temos a oportunidade de refletir a respeito do que você escreveu tem que se emocionar.
    Um grande abraço e abençoada semana.

    Curtido por 1 pessoa

  11. EXCELENTE, PARABÉNS!
    O jovem amigo e irmão escritor Antônio Carlos, possui uma intimidade com as maravilhas da vida que se sopresaem aos nossos olhos, razão pela qual Deus tem vc e família como exemplo para todos nós. Parabéns meu jovem amigo e irmão, um fraterno abraço.
    Osluzio e família.

    Curtido por 1 pessoa

    1. Meu queridíssimo amigo Oslúzio,
      Muito bom receber seu comentário e saber que continua acompanhando as crônicas.
      É maravilhoso ter você como leitor.
      Desejo ao amigo e sua família uma semana abençoada!
      Grande abraço!

      Curtir

  12. Adoramos…sensibilidade, intensa alegria e imensa Luz nos pequenos detalhes…ficamos mesmo com vontade de ir se novo até poder observar o sorriso da Senhora…Armando e Valéria

    Curtido por 1 pessoa

  13. Meu primo,
    Essa é uma crônica que inspira esperança: imaginamos o glamour do Porto ao entardecer, o vovô (também garboso) se deleitando com uma doce companhia e a troca de sorrisos , cheia de sentimentos percebidos imediatamente pelo coração.
    A leitura oferece otimismo. E confiança- mesmo diante da rotina, o prazer muitas vezes nos surpreende e as limitaçoes da idade nao apagam a alegria de viver.
    Também pudera! A inspiração é um lindo menino, de bochechas fofas e sorriso largo. Muitos beijos para ele!
    Grande abraço, querido primo. Leitura muito agradável.

    Curtido por 1 pessoa

    1. Querida prima,
      Seu comentário é uma poesia. E seu coração sensível percebe de longe as oportunidades de encantamento que se escondem na rotina.
      Atendi seu pedido e dei muitos beijos no Gui, dizendo que são de sua parte.
      Beijos e desejo que tenha uma maravilhosa semana com suas filhas e netinhos!

      Curtir

  14. Querido primo!
    O sorriso aparece quando o coração está feliz e em paz!!!! Ao ler a crônica de hoje me passou um filminho da cena descrita e fiquei feliz…Bjs

    Curtido por 1 pessoa

Deixe um comentário