PARTILHA

Dar título à uma crônica às vezes é algo natural e simples. Ele brota em algum momento e se encaixa no texto, como a peça certa de um quebra-cabeça. Outras vezes é uma tortura, pois nada parece servir e é preciso mudar e mudar, até de fato encontrar o título que condiz com o texto. Eu já mudei título de crônica pronta e agendada para publicação. Confesso também que me arrependo de alguns e se pudesse continuaria mudando até acertar…

O título desta crônica por exemplo veio logo no início da escrita. Na realidade foi a primeira palavra que me ocorreu. Assim que apareceu na tela, encabeçando a página em branco tive o ímpeto de apagá-la, pois poderia levar o leitor a pensar em morte, testamento, partilha de bens. Porém, resolvi manter já que na verdade vou falar mesmo de morte.

Eu estava numa viagem com a família em Mendoza, na Argentina, visitando uma vinícola e degustando algumas taças de belos exemplares, quando meu celular tocou. Era minha irmã mais nova que, chorando, me deu a notícia:

– Nossa mãe se despediu!

Mal pude crer. Uns 10 dias antes estávamos juntos comemorando seus 88 anos e ela estava bem. Bebeu champanhe e ficou conversando até depois da meia-noite, lúcida e alegre. Tranquilo por vê-la tão bem, viajei alguns dias depois. Mas a morte, apesar de certa e inevitável, acaba sendo quase sempre surpreendente. É da natureza da morte fazer-se acompanhar de um sobressalto.

Ficar órfão aos 63 anos não pode ser considerado uma tragédia, mas senti uma emoção muito mais intensa do que imaginava. É aquela frase estúpida e verdadeira, rasa e profunda, que não diz nada e diz tudo: mãe é mãe!

Lembrei de um colega de trabalho, muito vivido e experiente, que costumava repetir um bordão que me fazia rir e pensar. Dizia ele: Quem gosta mesmo de mim sou eu e minha mãe! Eu chegava a pensar que gostar de si mesmo talvez nem sempre fosse verdade, porém quanto a mãe, salvo raras exceções para confirmar a regra, é sim uma certeza absoluta.

A delicada forma usada por minha irmã para anunciar a morte de minha mãe não me saía da cabeça. Pode ser que ela tivesse se despedido, mas não de mim. Eu apenas dei um “até breve” para uma pequena viagem de uma semana e não um adeus eterno. Precisava vê-la mais uma vez, senão ficaria com uma sensação de vazio, de incompletude, como um ciclo que acabou sem se fechar.

Face à dificuldade de alterar toda a logística da viagem, combinei com minha família que iria sozinho fazer a despedida e voltaria tão logo fosse possível, para concluirmos o passeio. Liguei para minha agente de viagens e pedi uma passagem urgente.

Consegui os bilhetes de ida e volta num esquema louco e caro, com longas madrugadas em aeroportos e conexões, mas que me permitiam chegar ao Rio de Janeiro num sábado à tarde, participar do funeral no domingo de manhã e embarcar de volta à Mendoza no final deste mesmo dia.

Na ida e na volta havia uma adorável espera no aeroporto de Buenos Aires, entre meia-noite e seis horas da manhã. Coisa maravilhosa! Mas eu iria, mesmo se as condições fossem ainda piores, pois um irresistível impulso interno me levava a querer me despedir dela. Na realidade não era um querer, mas um precisar.

A dor da perda me fez telefonar para amigos no Brasil, uns para comunicar o ocorrido, outros para pedir ajuda nas providências do sepultamento, como conseguir um padre para o rito do velório. A cada vez que ouvia um dos meus amigos a dor parecia ceder um pouco. Como é bom ouvir uma voz amiga num momento de tristeza.

Na solidão do voo de ida, o choro me fez companhia várias vezes. Quando eu achava que já tinha desabafado e estava mais tranquilo, lá vinha novamente o impulso das lágrimas e os soluços doídos. Horas e horas de voo, de esperas, sem ninguém. Até vontade de falar sozinho eu tive. Como é duro viver uma dor solitariamente.

A pessoa ao meu lado no avião, um jovem de uns 35 anos, teve a gentileza de fingir não perceber meus momentos de sofrimento. Acho que não era argentino, ou se era, não gostava de futebol senão talvez o cavalheirismo não acontecesse…

Após a longa peregrinação cheguei em casa, sonado e chorado. Procurei relaxar e me preparar para o dia seguinte, consolado pela expectativa de poder me despedir da minha mãe, embora a recíproca não fosse verdadeira.

Cheguei no dia seguinte ao cemitério, pouco antes da hora marcada. A mistura de ansiedade e tristeza me perturbava. Ao estacionar, calculei mal o espaço disponível para a manobra e acabei amassando o para-lamas traseiro de um carro ali estacionado. Avisei ao guardador o número da capela onde estaria e pedi que avisasse ao dono.

Vou poupar o leitor de detalhes, dizendo apenas que tudo transcorreu de forma suave e bela. Havia muitos amigos e familiares presentes, o que teve um efeito mágico naquele momento de sofrimento. Cada abraço parecia uma dose de analgésico, me trazendo alívio e reduzindo a dor.

Ao final do velório, o dono do carro se apresentou. Era um rapaz de uns 25 anos, que estava na capela em frente. Me perguntou quem havia falecido. Quando disse que era minha mãe, ele fez uma expressão triste e me deu um abraço emocionado, dizendo: meus sentimentos! Aceitei também aquele abraço desconhecido. Ele então me olhou e disse que não me preocupasse com o carro dele, pois já havia outros reparos e aquele amassado não faria diferença. Despediu-se dizendo:

— Perder a mãe não é fácil…

Assenti e pensei de novo: mãe é mãe!

Dali segui para casa e depois para o aeroporto, mais leve e íntegro, disposto a enfrentar novamente a maratona aérea. Sentia-me revigorado pela solidariedade e carinho dos amigos, familiares e até daquele desconhecido cujo carro avariei.

Um amigo, não satisfeito em ter me ajudado em toda a logística, ainda queria me levar ao aeroporto. Claro que não aceitei, mas até isso me fez bem. Demonstrações de amor quando estamos frágeis têm um peso ainda maior.

Embarquei no horário previsto rumo à capital argentina, sabendo que respiraria apenas os “aires” do aeroporto. Cheguei próximo de uma hora da manhã e procurei um local para me instalar e permanecer por longas horas, sem saber se meu organismo aceitaria ficar lendo ou iria preferir dormir sentado.

Mal me acomodei e meu telefone tocou. Estranhei, pois não existe fuso horário entre os países sendo, portanto, madrugada também no Brasil. Era o mesmo amigo que havia oferecido me levar ao aeroporto:

— E aí? Já chegou em Buenos Aires?

— Sim. Acabei de chegar. Mas porque você está acordado a esta hora da madrugada? Ficou maluco?

— Não, eu já dormi e botei o relógio para tocar neste horário. Assim a gente bate um papo e te ajuda a passar o tempo.

Meu Deus! Quanta generosidade. Conversamos por mais de uma hora.

Acho que só no final daquele domingo, já com mais de sessenta anos, pude compreender verdadeiramente o que é partilhar uma dor. Partilhar uma alegria é mais fácil e intuitivo: a gente telefona, marca encontro, comemora, ri, canta, brinda e fala alto. Mas a dor é diferente: apenas um abraço, mesmo sem nenhuma palavra já é um bálsamo.

Completei a viagem de volta pensando nesta maravilhosa matemática das relações humanas amorosas e verdadeiras. Elas produzem dois milagres: as alegrias partilhadas se multiplicam e as tristezas partilhadas se dividem!

 

Antonio Carlos Sarmento 

33 comentários em “PARTILHA”

    1. Maurício,
      Lembro bem deste momento que você passou, como recordo que há alguns anos, encontramos você na companhia dela no restaurante Paese, acho que na época ainda chamado de Amadeus.
      Grande abraço e espero que a crônica tenha lhe trazido emoção e boas recordações.

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  1. Querido Cacau, você escreveu ,tempos atrás, uma linda crônica sobre amizade.
    E hoje num momento passado de tristeza você novamente citou a palavra amizade.
    Tenho certeza absoluta que, nenhum amigo de verdade você acha por achar, mas sim, porque somos os responsáveis direto em nossas relações.
    Amizade não se escolhe, colhe o que se planta.
    Te agradeço por ser meu amigo irmão.
    Deus é muito generoso comigo.
    Desejo que nosso jardim seja sempre muito florido de verdadeiras e sinceras amizades, que ao longo da vida passamos sentir sempre esse perfume, principalmente nos momentos de maiores desafios.
    Beijos

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    1. Chico,
      Não sei se plantei com tanto capricho e qualidade para colher um amigo como você. Acho que é mais mérito do seu coração que, como comentei na crônica, é cheio de “generosidade”.
      Disse nela o que vai no meu coração.
      Beijos e uma maravilhosa semana para você, Pedrão e Helen!

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  2. Meu irmão amigo 👦
    Hoje estou sem palavras, só emoção e profundo sentimento com sua bela e sensível narrativa ….
    Me enganei:
    Mamãe não se despede JAMAIS!!

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    1. Minha irmã,
      Como a Cristina comentou você tem razão: mãe nunca se despede!
      Compartilhamos a mesma emoção e o profundo sentimento ao recordar aqueles momentos.
      Nossa mãe deixou marcas de seu amor em nós, que nunca se apagarão.
      Beijos, grato por comentar e uma maravilhosa semana!
      Será que o Tom vem logo ou vai me esperar??

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      1. Vai te esperar….
        Quando a primavera chegar!!!
        Curta muito seus dias com seus queridos mais queridos!!
        Bjkas

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  3. Que amigo irmão. ♡
    Lindo relato. Emocionou daqui lembrar dos 4 anos de saudade dessa mulher que era puro amor. Pra sempre viva dentro de nós.

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  4. Uma mãe não se despede jamais… palavras verdadeiras da Sônia.
    Senti tantas emoções idênticas às de você e de sua irmã.
    Meus abraços e consolos, tirando os muito próximos, foi limitado pela pandemia.
    Sentir um luto aos 65 anos, pela morte de uma mãe de 103 anos, é estranho para os que não são seus filhos, mas… mãe é mãe.
    Amei seu conto que é mais uma reflexão e partilha de sentimentos.
    Parabéns

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    1. Cris,
      Me lembro bem do aniversário de 100 anos de sua mãe. Memorável!
      E você teve o privilégio de uma convivência longa e muito intensa com ela.
      Que bom partilharmos os sentimentos através da crônica!
      Beijos e uma ótima semana!

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  5. Meu amigo Antonio Carlos:
    Sei quanto dói perder a nossa querida mãe. Já passei por esta experiência, também, na qualidade de filho único, talvez a dor tenha sido muito mais intensa.
    Mas, Deus sabe que faz. Tenho certeza de que nossas mães estão no conforto do céu, abençoadas e protegidas pelo Nosso Senhor Jesus Cristo.
    Parabéns pelo artigo, embora muito triste.
    Sds.
    Carlos Vieira Reis

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    1. Caro amigo Carlos,
      Como você disse, é bem provável que sua dor tenha sido ainda mais intensa pelo fato de ser filho único.
      Mas, com certeza, nossas mães estão em paz na vida eterna e isto nos consola.
      Só não gostaria de ter levado tristeza à você…
      Fique com Deus, meu amigo e tenha uma ótima semana!

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  6. Sarmento, o que vou te contar agora, parece estranho para alguns, mas quando perdi minha avó, que eu muito amava, eu estava viajando e não compareci ao velório e te confesso que curti minha dor e meu luto distante dela mas preservando sua última imagem viva, o que me fez bem. Quanto a minha mãe, ja residia em Miami, mamãe se foi as 9 da noite e seu enterro foi as 14hs do dia seguinte o que não me permitia nenhuma conexão para despedir-me pessoalmente. O estranho é que no fundo, sempre gostei de ficar com as ultimas imagens vivas delas… Bom domingo, fiquem com Deus.

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    1. Amigo Luigi,
      Não acho estranho. Sua forma de encarar as circunstâncias do luto de sua avó e de sua mãe, guardando delas a imagem viva, é admirável. Acho que eu não teria esta força.
      Obrigado por comentar, meu caro.
      Desejo uma maravilhosa semana à você e sua família!

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  7. Meu amigo, sei bem o que é esse sentimento de perda , mesmo aos 73 anos parece insuportável. No entanto o conforto dado pelos amigos que nos acolhe parece minorar essa dor. É como se cada abraço, cada palavra amiga nos ajudasse a carregar um pedacinho dela, tornando-a mais leve. Grande abraço e que Deus abençoe todos nós.

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    1. Amiga Lucia,
      Nem sei o que dizer, pois você perdeu sua mãe tão recentemente…
      Ainda bem que teve com ela uma convivência muito intensa, próxima e harmoniosa. Infelizmente não pude dar pessoalmente este abraço tão importante.
      Agora estou devendo este abraço e a caixa de bombons…
      Beijos minha amiga e uma excelente semana!

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  8. Querido Cau,
    Sua crônica veio de encontro ao turbilhões de sentimentos que me afloraram nesta semana que completam 4 anos da despedida de nossa Mãe. Quantas saudades e doces lembranças da nossa doce Glorinha, mãe-amiga, presente, carinhosa, amorosa , generosa….

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  9. Querido amigo,
    Crônica emocionante!
    Mãe é mãe!
    Amanhã completa 16 anos que a minha mãe se despediu. Muita saudade!!!!
    Tenho poucos mas valiosos amigos. Um dos melhores amigos nas horas alegres e não tão alegres se despediu há 2 anos. Muita saudade e me faz muita falta.
    Abraços e boa semana!

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  10. Caro primo, bom dia.
    Este momento com certeza lhe trouxe momentos muito caros e de lúcidez pois me confortou com palavras de muito valor após o falecimento do meu muito amado pai. Sábias e com o tato de pessoas cuja alma transcendendem o lugar comum.
    Soube o momento e a fragilidade de quem tenta para me confortar e que até hoje, marcadas na memória.
    Obrigado e que Deus nos guie pela eternidade.
    Aproveite a vida pois tem a sensibilidade dos que vão além!

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    1. Caro primo Rômulo,
      Que bom seu comentário. Fico realmente feliz de saber que levei algum conforto à você naquela ocasião.
      Seu pai era uma pessoa maravilhosa e teve uma presença marcante e inesquecível na nossa vida: imagino na de seus próprios filhos!
      Agradeço muito suas gentis palavras e fico contente que as crônicas nos propiciem estar sempre em contato.
      Grande e afetuoso abraço!

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  11. Querido primo,
    Logo que li seu texto, pude relembrar emoções recentes que endossam essa homenagem aos amigos.
    Com a licença de Cora Coralina, em nossas dores e lutas, onde encontramos a palavra que conforta, o colo que acolhe, a alegria que contagia? Nos amigos que, com carinho, facilitam nossa caminhada.
    Muito oportuna essa crônica: abraçou o dia do amigo e a data da despedida da inesquecível tia Glorinha.
    Gratidão a Deus por todos eles.
    Sejam abençoados os amigos.
    Seja sempre lembrada a mãe querida que, “na sua graça, é eternidade”.
    Beijos

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