ATENDIMENTO

Sempre que lhe perguntarem se você sabe fazer um trabalho, diga que sim e apresse-se em descobrir como executá-lo. Foi com esta frase de Theodore Roosevelt em mente que, sem nenhuma experiência, aceitei trabalhar numa festa de igreja. Era no estilo festa junina, com barraquinhas de guloseimas, quadrilhas dançando e até um show de música ao vivo.

Aceitei querendo ser útil, fazer um trabalho voluntário sem nenhum outro interesse e, portanto, não teria sentido escolher funções. Assim, fui escalado e topei ficar no caixa da barraca de cachorro-quente, canjica e caldo verde. Mal sabia o que me esperava…

Segui o conselho do presidente americano e logo procurei entender como executar a tarefa. Os organizadores me informaram que seria tudo muito simples: o caixa ficava numa lateral da barraca, tendo acima uma tabuleta com os produtos e preços em letras garrafais. Assim, o público teria muita facilidade para escolher o que desejasse e então era só fazer a venda e entregar ao cliente uma pequena ficha de papel na qual estava impresso o nome de cada produto. Dali o cliente ia para o balcão frontal e retirava seu saboroso pedido.

Animado para a minha primeira experiência de atendimento direto ao público, assumi o posto em torno das cinco horas da tarde, com um largo sorriso no rosto e uma enorme vontade de ser gentil e conquistar os clientes. A festa era da igreja e o espírito de fraternidade me dominava!

As lições de marketing da época da universidade vinham à memória: não é vender para a pessoa e sim ajudar a comprar!

Os primeiros momentos foram tranquilos e até agradáveis. A equipe dentro da barraca era só alegria. Uns mexiam panelas, de onde exalavam aromas apetitosos, enquanto outros finalizavam detalhes dos preparativos. A festa ainda estava vazia e assim as poucas vendas transcorreram em calma, recheadas de sorrisos e cortesias.

— Um cachorro-quente e um refrigerante, por favor.

O agradecimento, o troco e duas fichas de papel. Pronto, lá ia a pessoa tranquila para receber seu lanche. Saía agradecendo e elogiando.

Lembrei então: atender com amor é a melhor receita!

O tempo foi passando e o movimento continuava baixo, o que começou a me preocupar. Perguntei ao pessoal se era assim mesmo, pois me parecia que o caixa estava muito vazio e as panelas muito cheias. Um voluntário, já experiente, esclareceu:

— Espera acabar a missa, ali pelas 7 da noite. Aí é que começa a festa.

Perfeito. Isso mesmo. Me fez lembrar: entender para atender!

Até que a hora chegou.

Acabou a missa e veio o estouro da boiada. A escadaria da igreja despejou uma interminável cachoeira de gente sobre a nossa barraca. Fiquei achando que o padre havia chamado para aquela missa apenas pessoas católicas com forte preferência por cachorro-quente, caldo verde e canjica.

Numa fração de segundo vi uma fila infinita formar-se diante do meu caixa. Até aquele dia eu não sabia que missa dava tanta fome:

— São dois cachorros-quentes, um caldo verde e três refrigerantes!

— Quatro canjicas e três caldos verdes!

— Três caldos verdes e quatro canjicas!

Era um tiroteio. Na fila uma bateria de metralhadoras de alta repetição e no caixa uma pequena pistola calibre 22…

Enquanto foi assim ainda estava bem. Procurei manter a calma para não errar no troco, separar as fichas de papel certas e ir guardando o dinheiro de um modo minimamente organizado. Mas aquela enorme fila fazia uma pressão gigantesca sobre mim e não posso negar que, aos poucos, foi alterando a minha disposição inicial para a caridade e fraternidade.

Olhei em direção ao balcão frontal e tudo corria bem, pois ali havia muita gente para receber as fichas e entregar os produtos. Eu era o gargalo!

Foi quando começou o teste de nervos. Chega uma senhora:

— Moço, tem misto quente?

— O que tem está aí na tabela, minha senhora — disse eu pacientemente, apontando para cima e oferecendo-lhe um sorriso amarelo.

— Ah, eu não tinha visto…

Pensei: a senhora é cega ou débil mental? Mas não falei, pois até ali as lembranças da teoria de marketing continuavam chegando: ter os interesses do cliente acima dos seus!

— A senhora quer um cachorro-quente?

— É de salsicha ou de linguiça?

Ai meu Deus…

— De salsicha, minha senhora.

— Tem molho?

— Tem. Se a senhora quiser com molho é só pedir.

— Eu não gosto de molho.

Procurei encarar como um teste de paciência.

— Então a senhora pede sem molho, ok?

— Não. Me dá um caldo verde.

Preferi calar. Dei o troco, entreguei a ficha e estiquei o olhar ansioso para o próximo da fila. Ela deu dois passos e voltou:

— Moço, esqueci. Quero um refrigerante também.

Olhei em volta em busca do padre para pedir perdão, pois sei que podemos pecar por pensamentos…

Seguiram-se uns três ou quatro atendimentos normais, ou seja, tensos e apressados. Foi quando ele chegou. Começou vacilante:

— É…

Já não gostei. Ele então soletrou:

— Um c-a-c-h-o-r-r-o-q-u-e-n-t-e e dois refrigerantes.

— Ok.

— Não, um não. É… Dois cachorros-quentes. Ah, tem caldo verde? Hum…

— Muito bem, qual o seu pedido, senhor?

— Calma, moço. Estou escolhendo ainda…

O lugar para onde desejei que ele fosse é inconfessável.

— Eu estou calmo, senhor. Mas veja o tamanho da fila. O que o senhor vai querer?

— Já falei: um cachorro-quente e dois refrigerantes. E um caldo verde. Quanto é a canjica?

— Está aí na tabela, senhor.

— Poxa, o senhor não ajuda…

Naquele momento desisti de ser aprovado no teste de paciência. Comecei a contrariar toda a teoria de marketing e minhas intenções iniciais:

— Estou aqui para vender e não para ajudar, meu amigo.

— Tá. Esquece a canjica.

Esqueci na hora.

Mais alguns atendimentos e chega um jovem de óculos:

— Aceita cartão de crédito?

— Só dinheiro.

— Cartão de débito?

Respirei fundo. Cadê o padre?

— Não. Só dinheiro.

— Que absurdo. Tinham que aceitar cartão.

Desisti definitivamente dos meus bons propósitos. Atender com amor é uma utopia. Melhor a agilidade que a fraternidade. Ignorei o sujeito:

— Próximo, por favor.

Era um casal. Ele com uns 40 anos, moreno e muito sério. Esticou uma nota de 100 reais:

— Um refrigerante, por favor.

Haja paciência. Primeiro meus interesses, depois os do cliente.

— O troco tá difícil. O senhor tem uma nota menor?

— Não — disse ele, com olhar desafiador.

Tive o ímpeto de dizer-lhe que não tinha troco, o que não era verdade. Resolvi ceder. Muito a contragosto, recebi a nota, entreguei-lhe o troco e a ficha do refrigerante sem dizer uma palavra e continuei atendendo.

Passados alguns minutos o sujeito voltou, interrompeu o atendimento que eu fazia e em alto tom de voz, exigiu:

— Você me passou uma nota falsa de 50 reais. Eu quero outra!

Foi a gota d’água. Eu agora só estava interessado em vender e não em atender, com amor nem pensar, entender ninguém nem coisa nenhuma e primeiro os meus interesses. Ao inferno com o marketing! Respondi no mesmo tom:

— Não vou trocar! Não sei se esta nota é falsa e muito menos se fui eu quem lhe passou.

O sujeito transfigurou-se:

— O quê? Você está duvidando de mim?

— E você está me acusando de falsário?

Ele meteu a mão no bolso e sacou uma carteira com um brasão da república:

— Eu sou policial. Você troca esta nota ou vamos para a delegacia.

Nem pestanejei. Era caso de vida ou morte:

— Vamos para a delegacia!

Felizmente um amigo que estava atendendo na barraca viu o “barraco” e aproximou-se. Com diplomacia me tirou da função e passou a atender o policial, talvez mais falso que a tal nota.

Deixei o local ainda transtornado, sentindo na pele como é difícil atender o público. Entrei na igreja para pedir perdão à Deus e também aos autores dos grandes livros de marketing. Resolvi também rezar pelos que exercem esta função.

Roosevelt estava errado, pelo menos no meu caso: se perguntado se sei fazer o trabalho de atendimento ao público deveria responder que não e ponto final. Melhor reconhecer a incompetência que passar por um vexame.

Como são diferentes as coisas quando olhadas pelo outro lado do balcão.

 

Antonio Carlos Sarmento 

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37 comentários em “ATENDIMENTO”

  1. Muito bom !
    Eu acho que conheço essa barraca rsrsrs, a única coisa que me ocorreu após ler e dar gargalhadas… “Vocês para me seguirem serão perseguidos também “… Roosevelt não entende nada de paróquia, mas nosso irmão Jesus Cristo previu tudo com muita assertividade… ficar nessa barraca é a prova final, é a divisão entre o céu e o inferno, atender no balcão é o céu, mas ficar no cx, hummm!…Sei não! Kkkkkkkkk
    Meu irmão Cacau, sua crítica veio na hora certa, essa noite foi braba… dormi menos do pouco que normalmente durmo.
    Bjs

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    1. Querido amigo.
      Lembro bem desses momentos…
      Não era fácil exercer a função de caixa nas festas da nossa Paróquia…. Mas você venceu todas as dificuldades e foi o caixa por vários anos…. Foi e será sempre o nosso caixa preferido…
      Precisa ter as suas qualidades para essa espinhosa missão…
      E você não era caixa apenas nos eventos da festa do Padroeiro….
      E o Queijos e Vinhos… Era na entrega dos mesmos….
      Quanta saudade… Que tempos maravilhosos… Abrs .

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      1. Amigo Nei,
        Nem esperava seu comentário devido à viagem à Brasília. Obrigado!
        Fico contente por ter despertado boas lembranças de nossos eventos em comunidade.
        Realmente “tempos maravilhosos”!
        Grande abraço, felicidades à Tatiana e beijos na Jaciara.

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  2. Prezado Antonio Carlos:
    Você, indiscutivelmente, não se dá bem com o oficio de vendedor de cachorros quentes. É melhor e mais saudável continuar como excelente engenheiro e escritor.
    Sds. do seu leitor,
    Carlos Vieira Reis

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    1. Amigo Carlos,
      Seu conselho quanto ao ofício de vendedor já estou seguindo, ok? hahahaha
      Quanto a engenheiro e escritor continuo insistindo e agradeço a bondade do amigo ao incluir a palavra “excelente”. Muita bondade mesmo…
      Grande abraço meu amigo, leitor fiel e excelente advogado.
      Desejo uma ótima semana!

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  3. Muito bom! Me deu um domingo de boas lembranças. Trabalhei na FEIRA DA PROVIDÊNCIA quando era na lagoa Rodrigo de Freitas. Um dia te conto… kkkkk

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    1. Amigo Luigi,
      Fico feliz da crônica ter trazido lembranças doces. Quanto à sua história na Feira da Providência, pode crer que estou sempre muito interessado em ouvir os casos dos amigos, fonte de inspiração para outras crônicas.
      Obrigado por comentar e tenham uma ótima por aí!
      Abraços

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  4. Caro amigo, me trouxe tantas lembranças das inúmeras vezes que Frank e eu fomos caixa na Imaculdada… muitos casos hehehehe. Me deu um ar saudosista desses tempos!

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    1. Sandra,
      Muito bom lembrar estas ocasiões de eventos em comunidade. Você devem ter passado por muitas experiências. Na hora não é agradável, mas depois acaba sendo motivo de risos…
      Muito obrigado por comentar e um grande abraço à você e Frank. Uma ótima semana para toda a família!

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  5. Meu Caro Irmão!!!
    A qualidade de um texto se mede principalme quando, ao ler, somos transportados para a cena descrita. Mais uma vez assim me senti. Tive que interromper a leitura várias vezes porque vivenciando as cenas chorei de tanto rir. Até a nossa cadelinha TUTTY se espantou porque ainda não havia presenciado tamanhas e incontroláveis gargalhadas com lágrimas. Pulou no meu colo querendo entender e socorrer-me se necessário. Muito bom. MARAVILHA.
    Recuperado de tanto rir, comentei com a Anna que esta cronica além de divertida, contem elementos para uma e excelente e profunda reflexão sobre os acontecimentos da vida humana em que frequentemente temos que exercer A ARTE DO ATENDIMENTO.. Obrigado e Parabéns mais uma vêz, meu irmão.

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    1. Meu querido irmão,
      Se eu tivesse escrito esta crônica apenas para você, já teria valido muito a pena. Só de saber que você chorou de rir já me sinto gratificado.
      Só lamento pela Tutty: talvez esta crônica não seja boa para cachorro… hahaha
      Fico muito feliz com seu comentário e também por saber que vocês por aí acompanham assiduamente as publicações.
      Muitíssimo obrigado por partilhar suas impressões.
      Beijos em todos e que tenham uma maravilhosa semana.
      PS: Nós estamos retornando ao Brasil na segunda feira que vem.

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  6. Querido Antônio, retratou meus últimos 15 anos de vida com uma precisão como se fosse do ramo. Ri demais. Excelente texto, excelente blog e parabéns pelo seu dom.
    Grande Abraço.

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    1. Caro Brenno,
      Muito contente em vê-lo por aqui.
      E parece que foi com a crônica certa, né? hahaha
      Fico contente que tenha se divertido e gostado do blog. Agradeço suas palavras e também parabenizo pelo seu trabalho de atendimento, que tanto reconhecimento tem alcançado. Desejo muito sucesso, pois sei que o talento você já tem!
      Um grande abraço e uma ótima semana para toda a família!

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    1. Meu querido amigo Fabrício,
      Saudades mesmo… Quanto tempo não nos encontramos. Espero que esteja tudo bem por aí.
      Estamos em Portugal visitando a Tati e retornaremos semana que vem. Numa destas vindas, passada a pandemia, vamos combinar de ir até aí para matar as saudades.
      Grande abraço e fico contente que tenha se divertido!

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  7. Prezado Amigo, Muito boa noite, Divertidíssima, com sempre, essa crônica . . . Após exercitar a colaboração em diversas ocasiões, posso lhe afiançar: na colaboração, quem mais se beneficia é colaborador e, a prova disto são as manifestações de diversos de seus contemporâneos, sobre as suas colaborações ao longo da vida . . . Parabéns! Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Jean, ao Gui e demais familiares.
    Livre de vírus. http://www.avast.com .

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    1. Grande amigo JH,
      Que bom ter se divertido!
      Você tem razão: o trabalho voluntário é sempre muito recompensador.
      Obrigado por comentar, meu caro amigo.
      Um beijo em toda a família e um especial na Catarina!
      Excelente semana!

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  8. Hahahaha….. muito boa!!
    Mais uma descrição perfeita onde foi possível vivenciar cada detalhe!!!
    Quase senti o cheirinho do cachorro quente e vi suas feições se transformando, digo:transtornando!!
    Além de divertida a crônica de hoje traz a reflexão do quanto precisamos valorizar aqueles que nos servem…
    Parabéns Cacau,arrasou!!!

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    1. Minha querida irmã,
      Acho ótimo quando alguém diz que vivenciou a situação pelo texto.
      Assim como você, certa vez uma leitora comentou que conseguiu “ouvir e ver o texto”. Isso é maravilhoso!
      Que bom ter se divertido, minha irmã. E realmente atender diretamente ao público não é fácil…
      Beijos e uma maravilhosa semana.
      PS: O Tom vem aí!!!!!!!!!!

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  9. Querido Irmão,
    Ri muito da sua experiência e exercício de paciência.
    Atendimento ao público mesmo com sua descontração, simpatia, cordialidade e cortesia , tem limite…….
    Beijo grande. Saudades!!!

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  10. Ei Cacau!
    Sua crônica me faz lembrar o adágio que diz que , para ser vendedor, é preciso ser corajoso ou criativo.
    Os desprevenidos acabam estressados.
    Mas, com certeza, o personagem dessa história se chamava Joaquim ,
    Benedito ou qualquer outro nome- nunca Antonio Carlos porque esse é paciente, tranquilo, cheio de empatia e de simpatia para oferecer.
    Bem-vindo de volta! Aqui também há uma fila que espera seu retorno , com prazer.
    Beijos nos queridos na santa terrinha.

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  11. Para desempenhar funções de atendimento é necessário ter vocação e muito treinamento. Ter o dom para o atendimento ao público é ter empatia, esforço para “sentir” o que o próximo quer dizer, mas que pode ter dificuldade em expressar, precisando de nossa ajuda. Não é fácil atuar nessa atividade, como também conseguir narrar episódios como este vivido. Tanto atuando em atendimento quanto narrando com sentimento, somente quando é feito com o coração.

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    1. Amigo Rodolpho,
      Sei que tem experiência e conhecimentos sobre o tema e portanto sua opinião é fundamentada.
      Diferente de mim, que apenas tive esta experiência, não muito bem sucedida… hahahaha
      Mas posso te garantir que escrevi com o coração!!!
      Grande abraço meu amigo!

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