MEDO

Tenho percebido que muita gente gosta de história real ou baseada em fatos reais, seja em livros ou filmes. Eu me incluo entre estes. Simpatizo com a ideia de que a arte imita a vida, de que a ficção é também imitação, mas saber que os acontecimentos são reais leva ao leitor ou expectador uma sensação mais profunda, trazida pela autenticidade da história.

Então vamos lá a mais uma história real — não de realeza, mas de realidade.

Meu amigo Marcelo, morador de Petrópolis, voltava para casa em seu carro numa sexta-feira, ali pelas 5 da tarde. O dia ainda estava claro e a bela tarde na serra transmitia calma e paz. Ao ingressar numa rua próxima ao seu condomínio, local de pouco movimento, observou dois jovens correndo na calçada esquerda, no mesmo sentido dele. Parecia uma perseguição e o garoto da frente aparentava certo desespero, acelerando no limite de suas forças.

Subitamente, desnorteado, o garoto da frente sem reduzir a disparada, desceu a calçada e lançou-se numa travessia em diagonal pela rua sem sequer olhar para trás, iniciando uma trajetória em direção ao carro de Marcelo. Este imediatamente cravou a mão na buzina e o pé no freio.

Porém, o garoto não percebeu a gravidade da situação e seguiu no mesmo passo acelerado, em rota de colisão com o automóvel. Marcelo ainda jogou o carro ao máximo para a direita, quase raspando num barranco, procurando evitar o choque, mas o rapaz acabou por colidir com a lateral do automóvel, na altura do paralama dianteiro.

O toque no carro desequilibrou-o e ele rolou, ainda de pé, ao longo da lateral do carro, até ser colhido pelo espelho retrovisor do motorista. Caiu então no meio da pista, enquanto o carro de Marcelo ainda cantava os pneus na fase final da freada.

O outro rapaz, vendo o resultado da perseguição, desviou a corrida, enveredou por uma viela próxima e desapareceu.

Sobressaltado com o acidente, Marcelo abriu a porta para saltar e ver como estava a vítima. Sua primeira impressão foi de que o menino estava bem e já se mexia tentando levantar, assustado, ainda sem compreender o que havia ocorrido.

Foi quando Marcelo ouviu uns gritos vindos de um bar próximo, local que os moradores da região conheciam e sabiam da má fama. A buzina e o assovio dos pneus despertaram a atenção e a reação de um grupo de umas 30 pessoas, que deixaram o botequim e agora corriam em direção ao acidente. Mesmo ainda um pouco distante daquela horda, Marcelo pôde discernir algumas palavras:

— Olha lá!

— Atropelou o menino!

— Pega! Pega!

— Segura. Não deixa ir embora.

Precisou tomar uma decisão imediata, sem tempo para pensar.

Voltou rápido para o carro, engatou uma marcha a ré e acelerou olhando só para trás, até a primeira transversal que, sabia muito bem, estava próxima. Recuou o quanto foi preciso, engatou a primeira marcha, ingressou na rua transversal e acelerou para distanciar-se ao máximo do que poderia ser o palco do seu linchamento.

Marcelo sentiu que seria impossível conter aquele grupo numeroso, alcoolizado e revoltado. Ele poderia ser condenado sem julgamento e a pena imediatamente aplicada. Há coisas que não adianta tentar explicar. Imagine argumentar com aquele júri popular, alegando que foi o garoto quem o atropelou e que felizmente estava à baixa velocidade e pôde evitar uma tragédia. Nenhuma explicação sequer seria ouvida. A multidão algumas vezes procede como um monstro sem cabeça! Ainda mais sob efeito de álcool.

Marcelo parou o carro numa rua bem distante do acontecimento para se acalmar. Seu pensamento não saía do garoto e seus olhos não saíam do retrovisor. Gostaria de ter a certeza de que o menino estava bem e também de que não teria sido seguido até ali. Resolveu afastar-se ainda mais e quase saiu dos limites da cidade. Rodou a esmo por umas duas horas.

Enfim, mais calmo embora ainda muito apreensivo, resolveu retomar o caminho de casa, pois nada mais havia a ser feito e já aguardara o suficiente para esfriar a situação.

Passou pelo local com o coração aos saltos.

Nenhum sinal do acontecido. No bar os homens bebiam como sempre, inebriados e indiferentes ao mundo externo. Chegou bem em casa.

Marcelo passou a noite em claro, dominado pelas cenas do acidente, pela imagem do menino e, talvez o maior dos tormentos, refletindo se havia tomado a melhor decisão ao retirar-se do local daquela forma.

Três dias depois contou-me o episódio, já mais tranquilo.  O porteiro de seu prédio era assíduo frequentador do tal bar e Marcelo, numa conversa com ele, mantendo-se incógnito e aparentando desinteresse, ficou sabendo do caso na versão alcoólica: o motorista fugiu e o garoto sofreu apenas leves escoriações. Um alívio!

Porém, ainda o incomodava a sensação do medo, de talvez ter sido covarde fugindo do local daquela forma.

Na hora lhe disse apenas uma coisa: em seu lugar eu faria exatamente o mesmo!

Eu precisava de tempo para refletir um pouco mais sobre o caso, que permaneceu em minha mente. Penso melhor escrevendo que falando.

Acabei achando que não houve fuga e sim uma retirada, coisas bem diferentes. Lembrei da famosa Retirada da Laguna, episódio histórico da Guerra do Paraguai que salvou a vida de pelo menos 700 homens. A fuga pode ser vergonhosa se motivada pela covardia, enquanto a retirada pode ser heroica se visar a prudência e a autopreservação. Uma é o abandono da luta, a outra é um recuo inteligente. Em ambas, o medo está presente, mas existe o medo em prol da sobrevivência e o medo por covardia.

Parece haver uma certa confusão quando pensamos que medo e covardia são sinônimos. Medo é sentimento, covardia é comportamento.

O medo é inevitável, faz parte da natureza humana e está presente mesmo nos atos de coragem. Não há mal em sentir medo: tudo depende da ação que dele decorre. Desistir, renunciar ou retirar-se em algumas circunstâncias graves, desfavoráveis ou insolúveis pode ser um ato de coragem e inteligência.

O problema não está no medo, mas na covardia. O medo é útil, a covardia é fútil!

Escrevi esta crônica para enviar ao Marcelo.

Antonio Carlos Sarmento

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18 comentários em “MEDO”

  1. Prezado Antonio Carlos:
    Dê os parabéns ao Marcelo. Acho que ele agiu com extrema sensatez e equilíbrio, diante das circunstância que lhe eram desfavoráveis.
    Sds. e, mais uma vez, parabéns pelo excelente artigo.
    Carlos Vieira Reis

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  2. Oi amigo. Bom dia.
    Que tema complexo você arrumou nesta semana.
    Que difícil é rápida decisão a do Marcelo… Não sei se faria o mesmo. Escolher num momento desse o acolhimento do medo ou a solidariedade é muito difícil.
    Você deve mesmo enviar pro Marcelo…. Será que passados tantos anos ele teria a mesma decisão ?
    De qualquer forma o tema é muito interessante e discutível…
    Parabéns mais uma vez. Grande abraço.

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    1. Caro amigo Nei,
      De fato o tema é polêmico, mas mesmo com certo risco, não resisti a contar a história que é verdadeira mesmo.
      Como você achou interessante já fico satisfeito.
      Grande abraço e manda um beijo pra Jaciara. Uma ótima semana para vocês.
      PS: Estamos voltando hoje de Portugal.

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  3. Um texto bem atual e que coloca o leitor em saia justa, considerando o momento político do país.
    Prefiro ficar com as lições antigas onde o adágio popular “macaco velho não põe a mão em cumbuca” tinha e tem muita aceitação.
    Fico com os antigos, rs.
    Abraços

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    1. Querido primo Rômulo,
      Esta semana retornei de Portugal e, na confusão da viagem, acabei não respondendo seu comentário, pelo que peço perdão.
      Respeito você não colocar a mão nesta cumbuca, na qual me arrisquei… hahahaha
      Você optou pela prudência, assim como o Marcelo na crônica.
      Um afetuoso abraço, meu primo!

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  4. Querido Cacau, eu sempre escolho filmes baseados em fatos reais, onde o que achamos impossível aconteceu, não foi simplesmente produzido…
    No caso do seu amigo, Marcelo, ele sentiu o medo que qualquer um de nós sentiria nessa situação e tomou a decisão melhor possível naquele momento.
    O medo ao contrário do que possa parecer nos salva em diversas situações.
    Vi um vídeo, que dizia o seguinte: ” Quando aparece um urso em sua frente, ou criado pela sua imaginação a reação imediata é fugir, correr e está certo, porém, não se pode é criar todos os dias essa cena, aí vira doença.” Ou seja, o medo em excesso é o grande problema e leva para as doenças…
    Fica aqui, meu abraço ao Marcelo…” Pernas para que te quero!”
    Faria também o mesmo.
    Valeu Cacau!
    Mais uma ótima crônica.
    Bjs

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  5. Meu prezado Amigo Antônio Carlos.
    Na redação de sua crônica (MEDO),chamou atenção um comentário que o qualifico como de excelente observação humana:
    “O problema não está no medo, mas na covardia. O medo é útil, a covardia é fútil!”.
    Parabéns e obrigado pelo texto.
    Um fraterno abraço em sua família.
    Oslúzio

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    1. Meu querido amigo e irmão Oslúzio,
      Fico muito feliz de receber seu comentário. E mais ainda de saber que apreciou o texto.
      Muitas saudades de vocês, família maravilhosa!
      Um grande e afetuoso abraço, meu amigo!

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  6. Meu primo,
    Ótima idéia enviar a crônica para Marcelo. E também os comentários. Acredito que se sentirá mais confortável ao perceber que todos somos frágeis e vulneráveis diante do temor.
    Mesmo os corajosos.
    Penso até que o medo é proveitoso, no sentido de que nos leva a buscar a Deus, o verdadeiro socorro, a correta direção. Davi já nos legou essa certeza, ao afirmar no Salmos 56:
    ” Em me vindo o temor, hei de confiar em Ti”.
    Diante dos desafios, essa segurança.
    Abraço carinhoso

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