O RETRATO

Muitas vezes termino a crônica com uma citação de que gosto. Mas nesta resolvi citar Carlos Drummond de Andrade logo de início:

Ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade.

Que maravilha, ser feliz sem motivo. Viver feliz.

Esta frase do poeta me faz pensar que a felicidade não é um fim, um objetivo a ser alcançado, mas um modo de viver. Não pretendo me alongar neste tema tão filosófico, mas noto que é muito comum entre nós projetar a felicidade para um evento futuro: quando eu crescer, quando fizer 18 anos, quando me formar, quando casar, quando tiver filhos, quando tiver dinheiro, quando me aposentar…

E assim vamos adiando o momento de sermos verdadeiramente felizes, que acaba por nunca chegar. A gente fica esperando por tantas coisas que nossa vida se torna um conjunto de expectativas. Terminamos por colocar o foco nas lacunas, condicionando a elas a nossa felicidade. E a armadilha é de tal forma que, mal uma lacuna é preenchida, já a substituímos por outra. Ou outras. E vamos assim pela vida afora.

Estas conjecturas me ocorreram por causa de uma pequena fotografia que vi há poucos dias. Era o retrato de um amigo que perdi há alguns anos — esclareço ao leitor que o que perdi foi o amigo e não o retrato…

Era uma foto pequena, daquelas usadas em documentos, mas me trouxe belas recordações de momentos de uma amizade harmoniosa e fraterna. Ele era muito sociável e várias vezes estivemos reunidos em alegres confraternizações. Gostava de vinhos e mesa farta, com muita gente em volta, conversas, risadas e casos interessantes.

Certa feita, em sua casa, mostrou-me uma garrafa de um valioso whisky que havia ganhado de presente já há alguns anos e que guardava para degustar em uma ocasião especial. Era um puro malte, com um lindo rótulo e a tradicional tampa de cortiça. A partir daí, em outras ocasiões, meu amigo me lembrava a existência daquela preciosidade e afirmava que ainda teríamos o prazer de degustá-la juntos.

Decorridos alguns anos ele adoeceu subitamente. Havia sido fumante e os pulmões agora cobravam seu tributo. Fui visitá-lo muitas vezes no hospital, onde foi obrigado a ficar entubado algumas vezes, causando muito sofrimento e desânimo. Na última vez que o visitei me disse que não sairia dali com vida, o que de fato ocorreu três dias depois.

Passados uns dois meses, sua mulher me telefonou pedindo para ir buscar alguns papéis relativos a um trabalho que fazíamos juntos. Aceitei o encargo de guardar o acervo, pois nada poderia negar à viúva de um amigo tão querido.

No dia seguinte estive em sua casa e ela entregou-me a papelada. Já ia embora quando me pediu que aguardasse um pouco. Voltou com a garrafa daquele whisky e sem dizer uma palavra estendeu em minha direção. Constrangido, pensei em recusar, mas seu olhar silencioso me fez compreender que ela achava estar fazendo a vontade do marido.

Fui para casa carregando o peso daquela garrafa, pensativo e com certa tristeza.

Parece que temos uma tendência a esperar por acontecimentos maravilhosos e esquecemos de reconhecer as coisas boas que já estão acontecendo. E por não reconhecer, não agradecemos nem comemoramos. Pelo contrário, às vezes ainda reclamamos. Foi isso que fez sobrar a garrafa, foi isso que nos privou de um momento especial de confraternização.

Aguardei a sexta-feira à noite, ocasião que normalmente reservo para apreciar uma ou duas doses de whisky. Com certa emoção, coloquei um blues para tocar, reduzi a iluminação da sala, separei o melhor copo junto à minha poltrona preferida e peguei a garrafa para finalmente abrir.

Pensei: meu amigo morreu e não tomamos uma dose juntos.

Retirei o lacre com cuidado e girei a tampa. A parte de cima saiu na minha mão, deixando a rolha de cortiça presa no gargalo, como se fosse uma garrafa de vinho. Imaginei o que faria se meu amigo estivesse ali, aguardando a tão esperada dose. Não havia alternativa, senão usar um saca-rolhas.

Lancei mão do utensílio, mas ao apoiar sua ponta, a rolha desceu e esfarelou-se. Quando consegui destampar, a bebida estava cheia de fragmentos de cortiça. Sem querer desistir, usei um coador e finalmente extraí uma dose.

Sentei com o copo na mão e tomei um gole solene. Que surpresa: a bebida apresentava um gosto intragável, fruto do tempo excessivo ou de armazenamento inadequado ou de ambos. Só me restou descartar o líquido pela pia, vendo por ali escoar os longos anos de espera do meu querido amigo.

Pensei: meu amigo morreu e não tomamos uma dose juntos.

Nem separados.

Quantas vezes a gente perde as pequenas alegrias aguardando por uma grande felicidade que pode não chegar.

 

Antonio Carlos Sarmento

36 comentários em “O RETRATO”

  1. Caro Amigo, Muito bom dia, Mais uma bela crônica . . . De fato, o destino não é o importante, o que consta é o trajeto . . . Com a Logosofia, aprendi que a felicidade que não se compartilha, se perde . . . Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Gui, ao Jean e demais familiares.

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  2. Bela crônica. Sarmento tenho uma prima que sempre dizia: qdo ganhar ma loteria farei isso, ou aquilo. Hoje infelizmente ela não pode mais jogar e se ganhasse não teria como realizar mais nada.
    Mamãe tinha na casa dela, utensilios, nunca usados, que ganhou no seu casamento. Morreu e meu irmão doou tudo imediatamente.
    A vida é hoje, agora e o amanhã, a Deus pertence.
    Bom domingo, boa semana e que Deus o abençoe e a sua familia.

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    1. Caro Luigi,
      Acho que muitos de nós tem exemplos como os que você citou. É tristemente comum…
      A vida é hoje mesmo e vamos desfrutá-la em tudo que ela pode nos oferecer.
      Desejo uma ótima semana a você e toda a sua família. Muito obrigado por comentar!

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  3. Verdade meu amigo, essa pandemia me fez repensar. Estou tomando meus melhores vinhos, usando a louça e os talheres “das visitas “, usufruindo todos os momentos com a família, não postergando as coisas boas para um dia especial. O dia especial é hoje em que temos saúde e amigos queridos como vc. Beijão

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    1. Amiga Lucia,
      Perfeito!
      Apenas peço que deixe uma única garrafa de seus melhores vinhos para o dia em que iremos estar juntos e comemorarmos por termos sobrevivido à pandemia… hahahaha
      Beijão minha querida e saudosa amiga!

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  4. Querido Antonio Carlos:
    Recentemente, passei por situação semelhante. Meu grande amigo, Leandro Franco, português de 83 anos, e colecionador carros antigos, invejável pelo seu bom gosto e conhecimento técnico, veio a falecer, deixando uma lacuna enorme na minha vida, já que éramos como irmãos. Meu companheiro de viagens, passeios, encontros, presente em todos os eventos automobilísticos, com alguns enguiços e satisfações. Um verdadeiro antigomobilista !!!
    Lamento profundamente a sua partida, que me deixou amargurado e bastante desestimulado para continuar como colecionador. A partir de então, comecei a vender os meus carros, sem me privar de, apenas, um Mercedes, a diesel, ano 1975 e de um Morris Oxford, 1951, que ele me pediu que jamais fizesse a sua venda, já que era o seu carro preferido e que jamais iria encontrar outro igual, devido a sua originalidade e estado de conservação.
    Assim, pretendo homenagear a memória do meu grande amigo, olhando todos os dias para esse carro, que ele tinha muito amor. Era o seu verdadeiro xodó, apesar de ter na sua coleção 112 motocicletas e outros 15 automóveis, predominantemente, da marca Citroen, cujos modelos variavam de 1951 até 1967.
    Mas, é a vida. Temos que pedir a Deus para nos dar forças para continuar lutando o sobrevivendo, com muita saúde e paz em nossos corações.
    Sds. do seu amigo e admirador,
    Carlos Vieira Reis

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    1. Amigo Carlos,
      Um amigo assim deixa mesmo muita saudade na nossa vida. Acho que o Leandro Franco, lá de cima, continua apreciando o Morris 1951 e sentindo-se feliz por você atender o seu pedido. Não poderia haver homenagem mais significativa!
      Como você disse, a vida segue e nos cabe aproveitá-la da melhor forma possível. No hoje, no agora!
      Grande abraço, meu caro amigo!

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  5. Querido amigo!
    Ótima crônica, como sempre!
    Vamos viver o presente, pois o futuro é agora.
    Já tive meus momentos de guardar as coisas para usar, beber, etc. em algum momento especial.
    Aprendi que não é por aí. O tempo passa rápido e não sabemos como será o amanhã.
    A pandemia também me ensinou muito e vamos continuar aprendendo.
    Abração.

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    1. Amigo Newton,
      Muito obrigado por comentar. Fico contente que a crônica tenha lhe proporcionado boas reflexões.
      De fato o tempo é veloz. Me lembro que meu pai em seu aniversário de 100 anos me disse: – não sei como cheguei a esta idade, a vida passa muito rápido!
      Grande abraço, meu caro amigo!

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  6. Excelente crônica e muito oportuna.
    Não podemos adiar momentos felizes, acredito ser um grande pecado, nascemos para a felicidade.
    Eu tenho o hábito de não adiar nada, desde um objeto de uso, uma roupa nova etc…aguardando uma ocasião para uso.
    Para ser feliz não tem hora!
    O “quando…”é muito duvidoso e imprevisível.
    Podemos montar uma imagem e um momento que talvez nunca aconteça. E aí…
    Uma ótima crônica, chamando-nos para uma reflexão profunda.
    E refletindo:
    Vamos almoçar amanhã?

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  7. Cada vez mais o” deixar para depois” não faz sentido.
    Porque o tempo passa rápido demais…porque o segundo seguinte é sempre uma incógnita… porque de repente já estamos nos sessenta e tal… e porque criar expectactiva normalmente dá asneira.
    Portanto, “brindemos e bebamos” a Vida na altura certa!
    Bela cronica, porque é uma boa lição.

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    1. Dulce,
      Há uma música famosa aqui no Brasil que diz:
      “Viver e não ter a vergonha de ser feliz
      Cantar a beleza de ser um eterno aprendiz
      Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será
      Mas isso não impede que eu insista
      É bonita, é bonita e é bonita”
      Fico contente de ter apreciado a crônica e agradecido por comentar.
      Uma ótima semana!

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  8. Vivemos uma situação parecida com o pai da minha nora. Um vinho guardado numa bela garrafa por trinta e poucos anos que ele havia recebido do pai. Reunidos, rimos muito, dizendo que ali havia um belo vinagre. Enfim o convencemos a abrir e para nossa grata surpresa era especialmente delicioso. Fomos pesquisar e descobrimos tratar-se de um vinho do Porto que só se consegue em leilão. O prazer e a alegria de nos sentirmos privilegiados foi imenso. Demos boas risadas e igualmente como você percebemos como é bom estarmos com amigos, desfrutando da alegria da vida. Que seja hoje, que seja agora! Abraços.

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    1. Sandra,
      Sua história é parecida mesmo, porém com um final feliz.
      Sei que tem vinho do Porto até com 50 anos: o envelhecimento agrega qualidade, mas nunca tive oportunidade de experimentar uma maravilha destas. Vocês são sortudos!!!
      Um grande abraço para você, Frank e toda a família!

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  9. Meu caro irmão!!!
    Até sábado nosso bar no Santuário Solar das Andorinhas, em Brasília, tinha uma garrafa de BALLANTINE’s, uma de HOUSE OF LORDS, HOUSE OF WELLINGTON, JONNIE WALKER BL, BUCHANAN’S, DIMPLE e SWING. Após a agradável leitura de mais uma de suas belíssimas crônicas, entendendo com profundidade a mensagem, eu e a Anna nos sentamos no ambiente do bar e ZERAMOS o estoque citado, surfando nas asas da GAIVOTA e tendo como companhia a felicidade.
    PARABÉNS mais uma vez.
    P.S. Só foi possível comentar hoje devido ao evento e assim mesmo tive que reescrever 3 vezes.

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    1. Meu querido irmão,
      Foi muito inteligente ter como argumento a crônica para beber “todas”!!! Assim a culpa fica menor… hahahaha
      Imagino a Anna tomado garrafas de whisky… Mais fácil eu voar como a gaivota!
      A ressaca foi lamentável, mas surfar nas asas da gaivota tendo como companhia a felicidade compensa qualquer sacrifício e permite, de forma genial, comentar duas crônicas com uma só frase.
      Beijos, meu irmão!

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  10. Maravilhosa crônica, tio! As vezes a vida real nos surpreende tanto ou mais do que a ficção….e quantos ensinamentos ela nos traz! Obrigada por partilhar os seus!

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    1. Bruna,
      Que bom ter você por aqui!
      Pois é, dizem que a arte imita a vida, mas às vezes a realidade supera a ficção e nos traz grandes aprendizados.
      só precisamos estar atentos e abertos a aprender sempre, não é?
      Beijos e muito obrigado por comentar.

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  11. Querido primo, dessa vez nem divaguei nas reflexões, pois aproveitar os momentos já é lei no meu coraçao e na minha vida.
    Só diria que isso se aplica, sobretudo, às pessoas : abrace hoje, beije agora, faça gestos de gentileza sempre, invente maneiras de surpreender e de agradar enquanto estão por perto. Não deixe o carinho ou a frase amorosa para mais tarde.
    Aproveito para dizer que gosto, cada vez mais, de suas crônicas e admiro, como sempre, esse seu coração sensivel .
    Grande abraço.

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  12. Linda crônica! Realmente temos que curtir sempre os bons momentos. Planejar, já dizem os técnicos, no curto, médio e logo prazo, viabiliza momentos felizes sempre. Nada de focar apenas o longo prazo, pois este depende sempre de Deus. Forte abraço amigo!

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  13. Meu jovem amigo e irmão em Cristo, Antônio Carlos.

    Você é um sábio, eu não tenho a menor dúvida dessa minha afirmativa.
    Como eu gostaria de poder conviver e desfrutar da sua preciosa sabedoria.
    Essa crônica faz eu lembrar de um grande amigo escritor como você, poeta, cantor, cheio de vida e alegria, ele desfrutava com a namorada e companheira há mais de 50 anos de bons momentos em viagem, etc.
    Em nosso último encontro presenteou a mim uma garrafa de vinho mas condicionei que beberíamos juntos em um almoço na minha casa.
    Uma semana depois recebi uma ligação de sua filha informando que o meu amigo estava no hospital. Lamentei muito e fui visitá-lo com muita tristeza em meu coração.
    Ao final da minha visita eu fiz uma oração para esse velho irmão e amigo desejando a presença do nosso maravilhoso Deus naquele quarto de hospital, tudo para amenizar a sua dor e sofrimento.
    Finalizando, ao chegar em minha casa recebi uma ligação do seu falecimento.
    Após esse fato não tive a motivação para abrir e saborear esse bom vinho e até hoje tenho a relíquia desse velho amigo.

    Conclusão:

    “Quantas vezes a gente perde as pequenas alegrias aguardando por uma grande felicidade que pode não chegar.”

    “Ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade.”

    Obrigado meu bom amigo e irmão Antônio Carlos, por essa sua redação maravilhosa.
    Deus no comando de tudo.

    Oslúzio F. Fonseca

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