A CRÔNICA DA CRÔNICA

Desde que comecei a escrever tenho o propósito de sempre contar histórias leves, para divertir e fazer pensar. É o meu slogan. Portanto, para mim, crime não poderia ser assunto de uma crônica. Mas desta vez não resisti e o leitor há de me compreender e perdoar.

Acabo de ler uma crônica do grande mestre Rubem Braga que me deixou impressionado. Fiquei imaginando, em nossos tempos do “politicamente correto”, o que aconteceria com uma publicação destas. Acho que seria um verdadeiro escândalo. Talvez queimassem seus livros na rua, instaurassem processos judiciais intermináveis e manchetes sensacionalistas inundassem o noticiário.

Mas vamos à crônica.

Foi publicada em agosto de 1956, porém eu acabei por ler apenas agora, numa edição comemorativa de 2013. Parece leitura velha, fora do tempo ou ultrapassada, mas acho que os bons escritores possuem a capacidade de alcançar a alma humana, mexer com nossas inquietudes, tocar nossos sentimentos e, por isso, resistem ao passar do tempo.

Conta ele que, em certa época da vida, assoberbado com muitos trabalhos, recebeu o pedido de um amigo chamado Laio Martins, para colaborar numa publicação semanal. O pagamento era pouco, mas achou que não podia negar um texto por semana ao caro amigo, que era dono do tal semanário.

Prometeu e no início escreveu algumas crônicas. Em pouco tempo, estando muito atarefado, não conseguiu mais produzir no ritmo requerido. Escrever uma crônica por semana, ainda mais para quem já tem muitos outros escritos a realizar, não é tão fácil quanto parece.

Certo dia, chegado o prazo, um rapaz bate à sua porta para buscar a crônica, ainda não escrita. Nesta hora, pressionado, o jovem Braga a esta altura com vinte e poucos anos, teve uma ideia luminosa. E criminosa.

Acabara de ler uma crônica de Carlos Drummond de Andrade num jornal de Minas Gerais, na qual o poeta usava o pseudônimo de Antonio João. Imagine o leitor que Rubem Braga não hesitou: botou papel na máquina de escrever e copiou o texto, apondo o mesmo pseudônimo. Sem hesitar, entregou ao portador, aliviou-se da tarefa e o texto seguiu para publicação. Explicou que o uso de pseudônimo era para evitar envolvimentos políticos.

Dias depois recebeu o dinheiro, bem como a demonstração de entusiasmo de Laio e já o pedido da próxima. Como a coluna do Drummond também era semanal, daí para frente, passou a praticar o crime em série. E ainda aperfeiçoou: conseguiu um rapaz que aprendia a escrever à máquina para produzir a cópia. Limitava-se então a fazer a revisão e eliminar qualquer menção a Minas Gerais, já que o semanário estava sendo publicado em São Paulo.

Sobre a culpa, diz ele:

“Pregada a mentira e praticado o crime, o remédio é perseverar nesse rumo hediondo; se às vezes senti remorso, eu o afogava em chope no bar do alemão ao lado, e o pagava (o chope) com o próprio dinheiro do vale de Antonio João.”

Com certo cinismo, na crônica ele argumenta que não se tratava bem de um plágio, já que não punha seu nome na crônica de Drummond, sendo fiel ao pseudônimo do verdadeiro autor.

Não resisto a reproduzir o final:

O estilo era inconfundível e o chope era bem tirado: mas você pode ter certeza, Carlos Drummond de Andrade, que muitas vezes o bebi à sua saúde, ou melhor, à saúde de Antonio João, isto é, à nossa. Dos 25 mil-réis que Laio me pagava, eu dava 5 para o menino que batia à máquina: era muito dinheiro para um menino naquele tempo, e isso fazia o menino feliz. Enfim, lá em São Paulo, todos éramos felizes graças ao seu trabalho: Laio, o menino, os leitores e eu — e você em Minas não era infeliz.

Não creio que possa haver um crime mais perfeito.”

Terminei de ler e um sorriso permaneceu em meu rosto, teimando em ignorar o rigor do politicamente correto. Obrigado, Rubem Braga, por me fazer refletir sobre a riqueza deste gênero literário, a crônica, que permite até confessar um crime com beleza e fino humor.

Dizia Confúcio que aquele que cometeu um erro e não corrigiu está cometendo outro erro. Rubem Braga buscou corrigir em grande estilo. É verdade que só publicou a crônica uns 20 anos depois dos delitos, esperando provavelmente que estivessem atenuados pelo passar do tempo, o que por vezes transforma o que é grave em risível.

Deixo o fato e fico com a literatura. Me importa mais a crônica que o cronista, mais a obra que o artista.

Me pus a imaginar o poeta Drummond lendo a crônica e descobrindo finalmente que seus textos faziam sucesso até mesmo onde ele desconhecia. Era tão bom escritor que valia por dois.

Rubem Braga ficou com os frutos, mas não lhe negou o mérito. Gosto de pensar que o poeta, assim como eu, também sorriu. Concedeu a Braga uma espécie de licença poética…

Tive a curiosidade de fazer as contas e constatei que, à época da publicação da crônica, Drummond tinha uns 54 anos e Rubem Braga dez anos menos. É possível que a generosidade do poeta o tenha feito sussurrar, ao ler a última frase:

— Esse garoto tem cada uma…

Antonio Carlos Sarmento

26 comentários em “A CRÔNICA DA CRÔNICA”

  1. Meu amigo, já estar dormindo mas, como vi sua crônica, não tive outra alternativa a não ser postergar o descanso e não me arrependo. Mais uma crônica deliciosa. Agora posso dormir. Boa noite e beijo grande.

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  2. Você começou o texto falando uma coisa que eu nunca tinha reparado: a leveza das suas temáticas. Nesses tempos de jornais cheios de sangue e corrupção, suas crônicas são um alento.

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    1. Fefe,
      Desde a primeira resolvi ir pelo caminho da leveza.
      Como você disse, já basta a quantidade de notícias ruins que dominam o noticiário.
      Pelo menos no domingo, uma leitura um pouco mais suave, longe da política, crimes, etc…
      Beijos

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  3. Muito interessante, desconhecia totalmente essa história, e o crime compensou pela generosidade e genialidade de ambos.
    Aproveitando:
    Você publica suas crônicas em algum outro estado?
    rsrsrs
    Tive uma ideia rsrsrs
    Valeu Cacau, como sempre genial!
    Aproveitando para mais uma vez te parabenizar pela live.
    Foi excelente!
    Bjs
    Chico

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  4. Caro amigo Antonio Carlos
    Drummond com certeza daria boas gargalhadas com a “esperteza” do rei do plágio ou do clone, não sei bem. Confesso que gostei mais da sua narrativa, em crônica, sobre essa esperteza. Cabe aqui registrar o roubo do óculos do nosso poeta, Na escultura de bronze à beira-mar, recorrente e sem solução. Que poema ou comentário ele faria à respeito ?

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    1. Amigo Rodolpho,
      Obrigado pelo comentário e por preferir a minha narrativa em crônica.
      Quanto aos óculos do poeta não sei o que ele faria a respeito, mas certamente não escreveria nada, já que sem o acessório não teria como enxergar…
      Grande abraço, meu caro amigo e agradeço muito sua participação tão marcante na live desta semana!

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  5. Cacau. Excelente! Você na verdade fez a crônica, da crônica, da crônica. É uma espécie de Regra da Cadeia, se ainda lembra de matemática. Muito bom. Uma vez mais parabéns pela live. Foi muito agradável. Um grande abraço e um domingo iluminado.

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    1. Obrigado amigo por mais esse presente nesta manhã de domingo.
      Me impressiona o seu conhecimento sobre os autores citados e suas obras.
      Vi ontem sua Live e gostei muito. Pessoalmente vou tecer alguns comentários. Grande abraço.

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      1. Querido amigo Nei,
        Muito obrigado!
        Fico contente que esteja de volta à nossa cidade e agradeço seus comentários sempre valiosos.
        Grande abraço e meu carinho à você e Jaciara!

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    2. Amigo Guimo,
      Você tem toda razão: é a crônica de uma crônica sobre outra crônica…
      Agradeço seu comentário e também sua participação na live. Espero que tenha te inspirado muitas ideias!!!
      Grande abraço e até sexta-feira!

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  6. Maravilhosa história e crônica. Sarmento nao pude assistir ao vivo sua entrevista mas pude ve-la gravada e gostei muito! Parabéns.
    Bom domingo, boa semana e que Deus nos abençoe.

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  7. Grande Meu Amigo, Muito boa noite, “A Crônica da Crônica” o título já é ímpar, genial . . . Parabéns!!! Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Gui, ao Jean e demais familiares . . .

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  8. Sarmento, muito bom!! Realmente o que diriam hoje os donos da verdade… Eu que tenho o hábito de vez ou outra fotografar Drummond em seu lugar preferido para registrar o tempo e contar pra ele novidades, na próxima foto contarei esta. rsrss … Interessante, que leio a crônica e os comentários e saboreio os dois, pois você continua narrando sobre ela. rsss Um abraço e meu sincero e singelo elogio pela sua palavra!!

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  9. Ei meu primo!
    Estou enganada ou já vi outro escritor
    querido confessar ” delitos” nas suas crônicas?
    Não bato palmas para enganos e mentiras, mas seu estilo descreveu o fato com tanta leveza que me pareceu até que uma cumplicidade oculta envolveu todos os personagens, alcançando nós, leitores, e nosso cronista.
    Gosto de Rubem Braga, um dos grandes escritores que o Espirito Santo legou à cultura brasileira e que, até hoje, é lido, estudado e admirado.
    Penso que você está no mesmo caminho, para nosso prazer e nosso orgulho.
    Beijo

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