A SOBRANCELHA DO MENDIGO

Há ocasiões em que um pequeno ato de generosidade pode mudar a vida de uma pessoa. Aliás, uma pessoa não, duas, pois quem praticou o ato também tem sua vida transformada: ganha uma alegria profunda, autêntica e duradoura. As coisas que a gente faz podem trazer muito mais felicidade que as coisas que a gente possui. Ou seja, nossos atos são mais importantes que nossos bens.

Meu avô contava uma história deste tipo. Relatava o caso repetidamente, não para se gabar, mas para reavivar esses bons sentimentos em seu coração. Vamos ao acontecido.

O mendigo vivia na praça em frente à casa de praia de meus avós. Dormia sob as árvores e durante o dia percorria as ruas em busca de alimento. É provável que por isso tenha ficado conhecido pelo delicado apelido de Passarinho.

Não lembro bem dele, mas tenho uma imagem em minha mente, talvez porque todo mendigo se pareça. A dureza da rua vai impondo suas marcas, na barba, na magreza, nas unhas, nos cabelos e nas roupas, equalizando a aparência dos que levam aquele modo de vida.

Ele tinha uns 60 anos. Educado, cumprimentava as pessoas e mostrava-se sempre cordato e manso, repetindo agradecimentos a todos e à Deus.

Normalmente, ao final da tarde passava em frente à casa de meu avô que sempre lhe oferecia algum alimento ou roupa, além de dois dedos de prosa. Em muitas ocasiões, o Passarinho chegava já saciado do apetite, precisando apenas de um pouco de calor humano, de atenção, tão essenciais quanto a alimentação. Para dar-lhe um pouco de dignidade, meu avô o chamava de senhor. Na despedida, Seu Passarinho o brindava com a única coisa de valor que possuía: um breve sorriso!

Durante os meses de inverno meu avô fechava a casa e só retornava quando o clima era novamente favorável. Numa destas ocasiões, ao voltar para mais uma temporada, percebeu que o Passarinho já não saía da praça. Passava ali o dia todo e uma ou outra pessoa levava até ele algo para comer. Andava com muita dificuldade, pé ante pé, quase tateando.

Meu avô chegou num dia e no dia seguinte resolveu ir ao encontro dele:

— O que houve, Seu Passarinho? Não consegue andar direito?

— É. Não enxergo bem, cada dia menos. Uma doença nos olhos.

— Já tentou ir no hospital?

— Não quero. É muito longe. E não vão me atender.

Meu avô ofereceu levá-lo de carro até o hospital, mas a recusa do Passarinho foi peremptória. Não acreditava que seu problema pudesse ser resolvido e já se resignava em viver assim, prisioneiro da praça agora transformada em uma gaiola sem grades. Achava que a bondade dos moradores não o deixaria morrer de fome e, portanto, poderia suportar até mesmo a cegueira total. Estava conformado. Já sabia que na vida nada é tão ruim que não possa piorar…

De volta à casa, meu avô estava inconformado. Não queria passar os dias vendo aquele pobre homem se arrastando na praça. Uma vida já tão limitada não comportava uma nova restrição tão severa. Precisava fazer algo, ajudá-lo de alguma forma.

Pôs-se a pensar de que modo poderia contornar a atitude arredia do Passarinho. Imaginou levá-lo ao hospital mesmo à revelia, mas como fazer isso? Achou que seria preciso, antes de tudo, tentar alguma outra coisa, mais simples e imediata. Se não desse certo, aí sim, teria argumentos para praticar, digamos assim, uma condução coercitiva — peço o perdão dos leitores advogados, se a expressão estiver mal-empregada.

Depois de matutar por cerca de uma hora, decidiu partir para a ação. Num impulso, preparou um sanduíche bem recheado e voltou à praça. Passarinho recebeu o alimento, agradeceu e guardou.

— Deixe-me ver os seus olhos, Seu Passarinho.

— Pode ver. Mas não tem jeito.

Ninguém se aproxima muito de um mendigo, mas meu avô chegou a uns vinte centímetros do rosto dele. Precisava tentar entender o que estava acontecendo e talvez relatar a situação à um médico conhecido.

Os olhos do Passarinho piscavam incessantemente e lacrimejavam. Seus cabelos longos misturavam-se com a barba, caíam sobre a testa e cobriam parte do rosto, dificultando muito o exame.

De vinte centímetros, meu avô passou para dez, focalizando o máximo de detalhes, mas era como tentar entender um mapa todo rabiscado. Pediu então ao Passarinho que aguardasse. Correu em casa e buscou uma pequena tesoura, a borracha para apagar os riscos do mapa.

De volta, foi desbastando aquele emaranhado e descobrindo o rosto do mendigo. Aos poucos, com o cenário mais límpido, percebeu que alguns pelos da sobrancelha, que de fato crescem na idade mais avançada, haviam se misturado com os cílios e interferiam nos olhos.

Meu avô, longe de ser um designer de sobrancelhas, profissão que sequer existia à época, foi cortando os pelos longos e removendo-os um a um. Um trabalho meticuloso. A cada fio retirado, Passarinho estremecia. Mas não reagia, permanecendo imóvel até o final da operação.

Para dar acabamento à obra, meu avô foi até a farmácia, comprou um colírio lubrificante e orientou o paciente a pingar várias vezes ao dia. Deu então por encerrada a consulta sem se preocupar com uma possível acusação de exercício ilegal da profissão — desculpem de novo os advogados — e ficou na expectativa do resultado.

Não poderia ser melhor. Dois dias depois o Passarinho já saltitava pelas ruas, enxergando perfeitamente. Estava de volta à mesma vida, agora tão diferente e rica.

Todas as tardes buscava a casa de meu avô para a costumeira conversa. Na despedida o aguardado sorriso, agora alargado pela gratidão.

Meu avô contava esta história com emoção e alegria.

A alegria de libertar um Passarinho!

Antonio Carlos Sarmento

44 comentários em “A SOBRANCELHA DO MENDIGO”

  1. Belo texto meu amigo! Coisas dos antigos e de um tempo onde se dava e recebia atenção. Tento não ser saudosista, mas perdemos “o tempo da delicadeza…” como diz o mestre Chico Buarque. Bom domingo, fiquem com Deus, voce e sua família.

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    1. Caro amigo Luigi,
      Pode ser que o tempo da delicadeza tenha realmente ficado para trás. A literatura pode nos ajudar a resgatá-lo.
      Muito obrigado por comentar. Você é quase sempre o primeiro!
      Grande abraço e que tenha uma maravilhosa semana junto à sua família!

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  2. Quanta generosidade ,desprendimento e beleza descrita nessa história cheia de humanidade!!
    Uma verdadeira inspiração pra todos nós!!!
    Um sorriso pra você meu irmão!!😊

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  3. Prezado Amigo, Muito bom dia, Sensacional, como sempre, essa crônica. Aproveito para repassar-lhe algo que tenho aprendido e que faz muito sentido para mim: “A felicidade ou se compartilha ou se perde”, penso que antes de qualquer sentimentalismo, o seu avô foi movido pelo sentimento de felicidade, de tornar a ver aquele ser feliz apesar da sua condição . . . Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Gui, ao Jean e demais familiares . . .
    Livre de vírus. http://www.avast.com .

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  4. Caro Antonio Carlos:
    Sem dúvida, seu avô era um homem de muito bom coração. Seu gesto deu alegria de vier ao “Passarinho”, que deveria lhe ser grato por toda a vida, afinal, teve suas vistas recuperadas.
    Sds. do seu contumaz leitor,
    Carlos Vieira Reis

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  5. Cada um tem seu mendigo com muitas coisas pra contar.
    Quando morava em Santa Teresa, em casa, passava um mendigo que quando pedia ajuda sempre falava que eea a última vez.
    O apelido dele virou “Última vez ” e sempre havia um dinheiro trocado em cima do piano para ele.
    Sabíamos pouco da vida dele. Uma ocasião o “Última vez ” sumiu por uns 10 dias. Meu pai, que era o interlocutor mais frequente a dar esmola e bater papo, ficou preocupado.
    Quando ele tocou a campainha, após esses dias, foi uma alegria. Oferecemos café com bolo, mas ele só queria o dinheiro.
    Contou que esteve doente.
    Daí em diante, veio todos os dias até eu me mudar de lá.
    Minha prima também tinha um mendigo que a ajudava, mas isso é outra história, fica para o próximo comentário.
    Parabéns, como sempre, ótimo conto.

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  6. Na vida corrida de cidades grandes, as pessoas só têm olhos para o celular.
    As vezes passando pelas ruas encontro pessoas que estão vendendo algum doce mas só fazem questão de um bom dia.
    Estou sentindo falta dos meninos que vendem balas no sinal. Por onde será que estão, na escola? Tomara.
    Tem gente que é contra minha atitude de ajudar e até passar uma forma de carinho. Fazer o quê …
    Faço o que posso.

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    1. Guilhermina,
      Interessante que lhe chamou a atenção um comentário sutil da crônica sobre dar atenção à essas pessoas mais necessitadas.
      Um simples bom dia, perguntar o nome e coisas assim. São mais valiosas do que podemos imaginar.
      Continue fazendo o que pode!
      Um grande abraço e muito obrigado por comentar e compartilhar.

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  7. Linda a atitude de solidariedade de Vovô!
    A ajuda ao próximo com atitudes pode mudar a realidade das pessoas que estão sendo ajudadas, nos faz bem e promove um mundo com mais amor, mais sorrisos e mais felicidades.

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  8. Fico imaginando seu carinho em guardar essa história do seu avô. Ajudar é sempre gratificante, ainda mais libertando um passarinho. Belo conto verdadeiro.

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  9. Parabéns, a crônica está leve e suave como um bom vinho, presenteando os nossos mais nobres sentimentos.
    Depois desta leitura sinto uma comunhão maior com o lado generoso e elevado da humanidade.
    Ainda há esperança.
    Abraços.

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    1. Caro Rômulo,
      Que beleza a crônica ter levado a você um sentimento de esperança na humanidade. O noticiário só nos traz desalento e precisamos de um contraponto.
      Muito grato por seu comentário e por compartilhar seus sentimentos.
      Grande abraço, beijos na família e uma ótima semana!

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  10. Nossos atos são mais importantes que os nossos bens… Apenas essa frase já seria suficiente para valorizar mais esse presente que nos enviou. Quanta generosidade de seu avô aliado a vontade persistente de fazer o bem. Parabéns mais uma vez querido amigo e como neto desse avô de tantas histórias e recordações só poderia ser o ser humano que é… É um privilégio ser seu amigo. Boa semana.

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    1. Querido amigo Nei,
      É interessante como certas memórias afloram sem a gente saber e querer. Apenas surgem, como foi o caso desta história praticamente perdida no tempo, mas tão valiosa.
      Percebo que você ao ler teve a mesma sensibilidade que eu ao escrever.
      Obrigado pelas generosas palavras, meu querido amigo!
      Fiquem com Deus e manda um beijo pra Jaciara!

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  11. Sensacional!
    O Bom Samaritano.

    Um pequeno ato de grandeza imensurável.
    Quantos sorrisos deixamos re receber?Quantos passarinhos presos deixamos de soltar, por simplesmente não aparar as ” nossas sobrancelhas”?

    Lindo texto…
    Parabéns!

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    1. Querido Chico,
      Excelente seu comentário. De fato faz lembrar a parábola do Bom Samaritano.
      Gostei muito do pensamento de apararmos nossas próprias sobrancelhas e abrirmos os olhos para o próximo.
      Obrigado por estar sempre lendo, comentando e assim enriquecendo as crônicas.
      Uma maravilhosa semana!

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  12. Bom dia meu amigo dos velhos tempos!
    Suas crônicas resgatam valores, hoje distantes, por uma nova sociedade da era digital, onde pais e filhos se comunicam pela internet, mesmo estando todos dentro de uma mesma casa.
    O diálogo com empatia é fundamental para uma convivência harmoniosa e menos problemas de saúde mental. Milhares de pessoas padecem de crises de ansiedade, perda de sono, nervosismo etc. não por falta de coisas materiais, mas por falta de afetividade.
    Ótima crônica.

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    1. Caro Freitas,
      De fato a era digital aumentou os recursos de comunicação, mas parece que estamos mais distantes uns dos outros.
      Nada substitui uma conversa pessoal, um contato humano e afetivo.
      Muito obrigado por seu comentário.
      Desejo ao amigo uma excelente semana!

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  13. Excelente história, seu avô como temos visto em algumas crônicas devia ser um cara bem interessante mesmo.
    Atento-me para os dias de hoje quantas sobrancelhas precisam ser cortadas para que as pessoas e nós mesmo nos sintamos livres.
    Fico com a reflexão de qual sobrancelha tem mais me aprisionado.

    Parabéns pelo seu Dom.
    Faltam 26 dias..hehehe

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  14. Esse é um exemplo de profunda empatia, quando não nos conformamos com o sofrimento alheio. Lindo enxergar o próximo com o coração, como o seu avô . Uma dádiva de Deus!

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  15. Meu querido primo,
    Seu avô tinha o coração maior que o corpo .
    E olha que ele era bem grande! Lembro da figura alta, cabelos bem penteados e, se não me engano, sempre de roupa branca.
    Mas que grande coração! Essa atitude de fraternidade me chamou a atenção porque já havia percebido que é uma ação que preciso aperfeiçoar- algumas vezes, apenas balanço a mão para dizer que não posso ajudar, quando deveria olhar nos olhos, cumprimentar, dar atenção, enfim. É preciso empatia e piedade, ao invés de julgamento e indiferença.
    E, sobretudo, é preciso sair das palavras e do projeto para a ação.
    Já comecei a mudar. Estou atenta.
    Beijo

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    1. Querida Prima Gena,
      De fato todos nós precisamos deste aperfeiçoamento: quantas vezes olhamos e não vemos…
      E a nossa indiferença tem um preço. Vai contra a nossa essência humana.
      Acho que meu avô leu e colocou em prática a parábola do bom Samaritano…
      Beijos minha prima e obrigado pelo comentário!

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