COMPETIÇÃO

Eu nunca havia assistido um campeonato de surf. Mas estava num hotel na beira da praia e, certo final de tarde, vi que montavam uma estrutura para o evento.

No dia seguinte fui acordado com o som de vozes ao microfone anunciando nomes e dando informações. Era o início do certame. Olhei o relógio e entendi porque eu estava ainda com tanto sono: faltavam vinte minutos para as seis horas da manhã. Não sabia que surfista acordava tão cedo…

Não havendo outra escolha, tive que trocar o café da manhã pelo café da madrugada e antes das sete da manhã já estava na área de lazer do hotel observando o torneio, mesmo sem entender nada deste esporte.

Pude logo notar que os concorrentes eram divididos em baterias, separados por critérios de sexo e idade. Fiquei ali observando as provas, tentando inferir como se dava a disputa, mas sem compreender a empolgada narração feita ao microfone: swell, cavada, drop e outras expressões que para mim eram incompreensíveis. Vi beleza na manhã, no mar, na estética das pranchas, nos passeios dos surfistas, mas não pude sentir a emoção das vitórias por não conhecer as regras do jogo.

A área de lazer do hotel era separada do bar ao lado por um muro de pedras, largo e baixo. Lá havia um sem número de aficionados do esporte que torciam com euforia e comemoravam os resultados aos gritos e palmas — era praticamente a arquibancada do jogo.

Após umas três rodadas foi chamada uma categoria “sênior” e vi umas 4 ou 5 cabeças brancas se encaminharem para o mar com suas pranchas embaixo do braço. Uma turma de veteranos em ótima forma, sem barriga, ágeis e se deslocando com desenvoltura.

Neste momento, uma senhora sentou no muro, talvez para melhor visualizar a prova. Ela usava uma bermuda jeans até os joelhos, um top preto, estava descalça e com um copo de cerveja na mão àquela hora da manhã. Com o vento da praia, seus cabelos pareciam ter sofrido um choque elétrico de 220 volts…

Mal se acomodou, passou a disparar gritos e grunhidos, a princípio incompreensíveis, em alto volume. Sua voz era de um agudo tão exorbitante quanto irritante. Parecia ter engolido um super tweeter.

Aquilo logo me incomodou. Pensei em procurar outro lugar para ficar, mas achei que seria por breve tempo e então resolvi suportar aquelas incorporações de espíritos histéricos. Se ela queria gritar e torcer, poderia ter ficado no bar e não invadido sonoramente o espaço do hotel onde só havia ignorantes do esporte e, portanto, sem muito envolvimento com o torneio.

Como nada é tão ruim que não possa piorar, ela foi ficando cada vez mais nervosa e insatisfeita com a prova e passou a distribuir em altos brados, toda a sorte de impropérios e execrações, sabe-se lá dirigidas a quem.

A esta altura eu ansiava pelo fim da batalha. Que viesse logo outra bateria de competidores para terminar aquele estorvo, mas o tempo demora a passar em situações aborrecidas.

Quando finalmente os longevos surfistas foram deixando a água, aquela que estava literalmente em cima do muro, começou a chamar o marido desportista que fora alvo de sua desmedida torcida. Ou melhor, sua distorcida…

Ela agora repetia o nome do pobre coitado e gritava em tom autoritário:

— Vem cá, vem cá!

Ele aproximou-se carregando a prancha e caminhando lentamente, desanimado, sem querer chegar. Acho que já previa o que iria acontecer. Era evidente que não tinha ido bem na disputa, mas aquele momento parecia pior que tudo.

Era bem magro e parecia estar perto de uns 70 anos. Para mim, já uma pessoa especial, pois surfar nesta idade é para poucos. Quando chegou a uma distância de uns 10 metros, a megera gritou:

— O que você fez? As ondas estavam para cá e você para lá! Onde você estava com a cabeça? Eu gritei o tempo todo para você mudar de posição e não adiantou nada. Bem feito! Ficou em último lugar! Ridículo!

O surfista ouviu e não deu uma palavra. Apenas respondeu com um triste olhar.

Naquele momento e apenas naquele momento, o velho emergiu do surfista, alquebrado, sem vida e melancólico. Virou-se emudecido e foi guardar a prancha. Precisava de acolhimento, recebeu xingamento. Na prova foi um competidor, mas ali naquele momento, um perdedor.

Eu não gosto da ideia de que quem acha que o importante é competir, provavelmente perdeu. Naquele caso então, tive a certeza de que, ter competido com entusiasmo e integridade, já tornava aquele senhor um admirável vencedor.

Mas a segunda prova, a da vida e não a esportiva, esta sim trouxe-lhe o gosto amargo. Dizia Ernest Hemingway que leva dois anos para aprendermos a falar e mais uns sessenta para aprendermos a calar a boca. Mas há quem nunca aprenda…

Fiquei refletindo se existia amor entre aquele casal.

Ela poderia ter recebido o atleta sem uma palavra, apenas olhar para ele, sorrir e mesmo de longe bater algumas palmas. Ou muito melhor, ir ao seu encontro e dar-lhe um abraço encorajador, fazer-lhe um afago, pelo menos um mísero tapinha nas costas.

Mas não, ela precisava “ganhar” a segunda competição.

Triste casal, triste companheira, triste surfista.

Ali existia uma relação, mas não amor. O amor não admite humilhação!

Antonio Carlos Sarmento

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26 comentários em “COMPETIÇÃO”

  1. Reflexiva a crônica de hoje. O que consegui ver foi um surfista velho e triste (fato raro) e uma senhora que não amadureceu com a vida. Tenho certa implicância com “eternos jovens adolescentes”. Sempre sugiro um bom analista pra eles. Tenho horror a frase “queria voltar a ter 18 anos”… Deus me defenda! Adoro os meus 67 (apesar de que tenho que convencer minha coluna, disso). Sarmento que bom ter sua crônica pra nos ajudar a refletir o dia a dia e nos trazer lembranças à alma. Bom domingo e Deus te abençoe e a sua familia.

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    1. Caro amigo Luigi,
      É sempre um prazer receber seu comentário e através das crônicas compartilharmos um pouco do que pensamos.
      São as maravilhas do mundo virtual, que nos permitiu resgatar uma antiga convivência como colegas de trabalho e agora nos proporciona a possibilidade trocarmos ideias, mesmo estando em países tão distantes.
      Fico grato em contar com sua constância nas leituras e nos comentários, praticamente desde que iniciei as publicações.
      Envio de Portugal um afetuoso abraço e o desejo de que tenham uma maravilhosa semana por aí.

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  2. Cacau, crônica sensacional.
    A narrativa dos surfistas foi uma imagem perfeita do que vejo aqui de casa, quase que diariamente, de pessoas com mais de 60 anos pegando onda, é fantástico !!! A alegria e a vida saudável estão estampadas no rosto de cada um deles.
    O amor e a prática do esporte, para mim, estão intimamente ligados a longevidade.
    Espero que tenha sido um momento infeliz da esposa.
    Eu ,como você sabe, continuo praticando o que mais gosto, futebol, recebo sempre incentivo da Helen e filhos, sempre me dando força para praticar…
    Sem julgamentos, mas talvez o surfista setentão tenha sabido escolher o esporte, mas não a esposa… por outro lado, pode ser um incentivo para que ele melhore a performance rsrsrs
    Ótima crônica, como sempre!
    Beijos

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    1. Amigo Chico,
      Muito obrigado por seu comentário e sua constante presença por aqui. Fico feliz que tenha gostado.
      Sei do seu prazer em participar do futebol e dos benefícios físicos que daí decorrem, sem falar na grata convivência que o esporte te proporciona. Realmente o esporte pode ajudar muito na saúde e longevidade, além de trazer a tão desejada alegria.
      E você ainda é um sortudo, pois ao contrário do nosso protagonista da crônica, soube escolher bem a companheira!
      Um grande abraço e uma ótima semana a você, Helen e Pedrão!

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  3. A vida é feita simplesmente pra ser vivida, com mais derrotas que vitórias.
    O significado das vitórias, mesmo pequenas, superam em muito até às derrotas mais flagorosas, tornando a vida por mais simples que seja, em algo extremamente valioso e gratificante.
    Nestas idas e vindas da vida, o importante é ter fé e lutar desesperadamente por aquilo que acredita e só assim terá chances de êxito.
    Quanto as críticas ou celebrações, todas tem seus momentos e locais apropriados e também dependem da pessoa que é o alvo e de quem faz a crítica, que no caso foi completamente inaquada e inapropriada dado o momento.
    Enfim, o bom mesmo é morar em Vitória pois a vitória é sempre garantida.
    Zagalo só emplacava seus carros em Vitória como um amuleto para sua vida.
    Abraços primo.

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    1. Caro primo Rômulo,
      Seu rico comentário nos permitiu, entre outras reflexões, saber de mais uma curiosidade sobre o supersticioso Zagallo. Ele é vizinho do meu irmão Alfredo e algumas vezes já tive a oportunidade de vê-lo. Deve estar agora com bastante idade… Muito interessante.
      Primo, continue desfrutando do privilégio de morar em Vitória, com v maiúsculo! E que a vida lhe ofereça vitórias inesquecíveis.
      Grande abraço e uma ótima semana!

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  4. Muito boa a reflexão, que você através da crônica nos traz, meu irmão!!
    Aprender a falar é um processo cerebral e aprender calar uma sabedoria emocional.
    Faltou carinho , sensibilidade e maturidade nessa esposa que deveria competir pra aprender,que perder faz parte da vida!!”Pimenta nos olhos do outro é refresco”
    Bjkas lusitanas

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    1. Minha irmã,
      Sempre fico contente quando alguém revela que a crônica permitiu uma reflexão. Como é necessário pensarmos sobre nossos comportamentos e buscarmos a melhoria contínua.
      Talvez seja o que você denominou “sabedoria emocional”.
      Muito obrigado por comentar.
      Beijos e uma maravilhosa semana, no Tom certo…

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  5. Querido amigo. Volto a comentar suas crônicas e a de hoje altamente reflexiva. Uma pena que essa senhora não tenha envelhecido agradecendo a Deus a saúde de seu companheiro e principalmente cultivado o necessário amor e companheirismo necessários nessa idade. Gostaria de estar a seu lado para comentar a prova pois sempre fui um admirador do surf e acho incrível o que eles conseguem fazer sobre a prancha. Obrigado amigo por mais essa bela crônica. Tô com saudades. Abrs em todos.

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    1. Amigo Nei,
      Já sentia sua falta por aqui, presença sempre bem-vinda.
      Então na próxima viagem para um hotel a beira mar vamos juntos, para que eu aprenda um pouco sobre o esporte, ok?
      Também sinto saudades e logo que retorne de Portugal, vamos fazer aquele encontro programado.
      Desejo que estejam muito bem e que tenham uma ótima semana.
      Beijos

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  6. Perfeito meu amigo, amor é antes de tudo acolhimento e companheirismo. Lembrar de na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza é sempre importante . Beijão pra vc é pra Sônia . Saudades de vocês.

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  7. O nosso surfista merecia uma salva de palma por praticar esse esporte na sua faixa etária e um conselho amigo para dispensar a coroa que pratica incompreensão ! Forte abraço amigo !

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  8. Olhando de fora, realmente apeteceria que esse pacífico surfista tivesse a coragem de sentar a sua dama na prancha e a enviasse contra uma onda…
    Porém, entre ondinhas e ondulações vivem muitos casamentos e muitas relações, sendo realmente uma incógnita o que se passa entre as pessoas e os laços invisíveis que as unem.
    Como sempre uma boa história, mesmo que triste e incompreensível ao nosso olhar.

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    1. Dulce,
      É intrigante pensar nestes “laços invisíveis” que unem as pessoas. Realmente, eles e só eles, podem explicar o porquê de certas relações atravessarem os tempos apesar dos pesares.
      Mais uma vez agradeço muito sua presença e seu comentário.
      Desejo uma ótima semana!

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  9. Que megera!
    É triste a falta de incentivo, principalmente do cônjuge.
    Esse tipo de torcida não ajuda, muito pelo contrário, só atrapalha e joga para baixo.
    Ótima crônica!
    Nada entendo desse esporte.
    Bom domingo e abençoada semana.

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    1. Amigo Newton,
      Realmente este tipo de torcida é melhor nem ter…
      Felizmente você nada entende deste esporte, mas entende muito bem de como viver o casamento em harmonia e no amor.
      Uma maravilhosa semana para você e sua sortuda companheira Nuri!

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  10. Meu jovem amigo, irmão e notável Professor Antônio Carlos.
    Vc é um sábio e iluminado pelas letras que chegam a sua mente.
    Uma excelente crônica para pensarmos na nossa relação com o próximo . Eu gostei muito do texto e concluo: O mal não prevalece sobre a sabedoria, e a pureza penetra através de tudo, ela é um efluvio do poder de Deus.
    Parabéns!

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  11. Prezado Senhor Sarmento, (dessa vez o corretor não me decepcionou). Lá em Florianópolis há um bordão: “Das um banho!”. Na minha modesta opinião tem a tudo a ver com o seu post que é de uma acuidade inexorável. Parabéns pela sua crônica e o reconhecimento do que é amor de verdade.
    Forte abraço.
    Professor de Inglês Marcello Bion.

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    1. Bion,
      Fico alegre com sua presença por aqui.
      Estou em Portugal, onde a Tatiana está morando e mostrei seu comentário para ela, que lembra bem de você.
      Agradeço suas palavras e daqui retribuo com um grande abraço!

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  12. Prezado Amigo, Muito boa noite, Mais uma bela crônica, parabéns . . . Lamentavelmente, no mundo existem mais pessoas para criticar, seja lá o que for, do que para acolher . . . É difícil ser resiliente . . . Recomendações à Sônia e demais familiares.

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    1. Querido amigo JH,
      Realmente a tendência de criticar é muito forte. E poucas vezes traz um resultado positivo…
      Agradeço ao amigo por comentar.
      De Portugal envio um afetuoso abraço a você e toda a sua família e um beijo especial para a Catarina!

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