SEMIDEUS

Coisa difícil é lidar com pessoas arrogantes. Não sei se é uma dificuldade só minha, mas é algo que até hoje não consegui superar. Até admito que algumas vezes durante a minha vida devo ter me comportado de modo arrogante, mas por isto me penitencio.

Eu sinto este apuro desde jovem e foi o principal motivo para ter decidido não seguir a carreira militar. Na época eu achava que seria muito mais difícil lidar com a arrogância num ambiente de disciplina e hierarquia rigorosa. Meu pai fazia gosto que eu entrasse para a vida militar e chegamos a ter um diálogo mais ou menos assim:

— Pai, eu não quero receber uma ordem, perguntar o porquê e receber como resposta “Porque eu quero. Vai logo e faz o que estou mandando!”

— Que bobagem — respondeu o velho, sem esconder sua frustração.

Desqualificou meu argumento, mas respeitou minha posição e não voltou mais ao assunto. Acabou por me permitir optar pelo que eu bem entendesse. Só por esta liberdade eu já estaria lhe devendo muito, mas isso já é outra história.

Curioso que ao recordar esta conversa com meu pai, vem também à minha lembrança um outro episódio vivido com ele, muitos anos depois, em que a arrogância seria novamente o tema.

Certo dia, ele foi fazer a costumeira “siesta” após o almoço e não levantou da cama o resto da tarde. Tinha nesta ocasião uns 75 anos. Estranhamos muito, pois meu pai praticamente não ficava doente. Na realidade, até então, em toda a vida ele ia pouco à médico e nunca para um hospital. Mas como se queixava de uma persistente dor no abdome, coisa indefinida e com possibilidade de ser grave, partimos para a emergência hospitalar.

Ali foi examinado e procederam sua internação, pois não foi possível diagnosticar o problema. Passou então a fazer exames e depois tomou um sedativo para passar a noite, ficando o mistério para ser desvendado no dia seguinte por um respeitado médico que o visitaria logo cedo.

E assim foi.

Em torno das 9 da manhã o tal médico entrou no quarto. Pelo olhar e pela pompa pensei que era Alexandre, o grande… Passou direto pelos familiares, eu inclusive, sem nem olhar, quanto mais cumprimentar. Foi direto examinar o paciente, ao qual perguntou secamente:

— Aonde dói?

Meu pai mostrou a região da dor. Napoleão Bonaparte então, sem nem pestanejar, afundou 3 dedos na barriga dele, que deu um pulo e largou um longo e sofrido gemido.

Olhei para minha irmã. Ela também estava estupefata.

O Imperador César passou a examinar o prontuário que estava pendurado na cabeceira e finalmente dignou-se a nos dirigir a palavra:

— Quem é o responsável por ele?

— Eu e minha irmã — respondi, com má vontade, aliás, com vontade de esganá-lo.

— Vou abrir a barriga dele. Os exames não são conclusivos, mas eu acho que é apêndice. Não dá para perder tempo. Assinem a autorização que eu vou operar ele agora.

Mais uma vez olhei para minha irmã. Mais uma vez ela estava estupefata.

— O senhor está dizendo que vai operar ele para tentar descobrir o motivo da dor: é isso mesmo? — indaguei inconformado.

— Deve ser o apêndice. Vamos abrir.

Eu sabia que a gente não deve ser arrogante com os humildes, mas também tinha a convicção que nunca se deve ser humilde com os arrogantes. Respondi:

— Não me parece que tenha lógica. Mas nós vamos pensar sobre o assunto e em seguida lhe damos uma resposta sobre a autorização.

Ele deve ter me achado arrogante…

Fez cara feia, bufou e magnanimamente nos concedeu 10 minutos. Entregou-me um olhar misto de raiva e desprezo, virou as costas e saiu do quarto de modo abrupto, num passo de Donald Trump.

Ficamos ali, eu e minha irmã mais velha, com esta dinamite acesa nas mãos. Conversa complicada e de muita responsabilidade. A vida de meu pai estava em jogo. Minha mãe, já com certa idade e sem muita condição de decidir algo tão vital, certamente aceitaria qualquer que fosse a nossa escolha.

Ainda um pouco atordoados passamos inicialmente por alguns momentos de vacilação. Confesso que até dediquei alguns adjetivos ao médico, mas prefiro poupar o leitor desta longa e desagradável lista…

Até que surgiu a ideia de consultarmos algum médico da nossa confiança para obter uma opinião mais técnica, mais consistente e sem o ranço pessoal que a esta altura nos dominava. Decidimos buscar mais razão e menos emoção.

Assim pensamos e fizemos.

Liguei para uma médica que tratava minha mulher, com quem tínhamos e até hoje temos, um grau de relacionamento pessoal e uma verdadeira afinidade. Contei a ela rapidamente o que se passava. Bingo! Por obra divina ela havia trabalhado naquele hospital e conhecia o médico, que inclusive havia sido seu professor. Me disse que era um profissional excelente, com um índice de sucesso invejável e que, se fosse com o pai dela, autorizaria o procedimento sem pestanejar.

Realmente a confiança é a base de todo relacionamento humano. Mandamos avisar para trazerem a autorização que iríamos assinar.

Cumpridas as formalidades veio o maqueiro para levar meu pai e quando já estava saindo, o Deus do Olimpo apareceu na porta e me olhando fixamente determinou:

— Encontre comigo na porta do centro cirúrgico em 5 minutos.

Fingi não ter ouvido. Tudo bem, eu perdi a batalha contra a arrogância em benefício do meu velho, mas beija-mão já seria demais…

Resolvemos ir tomar um café num local próximo enquanto a cirurgia se desenrolava e lá ficamos por uns 30 ou 40 minutos. Na volta, sentamos na antessala do tal centro cirúrgico, aguardando notícias.

Em mais algum tempo ficamos sabendo que a cirurgia havia sido bem sucedida e era de fato o apêndice inflamado que estava causando os sintomas. Zeus, o deus dos deuses, tinha razão.

Fomos salvos por um bom conselho da médica amiga. Caso contrário, eu poderia ter perdido meu pai e, se tivesse acontecido, talvez na certidão de óbito devesse ser acrescentado na causa mortis, a arrogância…

Encerro dando razão à uma ideia de Tolstói:

Uma pessoa arrogante se considera perfeita. E isto prejudica a principal tarefa de um ser humano ao longo da vida: tornar-se uma pessoa melhor.

 Antonio Carlos Sarmento

20 comentários em “SEMIDEUS”

  1. Prezado Antonio Carlos:
    Há alguns anos, vivenciei uma situação parecida, com um certo neurocirurgião, famoso pela sua competência, aqui do Rio de Janeiro, mas, não menos arrogante.
    Cheguei até seu consultório, por indicação de um ortopedista meu amigo, uma vez que estava ameaçado por uma cirurgia. Tudo por causa das intensas dores na coluna, que, até hoje, me consomem.
    O referido médico, além de super antipático, era monossilábico, suas respostas eram sim ou não, sem entrar em detalhes.
    Por fim, depois examinar todos os resultados dos meus exames (ressonâncias, tomografias, radiografias etc), chegou à seguinte conclusão: “Fique como está. Você não tem a mínima chance de ser operado. Tens 05 hérnias de disco e com a sua idade seria um risco desnecessário. “Apenas se limite a fazer RPG, PILATES e Fisioterápia. E uma boa tarde para o senhor.”
    E, assim, se encerrou a consulta, depois, é claro, de haver pago, na época, R$ 800,00, pelo serviço que durou exatamente 20 minutos, mas ficando marcada a arrogância daquele que se achava Deus …
    Abs.
    Carlos Vieira Reis

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    1. Prezado amigo Carlos,
      Obrigado por compartilhar suas histórias também. Este tema da arrogância é inesgotável…
      Interessante como há os casos que nos marcam e permanecem na nossa memória como experiências indesejáveis.
      Um grande abraço, meu amigo e cuide bem da sua coluna!!!!
      Desejo uma ótima semana a você e sua família!

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  2. Ai….que indignação sinto com gente arrogante!!
    Sua crônica traduz que não basta ter competência técnica sem competência relacional.Se não fosse o aval da sua amiga médica com quem você construiu uma relação de confiança,talvez nosso pai não tivesse a oportunidade de viver 103 anos.
    Muito bom trazer temas que nos ajudam a perseguir sermos pessoas melhores!
    Parabéns Cacau!

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    1. Minha irmã,
      A busca por melhorarmos a nós mesmos deve ser incansável, mas muitas vezes nos dedicamos com mais ímpeto a tentar melhorar os outros…
      Fico contente que tenha apreciado a crônica.
      Beijos saudosos!

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  3. É fácil ser seduzido pela arrogância qdo se tem muito sucesso. Como disse Al Pacino no papel de diabo no filme “advogado do diabo”: “a vaidade é meu pecado predileto”

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  4. Sarmento me permite contar-lhe algo que me ocorre Lendo sua ótima crônica de hoje.
    Fiz faculdade de psicologia quando jovem (põe tempo nisso…) e num dos primeiros dias de aula apresentou-se um professor de origem holandesa com forte sotaque mas muito carismático que me ensinou algo que me serviu e serve para a minha vida. Ele disse após um debate dos alunos sobre arrogancia, antipatia, etc que tudo o que nos repele ou incomoda nas outras pessoas são defeitos que temos em nós mesmos. Nós nos vemos no “espelho” e isso nos traz um grande desconforto. Te digo isso porque desde então constatei que realmente quando conseguimos nos distanciar do “Eu” dou razão a meu velho professor. Mas quanto ao caso em destaque, tambem tenho uma IMENSA dificuldade com os arrogantes e os intolerantes (imagina como tenho sofrido nos dias de hoje… kkkkk) Tudo que disse acima é só o que aprendi. Não vai aqui nenhum mérito de julgamento. Um bom domingo e Deus nos abençoe.

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    1. Amigo Luigi,
      Seu comentário oferece uma boa reflexão.
      Agradeço muito por compartilhar algo que foi e ainda é importante à sua vida.
      Revela-se mais um ponto em comum entre nós: a dificuldade de lidar com a arrogância…
      Grande abraço e uma ótima semana a você e sua família!

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  5. Querido amigo, bom dia!
    Nós não sabemos lidar com a experiência e competência que adquirimos durante nossa caminhada e, por imaturidade emocional, nos comportamos como seres arrogantes, o que não deveria, por isso, atualmente investir no auto conhecimento, na espiritualidade e, também na CNV (Comunicação Não Violenta), é um importante passo a ser dado para nos conscientizar e viver a humanidade que Jesus nos ensina. Suas crônicas são um abençoado tema para muitas reflexões. Parabéns mais uma vez!!! Aguardando o livro, saudades de vocês, bjsssssss!!!

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    1. Querida amiga Renusia,
      Obrigado por seu rico comentário. Fico feliz que continue acompanhando as crônicas e elas lhe proporcionem oportunidades de reflexão.
      O livro está em andamento e espero em breve ter notícias sobre a possível data de lançamento.
      Beijos e manda um grande abraço pro Francisco!

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  6. Prezado Amigo, Muito bom dia, Como sempre, oportuna e excelente crônica. Realmente, a confiança que depositamos em um ser amigo é, sempre, algo espetacular, bendita seja a sua Amiga Médica, com o exemplo de uma vivência, o levou a tomar a decisão mais acertada. E, de fato, é muito correta a última frase, quanto a ser a arrogância, um empecilho para a pessoa tornar melhor. Mais uma vez, aplaudo sua crônica. Recomendações Sônia e demais familiares.

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  7. Excelente a sua crônica de hoje! Um dia lhe contarei a história de que é ser um “Médico de Deus”. Uma história contada pelo bispo auxiliar da Diocese do Rio – Dom Antônio (aquele altão) que também é Médico, num dos retiros que fizemos lá no Sumaré em que era ele que presidia e apresentava as palestras. Uma história muito interessante! E a partir daí quando somos atendidos por médicos que nos dão atenção, nos ouve, nos aconselha e até nos “pega no colo”, eu os nomeio “Médicos de Deus”. Um grande e afetuoso abraço e fiquem com Deus.

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    1. Amigo Aylton,
      Suas histórias são sempre ricas e interessantes. Estou interessado em ouvir esta de Dom Antonio na primeira oportunidade.
      Um grande abraço e que você e sua família, sempre que necessitem, encontrem os “médicos de Deus”!

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  8. A aQuantas pessoas, atletas e profissionais são muito capazes, mas não se destacam porque são arrogantes.
    A arrogância, para mim, é uma barreira para a competência.
    No futebol chamamos de “salto alto”, e muitos times não chegam ao objetivo e são batidos pela arrogância.
    A arrogância é o antônimo da humildade, e sem humildade ninguém aprende, cresce ou vence na vida.
    Além de causar antipatia, e de cometer erros por serem “surdos” ao não admitir que o outro possa estar certo.
    Beijos

    * Achei fantástico, você de um bate papo, transformar em uma crônica excelente.
    Disse que faria e dez!

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    1. Chico,
      Agradeço seu comentário e mais ainda por ter me sugerido o tema em uma conversa informal.
      Tenho dificuldade em escrever sob encomenda, mas sugestões como a sua, acolho sempre de bom grado pois me ajudam na necessária criatividade de abordar um tema por semana.
      Beijos para vocês e um especial no tricolor Pedrão!

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  9. Querido cronista,
    Que momentos difíceis! diante de uma situação tão aflitiva, ter que lidar com alguém que ” se acha”.
    Há muitas pessoas que camuflam a insegurança e a timidez de uma forma desastrosa.
    Mas existem aqueles que nutrem uma opinião excessivamente brilhante de si – sem justificativa, vaidade tola! Precisam pisar nos outros para se sentirem fortes. São considerados mais ridículos que poderosos .
    E carregam um ônus: ninguém gosta de sua companhia. Os preferidos são os modestos, os despretensiosos, que desejam servir em vez de desprezar, amparar em vez de rebaixar.
    A humildade traz leveza à vida.

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    1. Querida Gena,
      Perfeito seu comentário. De fato a arrogância nunca é apreciada, pelo contrário, a pessoa arrogante não recebe admiração e acaba sempre sendo evitada pelos outros…
      Fico com a sua última frase: a humildade traz leveza à vida!
      Obrigado por compartilhar suas opiniões, prima.
      Beijos

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  10. Prezado Antônio, mais uma vez uma excelente crônica de sua autoria.
    Além de concordarmos plenamente “no tocante à qüestão da arrogância”, por sorte, no seu caso, o arrogante estava certo. Quantos arrogantes por aí, a cometer erros hediondos, apenas para satisfação do seu próprio ego, e para esconder as suas fraquezas ?
    Grande abraço

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    1. Caro Fernando,
      Muito obrigado por seu gentil comentário.
      Realmente a arrogância em nada colabora para as relações entre as pessoas. E, como você disse, às vezes até pode estar escondendo fraquezas.
      Grande abraço e uma ótima semana!

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