SUBESTIMAR

Recentemente terminei de ler um livro de Stephen King em que o protagonista sobrevive por agir de maneira que os outros pensem que tem pouca cultura e raciocínio limitado.

O famoso escritor usou a ideia de que quando se subestima o inimigo se caminha para a derrota. Assim, criou para o protagonista uma maneira de agir e falar que chamou de eu burro: estava sempre lendo gibis e nunca livros, falando coisas pouco consistentes, fazendo comentários pueris e, principalmente, chegando a conclusões ingênuas ou incongruentes.

Claro que passou a ser subestimado por quase todos. E tirando proveito disto, venceu diversas situações e sobreviveu a atentados contra sua vida. Achei interessante a estratégia de alguém se proteger sob o manto da subestimação. E na história fica evidente como é fácil aproveitar-se de uma tendência que todos nós já temos e, com algumas poucas atitudes e palavras, alcançar as condições para ser subestimado.

Reproduzo um pequeno trecho que explica a ideia:

É como um cinto de segurança. Você usa não porque espera sofrer um acidente, mas porque nunca se sabe quem pode vir pela frente, descendo a colina na sua pista da estrada. Isto também vale para a estrada da vida, onde as pessoas derrapam para todo lado e dirigem na contramão.

Mal terminei o livro e me lembrei de um episódio da minha juventude. Vamos a ele.

Todo sábado e domingo nos reuníamos para jogar futebol. Era sempre pela manhã, mas acabava rendendo mais algumas horas, dedicadas aos comentários, resenhas e mesas-redondas. Aquilo era uma paixão de todos nós. Não falhava um fim de semana, fizesse sol ou chuva, calor ou frio, férias ou feriados. Nem namorada nova nos tirava do compromisso esportivo.

Eu tinha então uns 16 anos, mas para jogar não havia nenhum critério de idade. Toda a rapaziada, vizinhos e até visitantes, podiam participar da pelada, evento maior dos finais de semana naquela ocasião.

Próximo de onde morávamos havia um colégio que possuía um ótimo campo de terra, próprio para o chamado futebol society. Por generosidade, nos permitiam jogar nos dias em que não havia aulas.

O jogo oficial era disputado por dois times de 7 jogadores, mas para nós este critério não tinha rigidez: podiam ser dois times de 9 ou 10, um time de 7 contra outro de 6, ou qualquer combinação equilibrada. O importante era que ninguém ficasse de fora e todos pudessem dar vazão ao desejo de jogar sua pelada e vibrar com as jogadas e gols.

Claro que o tempo foi tratando de identificar os craques, os medianos e os chamados pernas-de-pau, os ruins de bola, aqueles que a gente dizia para ninguém marcar, pois a própria natureza já se encarregava disso…

Aos poucos, de tanto jogar, fomos nos convencendo de que praticávamos o verdadeiro futebol, semelhante ao que víamos nos estádios. Havia peladas memoráveis, gols espetaculares, viradas no último minuto, disputas de pênaltis, igualzinho ao que ocorria no nível profissional. Nós estávamos jogando um excelente futebol!

Até que um dia, um dos jogadores recebeu a visita de um primo da Paraíba, que o levou para participar da pelada. O rapaz foi apresentado como jogador profissional de um time da terceira divisão do campeonato paraibano. Muitos riram para dentro ao ouvir estas credenciais. Eu estava entre estes muitos, confesso.

Na hora de formar os times era disputado um par-ou-ímpar e os “capitães”, um por vez, iam escolhendo os jogadores. Primeiros os craques, claro, e depois os que sobravam em ordem decrescente. O tal primo foi o último, ou seja, não foi escolhido e sim acolhido…

Pois bem. Deu a saída e passaram a bola para o primo, talvez para conferir o tamanho da perna-de-pau. O sujeito partiu para o campo adversário com a bola dominada com maestria, driblou quatro ou cinco adversários e disparou um petardo no ângulo que quase furou a rede. Foi o primeiro gol, ainda no primeiro minuto do jogo. Ficamos atônitos!

Daí para frente só o primo jogava. Matava bola no peito, protegia com o corpo de um modo que ninguém sequer conseguia chegar perto, fazia firulas, dava lençóis, dribles por baixo das pernas e chegou a fazer embaixadas com a cabeça enquanto avançava contra o infeliz goleiro, que em cerca de 30 minutos já havia engolido 5 gols do paraibano da terceira divisão.

O sexto gol foi uma espetacular bicicleta e assim terminou o primeiro tempo. Não havia condição de continuar. A pelada foi encerrada e os cabisbaixos adversários, dentre os quais este que escreve, se retiraram em fúnebre silêncio.

Pagamos caro por subestimar alguém. Descobrimos que nós não sabíamos jogar futebol…

Ficou para mim a lição de que subestimar é sempre um olhar míope, superficial e inconsistente. Na realidade, subestimar o outro é superestimar a si mesmo. Sim, é uma balança de dois pratos, causa e efeito, funcionam juntas, são inseparáveis. Subestimamos o outro à sombra da nossa própria arrogância.

Vale também o contrário: quando sobrevalorizamos o outro estamos subestimando a nós mesmos. Superestimamos o outro à sombra da nossa baixa autoestima.

Ousei complementar uma frase do poeta Fabrício Carpinejar sobre o assunto:

Não subestime nem superestime ninguém. Trate aos outros e a si mesmo sempre com respeito. A vida é uma dança das cadeiras. Um dia sentado, outro de pé.

Antonio Carlos Sarmento

28 comentários em “SUBESTIMAR”

  1. Prezado Antonio Carlos:

    Pelo visto da sua narrativa, conclui-se que o goleiro não era você.

    Aliás, gostaria de saber qual a sua posição no time, como “craque” que deveria ser.

    Sds. e parabéns pela excelente matéria.

    Carlos Vieira Reis

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    1. Caro amigo Carlos,
      De fato não fui o goleiro.
      Costumava jogar na ponta esquerda, pois sou uma anomalia: destro no braço e canhoto na perna.
      Fui treinado assim por meu irmão mais velho, que me obrigava a chutar com a esquerda para ser um futuro jogador do Flamengo, que na época carecia de alguém nesta posição.
      Esta era a brincadeira entre nós…
      Obrigado por comentar, meu caro amigo.
      Desejo uma ótima semana a você e sua querida família!

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  2. Sua crônica é o grande presente das manhãs de Domingo e aproveito para compartilhar um pedacinho de um evento acontecido ontem.
    Estavam presentes em torno de 80 pessoas que compareceram para entender um pouco mais sobre Inteligência Emocional, que era o tema principal desse encontro beneficente para uma instituição que tem como objetivo dar dignidade a pessoas que viviam nas ruas, e querem de fato uma vida nova.
    Bem, sem que os participantes soubessem, haviam 5 desses acolhidos entre eles, que durante todo o encontro participaram de todas as atividades normalmente, interagiram, almoçaram juntos e etc…
    Ao final do encontro para surpresa geral eles foram apresentados.
    E aí foi o gol de bicicleta!
    Contaram os desafios de suas vidas e como se recuperaram e “saíram do lixo” (expressão usada por um deles) e optaram por uma nova vida.
    Portanto, como é dito sabiamente na sua crônica, não devemos subestimar ninguém e muito menos achar que somos mais ou menos que alguém.

    Acordei saboreando essa lição de ontem, e sua crônica veio para colocar a cereja nesse bolo.
    Obrigado meu irmão, eu precisava compartilhar esse aprendizado e você me deu a chave da porta.

    Beijos

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    1. Chico,
      Perfeita a ligação que você fez entre a crônica e o evento.
      Fico imaginando o quanto estes 5 homens foram subestimados ao longo de suas vidas…
      E depois mostraram esta força, coragem, determinação, perseverança, dignidade e demais virtudes que os levaram a superar tão grande adversidade. Fico pensando também na Irmã Elci, esta sim, avessa a subestimação de qualquer pessoa, já que se propõe exatamente a recuperar moradores de rua. Uma pessoa maravilhosa realizando uma obra divina!
      Obrigado por seu rico comentário, Chico. E parabéns pelo evento emocionante e transformador!
      Beijos

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  3. Oi querido amigo.
    Estou lendo sua crônica enquanto assisto a final de Roland Garros entre o Nadal e seu aluno Casper Ruud. Diferença da 12 anos entre os dois. Imagino a cabeça dos dois num jogo que sobretudo exige intensa concentração. Sua deliciosa crônica encaixou perfeitamente na minha analise pre jogo …. Obrigado amigo por mais esse presente e história do paraibano foi deliciosa. Grande abraço.

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    1. Querido amigo Nei,
      Sei do seu gosto por este esporte que tanto praticou ( me refiro ao tênis e não ao futebol, claro!).
      Legal que a crônica encaixou no jogo e não atrapalhou sua concentração e desfrute da partida.
      Mas como gosta de futebol também, o paraibano te agradou, não é?
      Abraços, meu amigo e manda um beijo para Santa Jaciara!

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  4. Bom dia sr. Sarmento.
    Brilhante como sempre.
    Agora um comentário pessoal:
    Certa feita o atual presidente do Brasil (Jair Messias Bolsonaro) foi ao programa do Danilo Gentili e o entrevistador lhe perguntou se ele era uma boa escolha para o Brasil. O ex-capitão do exército respondeu: “Em comparação com o Lula, pelo menos eu tenho o segundo grau.”
    A pergunta que não quer calar é: “Será que as pessoas que votaram nele, o subestimaram ou o superestimaram?”
    Grande abraço!
    Bion

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    1. Bion,
      Fico contente que tenha gostado e dedicado um pouco do seu tempo a comentar.
      De fato a sua pergunta é complexa e polêmica. Deixo-a em aberto para a avaliação de cada pessoa, segundo sua própria visão dos fatos.
      Talvez o resultado das próximas eleições possa trazer a resposta que você busca.
      Abraços, grato por comentar e, por favor, dispense o Senhor no tratamento para ficarmos mais próximos.
      Grande abraço!

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      1. Devido ao fato de eu ter cabelos brancos, muitos me tratam de senhor e sempre respondo: “Me chama de você pois o Senhor está no céu!”.
        Mas agradeço a sua gentileza a poder me referir a um ser humano igual a mim. É engraçado que nunca nos encontramos pessoalmente mas não há de faltar oportunidades, principalmente agora que estou morando em Jacarepaguá.
        Forte abraço!
        Bion

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  5. Perfeito, me fez lembrar de meu ex-genro, americano, obeso, que joga racquetball muito bem, um craque!!! Quando ia jogar com desconhecidos, os adversários não davam nada por ele que sempre ganhava de lavada, para surpresa dos adversários. Foi campeão estadual com toda a obesidade.
    Beijão

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    1. Amiga Lucia,
      O caso a que se refere reafirma que a nossa tendência a subestimar com base nas aparências ou em indicações vagas e superficiais. É o tal olhar míope…
      Obrigado por comentar, minha amiga!
      Beijos

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  6. Prezado Amigo, Muito boa noite, Mais uma sensacional crônica . . . Parabéns! Quero ressaltar que para mim o RESPEITO, a si mesmo e aos demais, é um dos maiores valores que temos. Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Gui, ao Jean e demais familiares.

    https://www.avast.com/sig-email?utm_medium=email&utm_source=link&utm_campaign=sig-email&utm_content=webmail Livre de vírus. http://www.avast.com https://www.avast.com/sig-email?utm_medium=email&utm_source=link&utm_campaign=sig-email&utm_content=webmail.

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    1. Meu querido amigo JH,
      Seu comentário me leva a pensar que subestimar é praticamente sinônimo de desrespeitar, não acha?
      Grato pela sua constante presença por aqui, meu amigo.
      Uma maravilhosa semana para você, Sueli, Luizinho, Junior, Catarina e toda a família!

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  7. Fico boba como você lembra de histórias de infância com uma riqueza de detalhes incrível!
    Muito importante essa msg. Subestimar tb é ser arrogante.

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  8. Sarmento. Volto ao Facebook e me deparo com sua crônica. Muito bom acompanhar o seu olhar e sensibilidade. Parabéns. Ah ! Esqueci de me apresentar. Fomos colegas na CBTU. Eduardo Cunha Telles. Ainda lembra ? Abraço fraterno.

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    1. Fala Eduardo Telles!
      Assim chamado para diferenciar do Dantas…
      Claro que me lembro!
      Espero que você esteja muito bem e fico contente de retomarmos o nosso contato.
      No site “cronicaseagudas.com” tem também o meu e-mail, ok?
      Grande abraço, amigo!

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  9. Fala meu querido amigo! Só agora consegui ler a bela crônica, me fez lembrar minha infância em Brás de Pina, era exatamente como vc descreveu. Só tinha um detalhe, quando aparecia um amigo de um jogador, nós rolávamos a bola pra ele e dependendo como ele tocava na bola, já sabíamos de suas qualidades ou não. Parabéns!!

    Enviado do meu iPhone

    >

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    1. Meu querido amigo Luiz Carlos,
      Você leu com 2 dias de atraso, mas saiba que vou lhe dar o prazo máximo de 10 anos para ler cada crônica. Nem um dia a mais, ok? hahaha
      Fico contente que a crônica tenha lhe despertado lembranças da infância.
      Muito obrigado por comentar, meu amigo!
      Grande abraço!

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  10. Parabenizo pela inteligência na condução e finalização do conteúdo na crônica.
    Obrigado meu jovem amigo e irmão Antônio Carlos.
    Obs. Entendo que a sua excelente memória é um processador iluminado e com forte poder de convencimento de boas teorias. Parabéns!

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    1. Meu querido amigo Osluzio,
      É sempre um prazer receber seu comentário.
      Fico feliz que esteja apreciando as crônicas e agradeço por dedicar tempo a comentar, o que é muito importante para mim.
      Um beijo em toda a família!

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  11. Querido primo,
    Seus temas são cativantes: procura , com destreza de espírito, os detalhes que aperfeiçoam o caráter. Foi comissionado do Céu para esse fim. Palmas para você!!!
    Nosso Criador nos legou um Manual de Instrução, com todas as regras de valorização e de apreço. Mas muitos o ignoram e, por isso, convivemos com menosprezo, desdém, arrogância e mais um sem fim de imperfeições que embaçam o olhar para o outro e para nós mesmos .
    Engano não cultivar a humildade e o respeito. A própria vida nos põe no lugar, como uma gangorra: ora eu subo e você desce, ora você se eleva e eu me abaixo.
    Beijos

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    1. Querida prima,
      Agradeço muito a cordialidade de seus comentários, que sinto serem sinceros.
      Ler suas palavras, sempre tão bem colocadas, muito me alegra. E receber suas palmas, confesso, até me envaidece…
      Obrigado pela sua presença constante nas leituras e comentários.
      Desejo um ótimo final de semana.
      Beijos!

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  12. Caro Amigo
    Gostei muito da crônica que trata de um tema que observei muito na vida, principalmente profissional, sem no entanto ler sobre o assunto. Agora sim, foi bem tratado e com um fecho que guardei junto dos meu melhores recortes: “ Não subestime nem superestime ninguém. Trate aos outros e a si mesmo sempre com respeito. A vida é uma dança das cadeiras. Um dia sentado, outro de pé.”
    Show amigo 👏

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