PADARIA

Nenhum local tem cheiro melhor do que uma padaria. Eu gostaria de morar bem em frente à uma. Assim, a cada fornada, seria invadido por aquele aroma delicioso e bastaria atravessar a rua para comprar um pão quentinho. Interessante como normalmente coisa boa tem cheiro bom — acho a cerveja uma exceção!

Infelizmente as padarias estão acabando, superadas pelos supermercados que as vencem pela praticidade e conveniência. Até já ouvi falar que um supermercado aqui do Rio de Janeiro injeta aroma de pão quente em seu sistema de ventilação para despertar apetites incontroláveis em seus clientes.

Não sei se é verdade, mas poderia ser, pois há hoje lojas de shopping que espalham perfumes em seu interior para atrair compradores. E funciona mesmo. A gente vai atrás de um cheirinho bom sem perceber, sem ter consciência. É a força do olfato que se impõe sobre os demais sentidos e até sobre outros desejos.

E foi numa padaria que se deu a história, que me foi contada por um amigo chamado Carlos Roberto. Ocorreu há muitos anos, mas não sei se hoje seria impossível de acontecer…

O estabelecimento ficava numa esquina, que é onde toda padaria gostaria de estar. Atendia uma zona residencial muito populosa e ali o movimento era intenso, com vendas quase incessantes. Claro, numa casa pode faltar móveis bonitos, toalhas sofisticadas, tapetes macios, mas o pão estará lá sobre a mesa seja ela redonda, retangular ou quadrada. Até o amor pode faltar, mas pão não!

Carlos Roberto acabara de passar num concurso para fiscal da vigilância sanitária e, inaugurando seu trabalho, o primeiro local a ser verificado foi exatamente a tal padaria.

Apresentou-se e pediu para ver as instalações internas, aquelas que nós, inocentes clientes, nunca visitamos. Mal entrou e teve um choque. O piso estava alagado e os funcionários circulavam pisando em tábuas que formavam caminhos precários interligando as áreas de trabalho.

— O que houve? — inquiriu Carlos Roberto.

— Estourou um cano — respondeu o gerente.

— De esgoto, não é?

— Estamos providenciando o reparo e logo estará resolvido.

— Certo. Enquanto isso o estabelecimento ficará interditado.

— Como? Eu disse que já estamos consertando.

— Sim. Quando acabarem o reparo e depois de higienizarem todo o ambiente, eu desinterdito.

— Mas assim o senhor vai prejudicar o nosso negócio.

— E assim como está, o pão que sai daqui prejudica muito mais gente.

Encerrou o assunto, mandou baixar as portas e lacrou a famosa padaria.

Prosseguiu com outras fiscalizações e concluiu orgulhoso o seu primeiro dia do importante trabalho de Fiscal. Chegou em casa satisfeito, com a sensação do dever cumprido.

Veio a hora do jantar e no meio de sua refeição, já quase às 9 da noite, tocou o telefone:

— Carlos Roberto, aqui é o Jairo, seu chefe.

— Boa noite. Pois não, pode falar Jairo — respondeu, estranhando a ligação.

— Você interditou uma padaria na parte da manhã?

— Sim. Estavam fazendo pão num ambiente totalmente contaminado, pois havia um vazamento de esgoto que alagou toda a área de trabalho.

— Mas eles se comprometeram comigo a consertar com a máxima urgência. Então amanhã de manhã você vai lá e desinterdita, ok?

— Chefe, só é possível voltar a funcionar depois de resolverem a contaminação. Só para limpeza do local vão levar um ou dois dias.

— Sim. Eles vão resolver tudo. Faça o que eu estou falando: vai lá amanhã e desinterdita a padaria.

— Não posso fazer isso — respondeu Carlos Roberto, com firmeza.

— Claro que pode. É só ir lá e retirar o lacre — rebateu Jairo, com dureza.

— Eu tinha entendido que meu trabalho é zelar pela saúde pública.

— Deixa de história. Vai lá e desinterdita a padaria. É uma ordem!

Carlos Roberto não hesitou:

— Não vou poder cumprir esta ordem. Amanhã estarei aí no escritório para conversarmos.

Jairo desligou sem sequer se despedir.

No dia seguinte, ao chegar ao escritório, Carlos Roberto encontrou em sua mesa uma resolução transferindo-o para um bairro longínquo, a quase duas horas de distância de onde morava. Estava assinada por Jairo.

Acabou de ler o documento e nem pestanejou: foi ao setor de recursos de humanos e pediu demissão no seu segundo dia de trabalho. Talvez a mais breve carreira de um funcionário público em toda a história. Perdeu o emprego, mas manteve a dignidade.

Carlos Roberto terminou de me contar a história citando uma frase famosa:

Quanto menos as pessoas souberem como se fazem as salsichas e as leis, melhor dormirão à noite.

Antonio Carlos Sarmento

27 comentários em “PADARIA”

  1. Por um lado, receio que seja uma história que continue actual porque há muito patrão para quem os principios não existem; e por outro, preciso e quero acreditar que esse tipo de dignidade ainda existe e não foi amordaçada pelo poder dos que a não têm…

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  2. Grande Meu Amigo, Muito bom dia, Não me canso de afirmar: “você é um gênio”. Comecei a ler e já me veio à mente algo sobre a padaria que tem ao lado do meu prédio, aromas fantásticos, eu prefiro cheiro mas, “aroma” é mais elegante, inundam o ambiente o dia todo e, os apartamentos ao redor, na hora em que sai uma fornada de pão quentinho. Contudo, o objeto da crônica, creio eu, foi uma excelente reflexão tão atemporal quanto verdadeira: “Quanto menos as pessoas souberem como se fazem as salsichas e as leis, melhor dormirão à noite”.

    Morei, na infância, em uma casa que ficava bem próxima a uma fábrica de linguiça, de fato, ver fazer salsichas é uma experiência horrenda. Não posso deixar de oferecer minhas homenagens ao seu Amigo Carlos Roberto, pela sua atitude, honesta e sensata, provando ser um homem probo. *Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Guilherme, ao Jean e demais familiares. *

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    1. Caríssimo amigo JH,
      Você é um privilegiado por ter uma boa padaria ao lado do seu prédio! O cheirinho de pão quente é mesmo irresistível.
      Quanto ao fabrico de salsichas e linguiças melhor nem comentar. Já estive numa fábrica de sardinhas em lata, mas também prefiro calar…
      Obrigado pelo seu comentário, meu constante incentivador.
      Lembranças à Sueli, Júnior, Luizinho e, claro, à princesa Catarina!
      Grande abraço!

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  3. Eu não sei qual o motivo do chefe do Carlos Roberto, mas no caso de padarias ( já tive uma), a fiscalização é bem rigorosa e a fiscalização não abre mão de todas as exigências.
    O que mais gostei foi do cheirinho do pão, aliás, vou até comprar um pãozinho para o café e o cheirinho de pão quente nos supermercados, vem dos dutos diretamente das padarias com a intencionalidade de atrair os clientes… não tem nada mais cheiroso que o pão.
    Acho que é o perfume que não existe discussão, é unanimidade na votação, todo mundo gosta.

    Cacau, suas crônicas são deliciosas e tem cheiro de pão quente.
    Bjs

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    1. Querido amigo Chico,
      É muita gentileza dizer que minhas crônicas têm cheiro de pão quente – um dos melhores elogios que já recebi… hahaha
      Você é um sortudo de ter a padaria Santa Marta quase na porta de casa. Desfrute!
      Abraços e uma maravilhosa semana!

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  4. Prezado Antonio Carlos:

    Parabéns pela sempre bem redigida crônica.

    As pessoas não precisam, somente, aprender como se fazem salsichas, têm que conhecer o nebuloso submundo que envolve certos setores da administração pública, infelizmente.

    Sds.

    Carlos Vieira Reis

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    1. Caro amigo Carlos,
      Mais uma vez agradeço seu infalível comentário.
      Espero que o amigo esteja muito bem de saúde e desejo uma semana leve e agradável à você, Leila, Carla e seu neto!
      Um grande abraço, meu caro amigo!

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  5. Como sempre, ótima crônica.
    Cheiros nos trazem lembranças.
    Gosto das boas lembranças associadas aos aromas perfumados, mas o cheiro ruim do Canal do Cunha, entre a Linha Vermelha e a Ilha do Fundão, me lembra do período universitário. Fedido, porém trazendo boas recordações.
    Adorei esse da padaria. Realmente é unânime, todos amam cheiro de pão assando.

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  6. Meu amigo, nós ja escutamos tantas histórias como essa, impregnada na nossa cultura, mas não deixo de me enojar. “Carteirada” é um esporte nacional no Brasil. “Jeitinho” é outro que atrasa nossa evolução como sociedade.
    Quando menino todo mundo tinha um “pistolão” conhecido que resolvia todas as coisas.
    Triste destino o do nosso povo…
    Bom domingo e que Deus nos abençoe e nos proteja, SEM PISTOLÃO…

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    1. Amigo Luigi,
      Tenho a esperança de que esta cultura à qual se referiu possa ser superada com bons exemplos e com a evolução do nosso estágio civilizatório.
      Mas serão precisos muitos anos…
      Um grande abraço, meu amigo Luigi e desejo que você e toda a sua família tenham uma excelente semana!
      Fiquem com Deus!

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  7. Muito boa crônica, que mostra uma das situações que envergonham todos nós. Envergonham o país! De bom também tentar lembrar o cheirinho de pão fresquinho!
    Sobre Marketing Olfativo mandei um recorte do assunto para seu e-mail, amigo!

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    1. Caro amigo Rodolpho,
      Muito interessante os conhecimentos sobre o “marketing olfativo”. Agradeço a oportunidade de aprender: nada como ter amigo professor!
      Obrigado pelo e-mail – é muito bom aprender!
      Um grande abraço à toda família e um beijo especial nos três netinhos!

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  8. Hummm….ao contrário do açougue,cheirinho de padaria é tudo de bom!!Lastimável a atitude de quem deveria ser um exemplo!Com certeza o Jairo mora bem longe dessa padaria e não se importa com o próximo!
    Um cheiro bom meu irmão!!

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    1. Minha irmã,
      Boa lembrança essa do cheiro do açougue, realmente nada agradável. Mais uma coisa boa que não tem cheiro bom…
      Um sabonete perfumado me faz lembrar de você, minha irmã!
      Beijocas e uma ótima semana em terras capixabas!

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  9. Muito triste, né? Mas o inverso tb tem muito: pessoas que implicam com qualquer coisa pra ganhar um por fora. Que bom que o Carlos Roberto teve dignidade (e coragem) de romper com isso.

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  10. Lembro da nossa padaria favorita, na Tijuca, bem na esquina da rua Antônio Basílio, de onde meu avô trazia sempre o pão quentinho, às 7h e às 18h.
    Você sempre faz reviver, por meio das crônicas, situações agradáveis e odores deliciosos.
    Que exemplo de honestidade e coragem do funcionário responsável pela saúde pública!
    Gostaria de imaginar que todos os famosos restaurantes dos shoppings primassem pela higienizaçao de suas cozinhas. Tive informações que não é bem assim…Que tipo de agentes sanitários temos hoje?
    O jeito é nos contentarmos com o cheirinho do pão…
    Um grande abraço.

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    1. Querida Helena,
      Que beleza a crônica ter trazido a memória do seu avô. São esses efeitos da leitura que me atraem e encantam.
      Muito obrigado pelo seu comentário, sempre muito agradável.
      Desejo que tenha uma semana tranquila e alegre. Nos aguarde para um cafezinho, tá?

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  11. Querido Cacau,
    Começar a crônica com o irresistível aroma de pão quentinho foi muito bem- vindo.
    Já foi dito que o olfato é o sentido que mais proporciona memórias afetivas ao ser humano
    Imaginei que teríamos uma história leve e aconchegante, como sugere uma deliciosa fornada .
    Mas logo somos confrontados com os bastidores de nossa realidade e como ficamos? desapontados com a falta de escrúpulos; assustados com a banalização de valores; desamparados com a falta de respeito.
    Então, mesmo encantados com o perfume da padaria, podemos aperfeiçoar o velho ditado:
    O que olhos não vêem, o coraçao sente.

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    1. Sim, minha prima,
      Neste caso, o que os olhos não veem, o coração sente e o corpo também…
      Curioso que eu tinha a ideia de fazer uma crônica só sobre o cheirinho de pão. acho que seria mais do seu agrado. Porém, me veio a lembrança desta história verídica na hora em que estava escrevendo e aí mudei o rumo…
      Mas escrever é assim, um processo um tanto incontrolável.
      Beijos e obrigado por comentar!

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