O POÇO

Há pouco tempo mantive entendimentos com uma pessoa que me prestava um serviço. Foram meses de conversas, esclarecimentos e solicitações, uma intensa troca de mensagens de voz e texto.

Tudo ia bem, até que surgiu uma diferença de pontos de vista mais difícil de conciliar. O sujeito queria que eu confiasse nele, delegasse um aspecto do trabalho e não quisesse saber de muitos detalhes. O clássico “deixa comigo”, com o qual não concordei.

Até que, lá pelas tantas, ele foi para o lado pessoal e enviou a seguinte mensagem:

— É interessante. Você aparenta ser uma pessoa muito insegura.

Como normalmente ocorre, o revide veio a cavalo enquanto a ponderação se arrastava, de bengala e mancando. Mas resisti ao impulso. Respirei e fui beber um copo d’água antes de responder.

Uma pausa muitas vezes muda o nosso estado de espírito. Logo me lembrei de quantas etapas já havíamos superado, quantos avanços alcançados e só agora havia surgido este pequeno tropeço. O prato da balança pesava muito mais para o lado positivo.

Não sei exatamente como aconteceu, mas alguns minutos depois, mandei a seguinte mensagem:

— Deixo de responder por uma questão de gentileza.

Aquilo me fez bem. Eu gostaria de sempre conseguir agir assim. Mas a gente aprendeu que erro pede punição, represália, refutação, réplica à altura ou até um tom acima. O fato é que, recomposto pela pequena trégua, mandei a mensagem e fiquei na expectativa.

Uns cinco minutos depois chegou a resposta. Ele mudou de rumo e, sem precisar se desculpar, me informou tudo que eu desejava. Acho que percebeu o erro, corrigiu o que foi possível e assim prosseguimos bem até o final do trabalho. A gentileza superou aquilo que os argumentos não conseguiram.

Mas o que me deixou pensativo é que, até agora, quando me lembro deste episódio, o erro por ele cometido me vem logo à mente. Recordo tudo que foi feito e o bom resultado alcançado, mas a lembrança do tropeço sempre aparece para fazer uma sombra na imagem daquela pessoa. É incrível como, mesmo um erro irrelevante, acaba sendo perseverante.

Talvez seja a nossa excessiva intolerância com as falhas dos outros. Claro, não me refiro a erros gravíssimos, excepcionais, mas aos erros nossos de cada dia. Estes requerem um perdão fácil, mas o nosso impulso é oferecer repreensão. A gente devia tolerar, ou pelo menos tourear, fazer uma esquiva, deixar passar. Mas não, colocamos ênfase, mantemos o erro vivo, dando-lhe fôlego, fazendo-o sobreviver e tornando-o presente na lembrança.

É como se tivéssemos dificuldade em reconhecer que somos todos falhos, imperfeitos e, portanto, os equívocos são frequentes e inevitáveis. Fazem parte da vida e estão presentes em qualquer relação humana.

Esquecemos isso e exigimos perfeição. Muitas vezes somos rigorosos uns com os outros e ao invés de passar por cima das falhas e torná-las menos importantes, preferimos corrigir, confrontar, retrucar e depois ficar remoendo eternamente, mesmo as mais leves escorregadas.

Enfim, erramos ao crucificar quem erra.

Nossa intransigência com o erro vai fazendo com que ele acabe se transformando em mágoa. E mágoa é como água: ocupa todo o espaço disponível.

Ao invés de verter esta água para o poço do esquecimento preferimos o poço do ressentimento. Quando este transborda, leva de enxurrada pessoas do nosso afeto, relações que poderiam ser duradouras e até amizades duramente conquistadas. É assim que uma frase sobre política pode macular uma amizade, um pequeno defeito pode resultar num casamento desfeito.

Por este caminho estamos dando razão a Sartre quando disse: O inferno são os outros!

É possível que somente a maturidade e o amor sejam capazes de nos levar para outra direção e perceber que a pessoa é mais importante que seus erros. Só então poderemos completar a frase:

O inferno são os outros. O paraíso também!

Antonio Carlos Sarmento

30 comentários em “O POÇO”

  1. Verdade. O ideal seria termos esse pensamento e comportamento.
    Parabéns maus uma vez uma crônica para refletirmos sobre nossos impulsos. Muito boa. Parabéns. Bjos

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  2. Amigo Antônio Carlos: Concordo em gênero, número e grau com a mensagem passada em seu belíssimo artigo. As vezes, certos erros, por mais insignificantes que sejam, se sobressaem às muitas qualidades de um ser humano.
    Sds.
    Carlos Vieira Reis.

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  3. Essa sua crônica, deveria ser a nossa reflexão diária, por muitas vezes acabamos fazendo um julgamento que nos leva a atitudes não condizentes com o que trazemos na alma.
    Para mim, tudo é una questão do significado, todos temos significados diferentes de uma mesma situação e não entendemos que o significado do outro vem do que o outro passou nos aprendizados que a vida nos traz… e cada um trouxe desde a infância, desde o berço.
    Se todos significassem o amor e Deus da mesma forma, a palavra inferno não existiria só existiria o céu, mas como não é dessa forma, nós temos que construir o céu que significamos fazendo a parte que nos cabe e com compaixão deixemos que os que assim não o signifiquem vivam o inferno, que vem pelo que cada um significa dessa linda vida … alguém muito sábio e conhecido nos diz: ” Bobagem! Fica quieto!”.

    Beijos

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    1. Querido amigo Chico,
      Muito bem lembrada a sabedoria do nosso Frei Dino: “Que bobagem. Fica quieto!”
      Quanta dificuldade temos de deixar pra lá, esquecer, não com mágoa, mas com tolerância e compreensão.
      É preciso mesmo que reflitamos sobre isso e façamos um esforço constante: menos rigor, mais amor!
      Obrigado por comentar e uma ótima semana pra você, Helen e Pedrão!

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  4. É isso mesmo. Concordo que temos que ser tolerantes e pensar bem antes de responder qualquer assunto divergente da nossa forma de agir.
    Por isso a importância da humildade, paciência, tolerância e amor ao próximo na nossa oração diária.
    Obrigado pela ótima crônica e uma abençoada semana para você, Sônia e demais familiares.
    Abraços.

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    1. Amigo Newton,
      Você acrescenta a humildade, coisa que talvez tenha ficado faltando na crônica…
      Lendo seu comentário, ao citar a oração diária me veio a lembrança de que no Pai Nosso, já pedimos esta tolerância e amor: “assim como nós perdoamos aos que nos tenham ofendido”. É a sabedoria milenar!
      Obrigado por comentar, meu caro amigo.
      Uma ótima semana para você e Nuri!

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  5. Caiu como uma luva nesse momento….
    “Deixo de responder por uma questão de gentileza ”
    Traduzindo a força do silêncio e o quanto ele comunica!!
    Até porque em algumas situações faltam palavras e sobram emoções!
    Muito bom 👍

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  6. A maturidade, quando acompanhada da sabedoria, nos indica o rumo certo das decisões.
    Você tocou em uma situação muito comum, de modo adimirável! Vou continuar divulgando suas crônicas, agora também para alguns jovens que amo e que não controlam a impulsividade. Quem sabe ficarão mais sensatos?
    De novo, obrigada pelo livro, ele é meu companheiro de todas as tardes. Vou saboreando cada página, sempre descobrindo algo novo.
    Deixo um grande abraço ao casal.

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    1. Querida amiga Helena,
      Fico contente que tenha apreciado e até enviado aos seus queridos.
      Também me agrada saber que vem descobrindo coisas novas no livro. De fato, eu acho que o texto no papel, inserido em um livro, ganha novas e melhores características.
      Muito obrigado por comentar e desejo uma ótima semana!
      Um afetuoso abraço, meu e da Sonia.

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  7. Boa tarde meu amigo! Realmente temos 2 grandes lições a tirar da crônica:
    1- o travesseiro é um ótimo conselheiro, dizia meu pai;
    2- a maturidade é o que de melhor a idade e aprendizagem nos da na vida. (Digo isto mas tenho uma dificuldade imensa em não responder no calor do momento… kkkk)
    Bom domingo e que Deus abençoe voce e sua família.

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    1. Amigo Luigi,
      Compartilho da sua dificuldade em não responder na hora, ainda no calor do momento.
      Precisamos estar atentos para fazermos como seu pai e antes colocarmos a cabeça no travesseiro…
      Muito obrigado por comentar e que tenham uma ótima semana!!

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  8. Caro Amigo Sarmento, Muito boa tarde, Quanta alegria me trouxe ao coração a leitura desta crônica de hoje. Venho, há algum tempo, me dedicando a um estudo que aborda entre outros aspectos a deficiência da Intolerância que é um pensamento que acomete a muitos de nós. Além das diversas afirmações, em meu entendimento assertivas, a sua conclusão é exemplar: “Enfim, erramos ao crucificar quem erra”. Não canso de parabenizá-lo e muito me honra tê-lo como Amigo. Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Jean, ao Guilherme e demais familiares. PS: Lhe convido a ler este livro que estou enviando em aanexo, especificamente, da página 132 a 134.

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    1. Meu querido amigo JH,
      A honra é toda minha em ter um amigo como você, JH.
      Fico feliz de saber que a crônica não conflitou com os seus estudos.
      E, como sempre, me interessa sempre saber o ponto que lhe chamou a atenção. No caso da frase que citou, eu também achei expressiva, tanto que a coloquei em um parágrafo de uma frase só.
      Obrigado por seu retorno, meu amigo!
      Uma maravilhosa semana para você, Sueli, Junior, Luizinho e um beijo especial para a Catarina!

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  9. Caro amigo Antonio Carlos
    Essa foi uma crônica maravilhosa. Daquelas que temos que arquivar perto do nosso ❤️
    Quem já não passou por momentos semelhantes, com o agravante do temperamento.
    “Mágoa é como água: ocupa todo o espaço disponível.Ao invés de verter esta água para o poço do esquecimento preferimos o poço do ressentimento. Quando este transborda, leva de enxurrada pessoas do nosso afeto, relações que poderiam ser duradouras e até amizades duramente conquistadas.
    O inferno são os outros. O paraíso também!”
    A crônica está devidamente arquivada, com o sublinhado acima! Forte abraço irmão!

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    1. Meu amigo Rodolpho,
      Não avalia como fico contente com seu comentário.
      Aprecio muito quando o leitor conta que passagens mais gostou. E você fez isso em detalhes, evidenciando que parte do texto tocou o seu coração.
      Muito obrigado!
      Uma ótima semana, meu irmão.
      Grande abraço!

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  10. Meu querido amigo!

    Parabéns pela brilhante crônica.

    Tudo nela reflete aos nossos impulsos quase sempre incontroláveis.

    Parabéns, por ter ido beber a abençoada água.

    Que Deus continue te iluminando.

    Uma semana abençoada.

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    Enviado do meu iPhone

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  11. Meu prezado amigo e jovem cronista, Antonio Carlos.

    A síntese de texto muito bem finalizado resume em minha visão nesse transcrito parágrafo:
    (sic)

    “É como se tivéssemos dificuldade em reconhecer que somos todos falhos, imperfeitos e, portanto, os equívocos são frequentes e inevitáveis. Fazem parte da vida e estão presentes em qualquer relação humana.”

    Em todos os lugares por onde passamos, para algum de nós essa lição não é observada e não é fruto de aprendizado .

    Parabéns pelo texto.

    Oslúzio Félix Fonseca

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    1. Meu querido amigo Oslúzio,
      Como aprecio quando alguém destaca algo que mais lhe chamou a atenção no texto. E agradeço por você ter feito isto.
      É quando a leitura vai lá no interior da pessoa e toca seus pensamentos e reflexões. Aí vale a pena o texto.
      Obrigado por tanta generosidade, meu irmão!
      Beijos em todos desta maravilhosa família!

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