DOENÇA BENIGNA

A doença que eu mais gosto é inflamação da garganta. Acabei de escrever isso e já me arrependi. Claro, não há como se gostar de uma doença. Mas vou tentar explicar por que tenho boas lembranças deste mal, que felizmente pouco me acomete.

Tive uma forte dor de garganta quando eu tinha uns 25 anos. Mal conseguia engolir ou comer. A moléstia durou uns 15 dias e implicou em muitas privações: pouca comida, quase nada de bebidas e zero de cigarro. Para quem fumava um maço por dia foi uma mudança radical.

Na época, eu ainda namorava minha mulher e ela também fumava, aliás, me superava neste quesito. Era uma chaminé ainda mais fumacenta…

Continuamos nos encontrando, mas aqueles dias não se pode chamar de namoro. Pouca conversa, já que eu tinha muita dificuldade para falar e também foi preciso manter pouco contato, digamos assim, pois eu receava contaminá-la com aquela praga…

Sem que eu precisasse pedir, quando estávamos juntos, ela também não fumava para não me incomodar e nem despertar em mim a vontade adormecida de tragar um cigarrinho. Acho que foi a primeira vez que pensei em casar com ela.

Os dias passaram e a enfermidade desapareceu de súbito. Acordei uma manhã e nada mais sentia. Foquei então nas consequências: eu estava um pouco mais esbelto pela pouca alimentação e abstinência alcoólica, além de mais saudável pela trégua dada aos pulmões, que há anos não tinham o sossego de receber apenas ar puro para processar.

Naquele dia, cheguei ao encontro para namorar com duas ideias em mente: uma era recuperar todo aquele tempo de pouco contato… A outra, revelei de antemão à minha namorada:

—  Fiquei 15 dias sem fumar e não senti falta. Vou deixar o cigarro.

Ela nem pestanejou:

— Então vou parar também. Pensei a mesma coisa e vai ser melhor fazermos isso juntos. Ao invés de atrapalhar com a tentação, um vai dar força ao outro.

Tem como não se apaixonar por uma mulher assim? Casamos dois anos depois.

Dizem que as condutas e as doenças são contagiosas. Nós ficamos só com a primeira e atualmente faz mais de 40 anos que não colocamos um cigarro na boca.

Aquela dor de garganta nos livrou de enfisema, eczema, eritema, alfazema, além de esquizofrenia, taquicardia, embolia, epilepsia e até estria. Nem sei mais quantas doenças, mas quando a gente olha um maço de cigarros hoje, tem lá a antevisão do inferno. Fotos aterrorizantes com legendas simpáticas, dizendo: Fumar causa doenças e mata! É onde estaríamos não fosse aquela abençoada dor de garganta.

Acho que não é comum uma doença evitar milhares de outras. Menos comum ainda, a doença de um curar o outro, no caso, a outra.

Neste ponto talvez o leitor compreenda melhor a primeira frase desta crônica. Nem sempre a dor é ruim.

Lembro ainda que, muitos anos depois, fui acometido novamente pela mesma moléstia. Tinha iguais características e novamente fiquei completamente afônico. Não conseguia sequer emitir um resmungo. Mas como tinha disposição e energia, já que não havia outros sintomas, permaneci trabalhando normalmente.

Foi muito interessante. Um retiro de silêncio em meio à uma saraivada de solicitações, reuniões e problemas a resolver. Pedi à secretária para avisar a todos do meu estado e procurar adiar os contatos pessoais ou por telefone.

Ali pelo segundo dia, entrou na sala a minha principal assessora, uma pessoa que muito me ajudava na empresa, praticamente o meu braço direito, a quem eu admirava e de quem muito precisava. Para minha surpresa, ela vinha me solicitar para trabalhar em outra área da empresa devido a algumas insatisfações. Eu não sabia o que dizer, mas graças à oportuna dor de garganta, pude me defender com o silêncio. Respondi com o indicador apontando para a garganta e encerramos ali a conversa, aliás, o monólogo.

Fiquei preocupado com o assunto, pois seria uma perda e aumentaria o fogo da ebulição em que eu vivia. Passaram-se os dias, fiquei curado e ela também. Aparentemente refletiu melhor e permanecemos trabalhando muitos anos juntos, sem nenhum outro contratempo. Descobri ali que a dor de garganta de um pode trazer reflexão e calma a outro, no caso, a outra…

Concluo confessando ao leitor que não fico desejando que a tal dor de garganta volte a me visitar, mas se ocorrer, será bem recebida e terei elevadas expectativas…

É como diz um antigo ditado popular, que ouso complementar:

Há males que vem para bem. E dores também…

Antonio Carlos Sarmento

25 comentários em “DOENÇA BENIGNA”

  1. Caro Amigo Sarmento, Muito bom dia. Que alegria ter a oportunidade de ler você, nas manhãs de domingo. Cada crônica me traz recordações muito importantes. Eu já não fumo há uns 45 anos e, a minha mulher sempre fumou, ou seja, por mais de 50 anos. Eis que com o advento dessa tal de Covid, em abril de 2020, parece que fomos infectados e, com os tratamentos adequados, ficamos refeitos em 05 cinco dias e, o mais importante de tudo, ela deixou de fumar o seu maço de cigarros diário. Eu entendo que não tenha sido uma doença benigna, o que fez a minha mulher deixar de fumar e, sim, o enfrentamento de uma grande adversidade como foi a Covid. Enfim, mais uma vez, com muita alegria, lhe rendo minhas homenagens pela apurada sensibilidade em abordar qualquer tema. Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Jean, ao Guilherme e demais familiares.

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    1. Querido amigo JH,
      O caso que você conta da Sueli é um paralelo perfeito à crônica. Não posso dizer que foi bom ela ter contraído a Covid, mas que foi ótimo aproveitar o episódio e abandonar o cigarro. O típico mal que acabou vindo para o bem.
      Obrigado mais uma vez por suas gentis palavras de todos os domingos. Só ficou uma curiosidade: o que fez o amigo acordar antes das 7h em pleno domingo? hahahaha
      Por favor, dê os parabéns à Sueli pela atitude de deixar o cigarro, manda um afetuoso abraço ao Luizinho e Júnior e, claro, um beijo na rainha Catarina!
      Abração meu amigo!

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  2. Muito boa crônica, as dores trazem aprendizados sejam de que modo for, aliás, o aprendizado em sua maioria vem pelas dores
    No seu casado e da Sonia, foi muito mais que isso, no caso a dor física os levou ao paraíso. Além do benefício de largar o venenoso cigarro os levou ao altar .
    E aí vem os desdobramentos que só o amor é capaz de realizar.

    E sua crônica, me fez viajar no tempo.
    No meu caso, aos 12 anos, as inflamações constantes na garganta, fez com que a minha mãe optasse pela cirurgia. E o fato mais interessante, eu estava ansioso para fazer a cirurgia…pois, o pós operatório era “banhado” a sorvete rsrsss e eu sempre adorei sorvete rsrs

    Muito bom começar o Domingo com sua crônica, assim como sorvete… É uma delícia!

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    1. Chico,
      Saber que a crônica te fez lembrar da infância e de sua querida mãe já fez valer a pena a publicação.
      Também passei pela intervenção na garganta quando pequeno e me deliciei com a overdose de sorvete, paixão de toda criança.
      Obrigado por comentar, meu irmão!
      Beijos a todos e uma ótima semana.

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  3. Querido amigo, bom dia, só você mesmo para fazer esta crônica! Lembrar das “dores de garganta” para escrever estas divertidas palavras. Parabéns, ri muito lendo a de hoje! Não posso imaginar a minha querida e doce Sônia fumando que nem um Fumachu! Para mim fica muito estranho! De qualquer maneira os dois hoje são “ex-fumantes”! Que bom! Abraços e fiquem com Deus.

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    1. Amigo Aylton,
      Você riu com a minha crônica e eu com o seu divertido comentário. Mostrei para a Sonia que também ficou rindo com a citação do Fumachu!
      Obrigado por comentar, meu amigo! Já estou em Portugal e curtindo o friozinho deste final de inverno.
      Um grande abraço e espero que a Regínia tenha melhorado da perna.
      Uma ótima semana para vocês!

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    1. Fefe,
      Devo confessar que na realidade não houve mérito na nossa decisão, já que não exigiu esforço. Foi quase natural e felizmente nos livramos bem cedo do vício do cigarro e dos males que poderia nos causar.
      Obrigado por comentar!
      Lembranças ao Marcos e beijos para você, Tom e Marina!
      Espero que estejam muito bem e desejo uma ótima semana!

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  4. Meu amigo, o vício do cigarro é combatido de diversas formas. Quando minha filha veio morar nos Estados Unidos, fumava mas, se o fizesse dentro de casa, o detector de fumaça disparava e ela passou a fumar do lado de fora. Bastou chegar o primeiro inverno que fumar lá fora, enfrentando frio e neve passou a ser mais desagradável que o prazer que sentia com o cigarro. Parou e nunca mais voltou. Beijão

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    1. Amiga Lucia,
      Bendito detector de fumaça! É ótimo quando o parar de fumar pode acontecer ao natural, por esmorecimento da vontade devido a outros fatores. Obrigado por compartilhar a história.
      Não é para ficar com inveja, mas aqui em Portugal estamos a 11 graus, quentinho se comparado com as temperaturas que você está enfrentando…
      Beijos saudosos!

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  5. A vida precisa ser constantemente avaliada e é importante rever os caminhos. Como você bem diz, os tropeços servem para mudar os rumos.
    No seu jeito leve, tocou num aspecto que acho importante: somos responsáveis por nossas decisões, tanto as que geram alegria, quanto as que geram problemas.
    Mais uma vez, parabéns! Sempre aguardo os domingos, na certeza de boa leitura.
    Gosto de curtir suas crônicas quando está tudo em silêncio, a imaginação alça voos…
    Um grande abraço.

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    1. Querida Helena,
      Como sempre você acrescenta outros aspectos importantes: somos responsáveis por nossas decisões e as consequências delas, boas ou más, recaem sobre nós mesmos. Às vezes nos esquecemos disso e ficamos à procura de culpados…
      Helena, fico feliz em fazer parte dos seus domingos. Você aguarda uma boa leitura e eu aguardo seus agradáveis e ricos comentários.
      Uma maravilhosa semana e um carinhoso abraço lusitano!

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  6. Prezado Antonio Carlos:

    Você foi premiado por Deus em ajudá-lo a se livrar do terrível cigarro.

    Nunca fumei, não sei se cigarro tem gosto de hortelã ou chocolate … Também, pudera, perdi meu pai quando tinha 17 anos e ele 60 anos, devido à infelicidade de ser um fumante inveterado. Pitava 04 maços de cigarros sem filtro por dia, o que lhe provocou um câncer no pulmão que se transformou em metástase, tirando-lhe a vida.

    Muito ilustrativa a sua crônica, aliás, como sempre.

    Sds. do amigo e fiel leitor,

    Carlos Vieira Reis

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    1. Amigo Carlos,
      Felizmente você ficou fora desta prática que teve consequências tão ruins para o seu pai. Nem posso imaginar uma pessoa fumar 4 maços por dia…
      Obrigado por compartilhar e comentar, meu amigo.
      Uma ótima semana e receba o meu abraço!

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  7. Caro Sarmento, se ha um problema do qual a vida me poupou foi a tal dor de garganta. Não me lembro de haver tido. Creio que algumas doenças nos escolhem para viver juntos… Mas, dor de cabeça, ja tive em todos os idiomas! E conheço e invejo, pessoas que NUNCA tiveram essa dor. Mas sempre disse a eles que só sabe que delícia é o alivio quando essa dor se vai. Creio que remoçava de alegria, quando ela se ia. Bem, vou parando por aqui porque se começarmos a falar de doenças, iremos parecer velhos na nossa flor da pós adolescência… kkkkkk. Boa semana e que Deus te abençoe e te de SAÚDE.

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    1. Caro amigo Luigi,
      A vida te poupou a dor de garganta e poupou-me a dor de cabeça: quase nunca experimentei este mal.
      Mas como você bem disse não falemos de doenças, pois é papo para velhos, que não é o nosso caso…
      Obrigado por comentar, meu amigo e desejo uma ótima semana a você e sua família!

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  8. Fala meu querido amigo!
    Ótima crônica, aliás ótimo exemplo, mesmo vindo de uma dor de garganta, que é insuportável.
    Também faço parte do time que a “doença” fez com que o juízo e a vergonha dessem lugar a sanidade. Tive um daqueles resfriados brabo e pensei: por que não largar esse vicio maldito, agora que não consigo fumar o meu delicioso Capri (aquele do maço vermelho). Lembro que estavam à minha frente: um pacote( fumante que se preza não compra maço), isqueiro japonês, presente de um mui amigo e um cinzeiro que parecia um cristal, olhei e disse, CHEGA!! não fumo mais.
    Pude então saborear o prazer das caminhadas e depois nas inúmeras meias maratonas e maratonas pelo Brasil e mundo afora, respirando com a plenitude dos pulmões ávidos por um ar puro.
    Obrigado por me fazer lembrar uma vitória desafiadora.
    Parabéns Parceirinho.
    Deus te abençoe

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    1. Meu queridíssimo amigo Luiz Carlos,
      A crônica me permitiu saber de uma história sua que ainda não conhecia. Seu resfriado foi o equivalente da minha dor de garganta.
      E felizmente mudou a sua vida e fez nascer em você um atleta de maratona, cheio de vida e saúde!
      Parabéns por esta vitória e cumprimento também o resfriado… hahahaha
      Obrigado por comentar e compartilhar um pouco da sua vida, meu querido amigo.
      Beijos em todos da sua amada família!

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  9. Olá meu querido amigo!
    Ótima crônica, como sempre.
    Eu e Nurimar tivemos algo parecido e paramos de fumar há 35 anos. Ela era uma chaminé e fumava demais. Nunca mais tocamos em um cigarro, graças a Deus.
    Abraços e boa semana!

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