PAPO DE BOTEQUIM

O comportamento humano é suscetível ao ambiente. E vice versa. Recentemente li um livro no qual o autor descrevia uma pessoa pela sala de sua casa. Indicava que os sofás eram cobertos por plásticos, as madeiras brilhavam e uma cristaleira, sem nenhuma marca de dedos, exibia louças e cristais arrumados com rigor geométrico, assim como os demais objetos da sala. Os porta-retratos fazendo ângulo uns com os outros e tudo extremamente limpo. Curioso o quanto o ambiente da própria casa já diz sobre a pessoa.

Lembrei da tão comum desarrumação do quarto dos adolescentes, que possivelmente, expressam no espaço físico sua confusão de ideias e planos, típicos desta fase da vida. E da mesa de trabalho de cada um no escritório, tão reveladora de algumas características comportamentais.

Muitas vezes não nos damos conta, mas o ambiente tem sempre impacto no nosso comportamento. Imagine uma pessoa comer um filé mignon num restaurante aconchegante, com toalhas brancas e cheirosas, iluminação equilibrada, um piano tocando ao fundo e todo mundo falando baixo. Agora a mesma pessoa, no mesmo horário, com o mesmo apetite, as mesmas companhias, comendo o mesmo filé mignon numa churrascaria rodízio lotada. A pessoa é outra, as conversas são outras e o filé é outro: o ambiente transformou todos.

Não considerar o ambiente pode levar a gafes e até frustrações. Feita esta introdução, passo a contar o caso dos dois amigos, que todas as quintas-feiras se encontravam para um chopp após o expediente.

– Fala Machadão! Já tomei um chopp enquanto te esperava. – exclamou Siqueira, mostrando a tulipa vazia. Estava alegre por ver o amigo.

– Pois é. Eu quase não vinha hoje… – disse o outro, com desânimo.

– Que isso? Nosso chopinho é sagrado, meu irmão. Ô Toninho, traz mais dois chopps aí! – comandou ao garçom.

– Para mim, não. Vou querer uma água mineral com gás. – interrompeu Machado.

– Que isso? Está doente? Ou é muito trabalho?

– Muito peso.

– Não entendi. Peso de que?

– Já está bêbado com apenas um chopp, Siqueira? Meu peso, claro. Estou muito gordo.

O amigo examinou a figura de Machado e de fato não podia discordar.

– Está não, sempre foi. – gracejou.

Machado olhou-o com um misto de tristeza e raiva. Nem precisou reagir, pois o amigo percebeu que havia sido infeliz na brincadeira.

– Desculpe. Mas fala então: você acha que este nosso chopp semanal é a causa de você estar se sentindo gordo? Vai lá, Machado. Se abre. Nós somos amigos.

– Não é a única causa, mas colabora. Cheguei à conclusão que tenho que cortar muitas coisas e este chopp contigo é uma delas. Eu vou continuar vindo para a gente conversar, mas não vou tomar chopp nem comer estas porcarias. O problema não é que estou gordo: é que continuo engordando. Olha só o meu cinto!

O cinto, quase desaparecido abaixo da barriga, estava afivelado no último buraco e parecia apertado. Os buracos anteriores estavam esgarçados, formando setas que apontavam para o buraco seguinte, rastro da progressão da cintura de Machado.

– Você ficou assim porque o cinto chegou no último furo. Compra outro cinto maior e vai ser feliz, Machado! – brincou, novamente de modo infeliz.

Nesta hora, Toninho que havia entendido errado, chegou com dois chopps e uma água mineral. Siqueira simplificou:

– Tudo bem. Deixa aqui os dois. A água é dele.

Machado tomou um desalentado gole de água enquanto observava as tulipas brilhando como colunas douradas em frente ao Siqueira. Continuaram a conversa:

– Não é questão do cinto, claro. É que estou muito gordo mesmo. Até a cadeira do trabalho está apertada e rangendo. O problema da gordura é que ela vai contigo aonde você for, não dá descanso, interfere em tudo. Faz-se presente o tempo todo, em qualquer atividade, até dormindo. Tenho dormido muito mal. Você é magro e não vai conseguir entender.

– Entendo sim. Nunca passei por isso, mas consigo imaginar. Continue aí, Machado. Então você decidiu fazer dieta e começou agora, aqui no boteco?

– É. Tenho que começar em algum momento. Que seja aqui e agora!

Toninho passou com uma bandeja de pastéis e alguns chopps. O olhar de Machado acompanhou involuntariamente, vidrado…

– Não pode ser amanhã de manhã? Ou segunda-feira, o dia mundial da dieta?

– Não. Acha que eu vou enganar a mim mesmo? Tenho que começar agora, imediatamente! Preciso ter força de vontade.

– Ok. Cada um sabe de si. Como diz o ditado: o corcunda sabe como se deita…

– Me diz uma coisa, Siqueira: como você consegue ficar magro tomando tanto chopp e comendo à vontade? – questionou Machado, procurando disfarçar a imensa inveja que sentia.

– Isso eu não sei. Mas dieta eu sei que não funciona.

– Claro que funciona. É só comer e beber menos que emagrece.

Siqueira, já tendo sido infeliz nos comentários por duas vezes, resolveu ser mais comedido, mas na realidade achava que iniciar dieta num botequim era tão incabível quanto contar piada em velório. Não era a atitude em si, mas o local…

Toninho passava agora com uma bandeja de casquinhas de siri e rissoles, além de vários chopps. O olhar de Machado acompanhou involuntariamente, vidrado…

Siqueira falou alguma coisa, mas Machado, perturbado pelo que via, não conseguiu entender.

A esta altura a animação no boteco crescia, fermentada pelos chopps e aperitivos. O ambiente estava cada vez mais animado e das mesas, as risadas e conversas alegres explodiam como fogos de artifício. Papos de botequim…

– O que você disse?

– Aonde você estava, Machado?

– Fala. Não enche o saco. – disse ele, tomando o copo d’água inteiro para engolir a frustração. Estava ali há uns 40 minutos e sentia-se cada vez mais deslocado, fora do contexto, com aquele ridículo copo d’água na sua frente. Parecia alguém de bermudas numa festa a rigor.

– Eu disse que dieta quase nunca funciona. É uma viagem de ida e volta: ladeira acima para ir e ladeira abaixo para voltar. A pessoa faz um esforço enorme na ida, mantém as restrições e pelo menos uma parte da gordura vai embora. Mas como ninguém consegue viver assim, é preciso retomar a vida normal, e aí a gordura que foi, volta voando. E às vezes ainda traz um saldo adicional…

Os argumentos óbvios de Siqueira soaram como uma roda de samba aos ouvidos de Machado.

O botequim agora fervilhava. Machado era um triste sozinho no meio de eufóricos.

Toninho passou de novo, com a bandeja lotada de chopps e um filézinho aperitivo. O olhar de Machado acompanhou involuntariamente, vidrado…

– Você acha? – duvidou falsamente Machado, já ansioso por concordar.

– Eu não acho, é fato real. Emagrecer é fácil, difícil é ficar magro. Mas claro que respeito a sua decisão.

Foi o tiro de misericórdia.

Toninho retornava de bandeja vazia e foi parado por Machado, que naquele momento voltava a ser Machadão:

– Toninho, traz dois chopinhos, uma porção de fritas e uma linguicinha calabresa acebolada. Você quer alguma coisa, Siqueira?

Toninho foi buscar. O olhar de Machado acompanhou involuntariamente, vidrado…

 

Antonio Carlos Sarmento

19 comentários em “PAPO DE BOTEQUIM”

  1. É difícil emagrecer. Mais difícil, ainda, é se manter magro. Eu não sofro desse problema, porque sempre fui magro, desde a infância.
    Quanto ao Chopp, na minha idade é preciso ser evitado, pois quando se passa dos 73 anos a memória começa a falhar e uma das causas é a bebida, seja vinho, cerveja ou qualquer outro com teor alcoólico.
    Sds. do amigo e parabéns pela bela narrativa,
    Carlos Vieira Reis

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  2. Kkkkkk ótima crônica! Sarmento fui vitima disso toda a vida. Filho de pai Italiano com mae de origem portuguesa. Ambos excelentes cozinheiros e papai era dono de restaurante e chef de cozinha… Curei-me fazendo uma bariatrica onde perdi 45 kgs e 2/3 do estomago. Valeu a pena, mas sofri toda a vida com isso. Essas recaidas tinha todas as terç-feiras. Kkkkk bom domingo e Deus nos abençoe.

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  3. Muito bom !
    Ir para botequim e não beber é um desafio muito grande… é o mesmo que tentar emagrecer com o pudim preferido na geladeira!!!

    Valeu Cacau!

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  4. São os dilemas da vida.
    De um lado, hábitos adquiridos pelo contexto social e do outro, as necessidades de saúde e padrões sociais.
    Quem nunca fez uma dieta?
    Conheço vários êxitos e também muitas derrotas.
    As que vem acompanhadas de necessidade de saúde tem mais chances de êxito.
    A introdução da crônica foi ótima!
    Um abraço.

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  5. Ai ai !!!! É muito difícil ! O problema é que não existe comemorar sem comida e se encontrar sem bebida. Vamos mandar o Machado para um SPA , quem sabe ele se motiva ! Bjks

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  6. Querido amigo Antonio Carlos,
    Como sempre, suas crônicas são ótimas. Me diverti bastante e tinha certeza que Machado não resistiria.
    Abraços.

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  7. Hahahahah coitado do Machado. Sei muito bem como é. Mas por motivos diferentes já fui a um rodízio de pizza para comemorar um aniversário e fiquei na água, mas não é mole e o local ajuda e muito.

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