CONTO DO VIGÁRIO

Estou impressionado com a quantidade de tentativas de fraudes que surgiram com o advento da internet. Todos os dias recebo golpes e tento me esquivar, como um lutador de boxe que é obrigado a manter a guarda alta o tempo todo, sempre na defesa. Mesmo assim, por não ser um grande atleta, receio que eu acabe sendo atingido por um gancho no queixo uma hora dessas…

São mensagens falsas em busca de furtar dados pessoais e senhas, boletos e sites enganosos, vendas fictícias e um sem-número de ciladas que parecem inesgotáveis. Fico com a sensação de que estamos caminhando em um terreno minado ou em uma trilha na floresta cheia de armadilhas que podem nos capturar a qualquer momento, à mais leve distração.

E parece que vamos daí para pior, com os recentes recursos de inteligência artificial. Agora é fácil produzir um vídeo de uma pessoa que você conhece, com a voz que você sabe identificar, dizendo coisas que nunca disse, com a correta entonação e movimento labial. Ou seja, já não é possível acreditar em vídeos e muito menos em áudios ou telefonemas.

Fico até confuso com a expressão “realidade virtual”, que me parecem palavras contraditórias, ou melhor, antagônicas: se é real não pode ser virtual. Mas o fato é que está tão desenvolvida que nem sei se no futuro ainda viveremos na realidade real…

Ando desconfiado até do meu espelho. Sério. Olho e fico perplexo com inacreditáveis rugas, cabelos brancos, dobrinhas e uma barriga que teima em zombar de abdominais. Desconfio que sejam virtuais, fakes!

A proliferação de golpes faz com a gente fique com a sensação de que, por alguma razão, houve um crescimento geométrico da população de vigaristas. Aliás, esta palavra talvez meio fora de moda, me despertou curiosidade. A língua portuguesa está sempre me surpreendendo.

Fui pesquisar e minhas suspeitas se confirmaram: tem origem em “vigário”. Ora, chega a ser cômico que de um título religioso respeitável, a designação de um membro do clero da Igreja Católica, possa ter derivado um significado tão oposto. Nunca se poderia esperar que um vigário viesse a ser vigarista…

Continuei em busca de uma explicação e encontrei três versões para a expressão “conto do vigário”:

A primeira assegura a inocência do religioso. O golpista apenas se apresentava como representante do vigário para dar mais credibilidade à história com a qual tentava engambelar a vítima.

A segunda teria ocorrido na cidade de Ouro Preto, onde duas paróquias disputavam uma mesma imagem de Nossa Senhora. Um dos vigários propôs que a imagem fosse colocada num burro e a igreja para onde ele seguisse seria a escolhida. Resolvida a querela, descobriu-se tempos depois que o burro pertencia ao vigário que venceu.

E a terceira, minha preferida, pois isenta os pobres vigários da má fama, é atribuída ao poeta Fernando Pessoa, que identifica um lavrador português chamado Manuel Peres Vigário, como um aproveitador da ganância alheia e trapaceiro contumaz.

Lendo os escritos de meu avô encontrei uma crônica dele, publicada há cerca de 60 anos, que possui exatamente o mesmo título desta que agora escrevo. Segue o texto no original:

Logo cedo, um domingo, recebo um telefonema e a voz dizia que era o José da casa comercial M.E.P. Notei logo que não se tratava da voz de tal pessoa, pois esta é de origem portuguesa. No entanto perguntei imediatamente:

— Que é que você manda, meu amigo?

E ele brasileiramente responde:

— Estou aqui no mercado da Vila Rubim e esqueci a carteira em casa. Queria que você mandasse pelo meu sobrinho que aí vai, 500 cruzeiros.

— Perfeitamente, até mais, pois você merece tudo.

Fiquei aguardando o tal sobrinho do homem; não demorou nada. Era um rapaz de uns 25 anos, louro, bonito e todo risonho. Foi logo dizendo meu nome e comentando o esquecimento da carteira de dinheiro do titio. Puxei do bolso as 500 pratas e, antes de lhe as entregar, perguntei se havia trazido o bilhete do José. Ele então, já mudando de cor, respondeu:

— Coitado do titio, está tão nervoso que escreveu o bilhete e esqueceu de me entregar.

Pus as pratas no bolso e disse-lhe para dar um pulinho ao mercado e voltar com o bilhete. Lá se foi ele e, daí a pouco, tornava a bater outro telefonema com a mesma voz da primeira vez a dar-me uma grande desculpa: que havia esquecido o bilhete, mas o sobrinho voltaria para apanhar o dinheiro. Tornei a dizer:

— Perfeitamente, até mais, meu camarada. Você sabe que os amigos são para esses casos.

Lá veio ele com o bilhete e sorrindo, certamente pensando, como diz a gíria: “esse está no papo”. Recebi o papel que não cheguei a ler; apenas enfiei no bolso, pois estava com dois fregueses dentro de minha casa comercial. Daí a uns 10 minutos virei-me para ele e disse:

— Olha você demorou muito e seu titio passou aqui de automóvel e levou o dinheiro dizendo-me para você ir lá ao mercado apanhar a cesta das verduras e voltar para a casa de bonde.

Coitado! Ele ficou todo sem jeito e foi saindo.

No dia seguinte telefonei para o José contando todo o caso e entreguei o bilhete de seu sobrinho, que afinal de contas não era nada dele, apenas um vigarista primário.

Eis pois como saí de outra fria, não é?

A crônica de meu avô me deixou pensando que os golpes não são novidades, apenas mudaram de roupa. E se antes eram aplicados de modo individualizado, hoje são mais numerosos porque podem ser executados em larga escala.

Os contos do vigário sempre existiram, só que agora o vigário é cibernético.

É o mesmo homem de sempre. Neste aspecto, não cresceu, não evoluiu.

Recursos novos, homens velhos…

Antonio Carlos Sarmento

28 comentários em “CONTO DO VIGÁRIO”

  1. Bom dia meu amigo Antônio Carlos. Eu acho que a coisa está saindo um pouco do controle! É tantos golpes via Internet que invariavelmente algumas pessoas menos avisadas estão “caindo”. A sofisticação dos golpes são muitas vezes tão bem feitos que precisa estar muito atento para não cair. Invarialmente dia sim e outro tambem
    tentam me passar o golpe do “PIX programado” dizendo que existe um PIX no valor tal e para um fulano tal e se eu não reconhecer que é para apertar a tecla tal do celular. Se apertar todos os seus dados irão para o “vigarista”! E assim vai! Tá muito chato viver nesta época da nossa vida…. Um grande e afetuoso abraço e fiquem com Deus.

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    1. Meu querido amigo Aylton,
      Você tem toda razão. Os golpes estão cada vez mais sofisticados e parece existir muita criatividade e inteligência a serviço do mal.
      Um grande prazer voltar à nossa interação, meu amigo.
      Grande abraço e uma ótima semana!

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  2. Caro Amigo Sarmento, muito bom dia. Que tê-lo de volta.. A crônica desta semana, em que pese ser portadora de uma outra, a de seu avô, é bastante atual, haja vista que atualmente o vigarista não dá “as caras”, age de forma muitíssimo pior; por trás de uma máquina atinge um grande número de distraídos e ingênuos, na maioria das vezes com sucesso. A perspicácia de seu avô, impediu que ele caísse em um golpe, infelizmente, muito comum nos dias atuais, em razão do sentimentalismo exacerbado de tantos seres, ou, às vezes, tomados por pelo mau hábito de querer ser mais esperto que os demais. Como de praxe, quero destacar algo de muitíssima profundidade, para mim, que você apresenta no seguinte parágrafo: “Fico até confuso com a expressão “realidade virtual”, que me parecem palavras contraditórias, ou melhor, antagônicas: se é real não pode ser virtual. Mas o fato é que está tão desenvolvida que nem sei se no futuro ainda viveremos na realidade real…” De fato, hoje em dia, mais do que em outras épocas, pela facilidade da disseminação, são criados e empregados termos que a maioria de nós não se dá conta das contradições e/ou antagonismos, que carregam. Daí a necessidade de estarmos sempre atentos, ou sempre conscientes do que sentimos, vemos, ouvimos, falamos ou que outros falam para nós, de forma virtual ou presencial. Caramba!!! Quase faço uma crônica para comentar a sua. Enfim, recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Jean, ao pequeno Guilherme e demais familiares.

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    1. Meu querido amigo JH,
      Não se preocupe: sua “quase crônica” é muito bem-vinda! Já sentia falta de nosso contato, antes semanal, agora mensal.
      Obrigado por compartilhar sua opinião e também por destacar o que lhe chamou a atenção.
      De fato vivemos tempos que tem suas complicações e qualquer distração pode custar caro…
      Uma ótima semana para você, Sueli, Júnior, Luizinho e para a rainha Catarina!

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    1. Tati,
      Foi exatamente este ponto comum entre o antigo e o atual que me motivou a escrever esta crônica. Ver as coisas sob a dimensão do tempo pode nos ser útil para melhor compreender a realidade.
      Muito obrigado por curtir e comentar.
      Grande abraço e uma ótima semana para você!

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  3. Querido amigo.
    Que bom que ” não perdeu a embocadura ‘ e embora longe continua nos brindamos com essas crônicas maravilhosas e super valorizadas com seus exemplos familiares. Ainda mais quando se fala de avô… e parece que você herdou direitinho a sabedoria dele.
    Sua crônica hoje super atual e poderia citar vários exemplos de amigos ou conhecidos que se diziam super conhecedores de saída de golpes serem pegos e depois se lamentarem comigo.
    O mais significativo foi o de um amigo gerente de um banco que por diversas vezes me alertava quanto a golpes caiu num do Whatsapp colocando com o coração dez mil reais na conta de um suposto filho que na verdade era o vigário….
    Obrigado mais uma vez saudoso amigo por ilustrar essa manhã de domingo nublado aqui no RJ.
    Abrs em todos e particularmente no Gui que vai um dia ,com certeza, contar também muitas histórias desse avô tão querido. Abrs.

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    1. Querido amigo Nei,
      É um prazer receber seu comentário depois de um mês de recesso.
      Fico contente que você ache que não perdi a embocadura!!! Adorei isso!!
      Meu amigo, desejo à você e Jaciara uma semana de paz e alegrias.
      Envio daqui um afetuoso abraço!

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  4. Ah…que legal!! domingo com crônica do Cacau!!
    É desanimador mesmo essa enxurrada de vigaristas tentando extorquir as pessoas de bem. Mas o dano maior é sentir crescer a desconfiança,a desonestidade e a credibilidade.
    De qualquer forma permanecemos confiáveis,honestos e longe da “vigarice”!
    Grande beijo 💋

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    1. Minha irmã,
      É mesmo cansativo ficarmos nos esquivando de tantas tentativas de golpes, um mal dos tempos há muito tempo…
      Claro, continuemos honestos e o mais longe possível dos vigaristas.
      Beijos e obrigado por comentar!

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  5. Bom dia meu amigo Sarmento! Que bom ler sua crônica, pois eu ja estava saudoso com sua ausência. Excelente crônica que mostra que só mudam as moscas. A caca é a mesma ha muitos anos. Ja passei por algumas tentativas banais e cai numa que me entristeceu muito pois me foi aplicada por um amigo de infância a quem eu confiava… Mas deixo pea contar noitra oportunidade pois hoje e sempre, o grande cronista é voce!
    Deus abençoe voce e sua família.

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    1. Meu amigo Luigi,
      Também já estava saudoso da nossa convivência por aqui. Fico contente que continue me acompanhando, agora em ritmo mensal.
      Obrigado pela gentileza de suas palavras e quando puder conte o que se passou no caso com o seu amigo de infância: história boa sempre interessa muito!
      Grande abraço, meu amigo, e que você e sua família desfrutem de uma semana de muita paz e harmonia!

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  6. OLÁ QUERIDO AMIGO!
    QUE BOM VOLTAR A LER SUA CRÔNICA. ESTA, ALÉM DE ATUAL, CERTAMENTE AJUDARÁ A FICARMOS ATENTOS AOS CONTOS DOS VIGÁRIOS QUE A CADA DIA FICAM MAIS SOFISTICADOS.
    PARABÉNS.

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  7. Oi meu Irmão, que bom ler sua crônica! Estava na expectativa deste domingo!
    Espero que possamos sempre estar atentos às vigarices e consigamos ter a “expertise “ de vovô.
    Beijos. Saudades.

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    1. Oi minha irmã,
      Isso mesmo! Vamos aproveitar a lição de nosso avô e ficar sempre atentos.
      Muito obrigado por comentar, minha irmã. Que vocês tenham uma maravilhosa semana com muita saúde e recheada de bons momentos!
      Beijos e saudades!

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  8. O Vigarista sempre existiu, e como você muito bem disse, só mudou a velocidade.
    Todos já de alguma forma, uns menos outros mais, já caímos em algum conto do vigário. E existem vigaristas em todas as classes sociais.
    Em nosso país vejo claramente e interessantemente, que a
    quantidade de vigaristas que caem em contos dos vigário também aumentou muito. As “escolas” de vigaristas, para mim, cresce a cada dia e não só pela malandragem, mas pelo distanciamento do acesso as necessidades primárias para ser um cidadão, evidentemente não justifica, mas as histórias que escuto dos mais necessitados é de uma falta de conhecimento total, pasmem, do que é ser honesto e ganhar dinheiro de forma digna.
    De maneira alguma estou querendo defender essa “classe” de vigaristas. Acho que nem cabe esse termo, vigaristas. Mas, essas pessoas, nasceram dessa forma, nunca tiveram acesso ou tem conhecimento que existe outro mundo, e acabo concluindo que existe o vigarista letrado e o de nascença.
    Cacau, desculpe pelo comentário, enveredei por um caminho diferente da minha intenção inicial, mas deixei fluir, escrevi mediante o que vejo da formação de vigaristas formados pelos vigaristas que do patamar superior, que só pensam em contos dos vigários trazidos pelos “bilhetes” falsos que vemos vergonhosamente todos os dias , divulgados pelos vigaristas dos meios de comunicação.

    Parabéns pelo seu avô, um sábio e nota-se que essa sabedoria está em suas veias.
    Beijos

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    1. Fala Chico!
      Que bom ter você de volta por aqui. Entendi seu comentário e a linha de raciocínio que adotou. É fruto do seu coração amoroso e da sua fé no ser humano. Obrigado por compartilhar suas ideias, que sempre acrescentam no assunto.
      Uma maravilhosa semana, meu irmão! Tudo de bom para você, Helen e Pedrão!
      Fiquem na paz de Deus!

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  9. Olá querido amigo!
    Muito interessante a crônica! Não conhecia a origem do conto do vigário. Muito legal!
    Obrigado pelos ensinamentos.
    Com relação aos golpes, é uma situação complexa e que vai ficando cada vez pior, com a evolução da tecnologia.
    Estava sentindo falta das crônicas mas, por outro lado, sabemos que não é fácil .
    Vamos driblando os vigaristas que estão por aí em toda sociedade. Fiquemos atentos!!!!
    Abração meu amigo.
    Boa semana e fique com Deus.

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    1. Amigo Newton,
      Um grande prazer voltar à nossa interação, agora em ritmo mensal.
      Fico contente que o amigo tenha apreciado a crônica e esteja atento às vigarices que andam por aí atrás da gente…
      Grande abraço, meu caro amigo e uma ótima semana a você e Nuri!

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  10. Querido Cacau,
    Contente por voltar a receber sua crônica. É interessante a leveza de seu estilo: nos traz uma leitura agradável, mesmo se tratando de um tema que está entre nossas maiores preocupações .
    A história do Sr. Clemente contribuiu para isso. Nem era difícil se livrar dos vigaristas que acabavam fazendo papel de bobo.
    Muito diferente de hoje. Nossa exposição e fragilidade se acentuam com o avanço da tecnologia. Recorre- se a cursos, palestras, literatura, enfim , a todos os meios que nos orientem a nos livrarmos dos golpes.
    Ficamos vulneráveis – todos têm uma história para contar.
    Até o dicionário aumentou o número de vocábulos para qualificar o malandro.
    Angustiante!
    Vou- me embora para a famosa Pasárgada, de Manuel Bandeira. Lá armo uma rede num lugar florido , leio as crônicas do meu querido primo e mando abraços carinhosos para todos da família .

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    1. Querida prima Gena,
      Adorei!!!! Também quero ir para Pasárgada. Lá farei ginástica, andarei de bicicleta, montarei em burro brabo e tomarei banhos de mar. E ainda, escreverei crônicas para agradar minha prima, a quem enviarei abraços e desejos de muitas felicidades!!!

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  11. Bem arguto esse seu avô!
    Realmente vivemos uns tempos algo “movediços” e em que constantemente somos obrigados a nos questionar sobre a veracidade/falsidade das interpelações que nos aparecem. Apesar de não ser por norma desconfiada, desconfio de sms, mails e telefonemas que não façam parte dos meus contactos.
    Enfim, é o mundo real (e virtual) em que vivemos. Tudo muito fácil e tudo muito complexo….
    Boa crónica!

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