A expressão que dá título a esta crônica nasceu em Portugal e foi também amplamente adotada no Brasil. Teria origem em um momento de crise na indústria portuguesa, quando passou a ser usada no sentido de devolver alguém ao campo, ao sol, à rudeza do interior. Uma expulsão da vida urbana e moderna em direção ao ambiente rural, então considerado como atrasado.
Confesso ao leitor que hoje, para ficar longe da poluição ambiental e do stress da vida em grandes cidades, se alguém me mandasse plantar batatas é provável que eu achasse que estava querendo me agradar. Ah, as delícias do campo, da proximidade com a natureza, do ar puro, o maravilhoso silêncio e os céus estrelados…
A associação com esta expressão, já quase fora de uso, me ocorreu quando eu descascava batatas, etapa essencial para um bacalhau de forno que seria o nosso almoço de domingo. Fiquei imaginando todo o trabalho para ser cultivada e o percurso que fez até chegar em minhas mãos. Ora, plantar batatas é algo importante, necessário para nossa alimentação, mesmo que, aqui em Portugal, para acompanhar um bacalhau à Lagareiro elas recebam um murro antes de ir para a mesa…
Em certo ponto da tarefa me deparei com uma batata grande, bonita, de pele lisa e perfil elegante. Removi a casca e notei que havia um ponto preto, coisa comum em muitas delas. Normalmente, com a ponta da faca, é fácil remover, pois este tipo de defeito costuma ser superficial. Iniciei a retirada, mas logo percebi que estava enraizado, entrava batata à dentro e seguia de maneira sinuosa, passeando de um lado a outro por toda a polpa, tornando-a imprestável para o corte em fatias, exigido pelo prato.
Enganei-me com toda aquela beleza externa, que acabou por se revelar irreal. Não me restou alternativa senão descartar aquela que parecia, mas não era.
Passei para a batata seguinte e me pus a pensar em pessoas e relações humanas, plantação bem mais difícil e sofisticada. Mesmo assim, a gente acaba por avaliar o outro pelas aparências, pelas palavras, conversas e gestos, mas muitas vezes não sabemos bem o que existe no âmago, na essência, por baixo da casca.
Pensei também que, assim como nas batatas, a nossa tendência é ter olhos aguçados para os pontos pretos dos outros. Ali colocamos a ênfase, é para onde converge o nosso olhar. Todos temos defeitos, ninguém escapa, mas a gente se comporta como se eles só existissem nos outros.
Em relações um pouco mais duradouras, passamos a colecionar estes pontos que não nos agradam e, como num jogo de liga-pontos, vamos formando um desenho e traçando o perfil da pessoa com base neles. É uma insensatez, na qual insistimos e que só nos traz perdas de relações e afetos.
Curiosamente, mantemos o foco naquelas características que não apreciamos no outro, nos comportamentos que achamos dissonantes e nas divergências de pensamentos e interpretações.
Acabamos por julgar e condenar pessoas até mesmo por pequenos pontos pretos, superficiais. É assim que construímos o cemitério das nossas relações afetivas.
Certa vez li sobre uma imagem a este respeito: dizia que a gente anda pelo mundo como se estivesse em fila indiana e com uma mochila às costas. A gente vê, e muito bem, a mochila do outro, mas obviamente tem muita dificuldade em enxergar a nossa própria.
O fato é que medimos e avaliamos as pessoas com base em nós mesmos, enxergamos tudo com os nossos próprios óculos, medimos o outro com nossa régua, e, como somos diferentes, as discrepâncias são inevitáveis.
A arte da convivência pode estar em aceitar tais diferenças e aprendermos a conviver ou condescender com as imperfeições que enxergamos no outro. Nem sempre é fácil, nem sempre é possível. Mas pode ser útil lembrar que também o outro está fazendo o mesmo esforço em relação a nós, já que está vendo, e muito bem, a mochila que carregamos…
Não é possível viver e ser feliz sem o afeto e a convivência em harmonia com as pessoas que nos rodeiam.
Claro que, aqui e ali, acabamos por nos relacionar com algumas pessoas em que há pontos negativos intoleráveis, enraizados, que nos desagradam, não combinam com o nosso caráter, com a nossa maneira de ser e pensar. Nestes casos é melhor o remédio do afastamento que o veneno da convivência.
Afinal, nem todo mundo pode estar no nosso almoço de domingo.
Pode parecer um contrassenso, mas cada vez mais me convenço que conviver bem com outra pessoa depende mais da nossa vontade do que das características dela. Às vezes, a gente pensa que é algo fortuito, um acaso, uma afinidade que caiu do céu ou uma antipatia gratuita, um santo que não cruzou com outro, uma sorte ou azar. Mas acredito que é principalmente nossa escolha, nossa decisão, nossa determinação!
Se não fizermos esta escolha como uma opção de vida, corremos o risco de acabar indo plantar batatas. E sozinhos… Aí sim, no sentido original de uma vida atrasada e pobre.
Concluo com uma frase do escritor Paulo Coelho, que diz:
Deus costuma usar a solidão para nos ensinar sobre a convivência.
Antonio Carlos Sarmento
Antonio Carlos,
Mais uma vez você nos brinda com uma reflexão apropriada e pertinente. Excelente! Abraços.
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Sandra,
Muito obrigado por comentar. Fico contente que tenha apreciado!
Grande abraço à você e Frank.
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Querido amigo
Excelente crônica. Quantas verdades e ensinamentos.
Obrigado por esse presente no fim de semana.
Muita saudade. Abraços em todos.
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Querido amigo Nei,
Mais uma vez agradeço por comentar a crônica.
Muitas saudades do amigo e da Jaciara.
Beijos e fiquem com Deus!
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Querido amigo, antes de tudo nos fez saborear a preparação desta delícia que nos trouxe de volta aos anos que aí moramos. Adoramos as comparações com os relacionamentos e sim, temos que procurar entender que todos temos nossas dificuldades e fragilidades, mas aprendemos que todas as pessoas com as quais convivemos se tornam caminho para que aprendamos a subir mais um degrau na nossa peregrinação para a Santidade!
Um forte e afetuoso abraço,
Armando e Valeria
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Queridos Armando e Valeria,
Sempre um grande prazer saber de suas impressões sobre as crônicas.
Obrigado pela gentileza das palavras e por dedicarem tempo a comentar.
Recebam o nosso carinho e um afetuoso abraço!
Fiquem com Deus!
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Meu grande amigo A. C.
Gostei muito da crônica, que também me fez meditar.
Destaco o trecho “… aqui e ali, acabamos por nos relacionar com algumas pessoas em que há pontos negativos intoleráveis, enraizados, que nos desagradam…”.
O trecho me fez lembrar do Stênio, um grande amigo que tive, mas que infelizmente já partiu.
Por causa de um defeito, “um tanto intolerável”, foi difícil a nossa aproximação. Entretanto, com o passar de meses de convívio na empresa em que trabalhávamos fomos nos tornando grande amigos, com a minha eterna admiração pelas suas aptidões e carinho, que sempre demonstrou comigo! … Um dia conversaremos sobre ele!
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Opa Rodolpho!
Fico feliz que tenha gostado da crônica.
Em breve quero saber a história do Stênio, ok?
Grande abraço, meu caríssimo amigo! Lembranças à Idalina!
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Meu querido amigo!
Parabéns pela excelente cronica!
Você foi muito feliz quando escreveu : Não é possível viver e ser feliz sem o afeto e a convivência em harmonia com as pessoas que nos rodeiam.
Saudades do amigo.
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Muitíssimo obrigado por comentar, meu queridíssimo amigo!
Você é daqueles que, sem dúvida, convivem com muito afeto e harmonia entre os que o rodeiam.
Beijos para você e Rosa!
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Sai por aí a navegar, em busca do que ler nesta quinta. Gosto de blogues, mas sou chata quanto ao que leio. Adoro crônicas e a sua me chamou a atenção devido ao título. E ao ler, fui me atendo a situações várias, como a batalha que travo com partes escuras nas batatas e acho que se alguém me mandar plantar batatas, é capaz de eu ir mesmo. rs
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Lunna,
Obrigado por comentar.
Fico contente que tenha apreciado a crônica e passe a seguir o Blog.
Seja muito bem-vinda!
Abraços
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Oi Sarmento!! Acertou em cheio e fazendo uma paródia a outro ditado popular “se a vida te der um limão faça uma limonada” você, de uma batata imperfeita fez uma crônica deliciosa e verdadeira.
Abraço grande pra você e agora fica faltando a crônica do bacalhau de domingo.
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Oi Yara,
Agradeço seu comentário e me alegro que tenha gostado da crônica.
Vou pensar na possibilidade da crônica do bacalhau de domingo… hahahaha
Abraços!
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Muito interessante, eu não sabia que essa expressão vinha de Portugal. 😉
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Muito obrigado por comentar e seja bem-vinda ao Blog Crônicas e Agudas.
Todo último domingo do mês publico uma crônica inédita. E também deixo disponível no Blog todas que já publiquei.
Saudações!
Antonio Carlos Sarmento
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Caro Amigo Sarmento, muito bom dia. Como outros de seus seguidores e Amigos já comentaram, esta é mais uma maravilhosa crônica da sua imensa produção. Parabéns!!! Eu aproveito a oportunidade para acrescentar algo que tenho aprendido com o estudo da Logosofia, em geral, aquilo que mais detestamos no próximo, muitas vezes, também. faz parte do nosso acervo, daí aumentarmos indefinidamente o, às vezes, pequenino “ponto preto” que identificamos no outro, como forma de esconder o nosso próprio. Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Jean, ao pequeno (?) Guilherme e demais familiares.
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Meu querido amigo JH,
Muito boa sua observação sobre os pontos pretos que são nossos e enfatizamos no outro.
Obrigado por seu comentário. Fico contente que tenha apreciado, meu amigo!
Um afetuoso abraço e lembranças à Sueli, Luizinho, Júnior e a belezinha da Catarina.
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Querido Cacau,
Fico admirada como a percepção do escritor capta e valoriza as sutilezas das ações das pessoas, do ambiente…seja a brincadeira da criança ou o aspecto da batata, tudo se torna inspiração para valiosas meditações.
Há dias, estava subindo a terceira ponte e pensei: Cacau encontraria filosofia e boas reflexões nessas placas de trânsito. Fica o desafio!
Suas ponderações sobre convivência estão ótimas. Nada lhe escapou. O olhar de tolerância e de aceitação é nobre, mas aquém da ordem de amar como o Senhor nos amou. Grande demais para nós que somos pó. Mas vale o esforço e a humildade.
Diante desse desafio constante, Mario Quintana nos oferece uma conclusão:
” A arte de viver é simplesmente a arte de conviver…simplesmente, disse eu? Mas como é difícil!”
Abraço carinhoso, meu primo.
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Querida Gena,
Seus comentários são enriquecedores, além de exagerarem em generosidade.
Adorei a frase do Mario Quintana. Sim, é difícil, mas precisamos tentar sempre. Desistir seria como optar pela solidão, pelo isolamento, pela descrença nos seres humanos. Triste opção…
Muito obrigado pelas palavras e vou pensar sobre o desafio das placas de trânsito.
Beijos!
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