ÀS COMPRAS

Tirei parte do meu dia para comprar algumas coisas que precisava. Fui primeiro a um shopping e depois estive em uma loja de bairro, experiências bem diferentes.

Na primeira loja do shopping em que entrei não precisei falar com ninguém. As roupas estavam penduradas em cabideiros brilhantes, espalhados por todo lado, se oferecendo silenciosamente a quem estivesse interessado em examinar mais de perto.

Vi um casaco que correspondia ao que eu desejava, verifiquei o preço, experimentei ali mesmo, sem precisar ir ao provador e avaliei minha imagem em um dos milhares de espelhos que havia na loja.

Dali fui ao caixa automático e literalmente joguei a mercadoria numa caixa retangular. Ela imediatamente leu a etiqueta, sei lá como, e apresentou na tela a descrição do item e o valor. Estava correto. Passei o cartão para pagar, peguei o casaco, enfiei numa sacola e fui embora. Foi automático, prático e rápido. Muito conveniente.

Depois passei no supermercado que havia no térreo do shopping. Comprei três itens de alimentação e fui direto para uma das caixas automáticas. Passei os códigos de barras, paguei com cartão e segui meu caminho. Foi automático, prático e rápido. Muito conveniente.

A esta altura eu já havia garantido meu conforto térmico e alimentação sem precisar falar com qualquer pessoa.

Na parte da tarde fui a uma pequena loja na rua em que moro. Passando de carro eu já havia notado sua existência e agora precisava do serviço de fechamento de box (aqui em Portugal chamam “cabine de duche”), anunciado em sua vitrine.

Encontrei ali um senhor, que logo se levantou para me atender. Nos apresentamos e eu disse-lhe o que desejava e as dimensões.

— Perfeitamente, Sr. Antonio. Eu vou lhe mostrar um tipo de fechamento que será perfeito para o seu caso — disse ele.

Lançou mão de um catálogo que estava sobre a mesa e começou a folhear em busca da página certa. Logo notei que estava com dificuldade para encontrar, pois ia e vinha desordenadamente, ora nas primeiras páginas, ora nas últimas, parecendo não ter noção de onde achar o que buscava.

Foi ficando constrangido:

— O senhor me desculpe, mas a minha funcionária saiu por uns instantes e eu não estou conseguindo dar o atendimento certo. Ela poderia lhe explicar melhor e dar todos os detalhes.

— Sr. Rocha, eu posso voltar outra hora, sem problema. Mas também posso aguardar o senhor encontrar.

— Muito obrigado. É que eu não estou enxergando muito bem. Me desculpe.

Ele ia falando e continuava à procura, demonstrando certa inconformidade em não conseguir fazer algo aparentemente tão simples quanto encontrar uma ilustração num catálogo. Estava ficando nervoso.

— Não se preocupe. Eu não estou com pressa. Agradeço sua atenção, mas não quero a sua tensão — disse eu, em tom de brincadeira.

Com a abertura ele se sentiu mais à vontade:

— É que eu tive um AVC e ainda estou me recuperando. Afetou muito meus olhos.

— É mesmo? Pois parece estar se recuperando bem. Não por acaso o senhor tem rocha no nome. Quantos anos o senhor tem?

— 70 anos.

— Eu também.

De súbito ele encontrou a página que procurava. Ficou feliz.

— É este o fechamento! — exclamou.

Passou então a relatar em detalhes todas as características, os pormenores da instalação, as possibilidades de acabamentos e outros aspectos técnicos que conhecia profundamente.

— O senhor entende muito do assunto, Sr. Rocha — comentei.

— Sim. Estou há mais de 30 anos neste negócio. O AVC é que me atrapalhou.

— Mas o senhor está bem.

— Poderia estar melhor e atender o senhor com mais qualidade. O problema é que demorei muito a receber socorro médico.

— Me conte como foi — solicitei, não para agradá-lo, mas pela irresistível curiosidade de cronista.

— Eu estava aqui na loja sozinho, sentado nesta cadeira. Comecei a sentir um desconforto visual, que foi piorando e ficando tudo escuro, de tal forma que eu já não podia pedir socorro pelo telefone. Caí neste canto e aí fiquei desacordado por duas horas.

— Foi bastante tempo… E quem o encontrou? A funcionária?

— Não. Naquela ocasião eu cuidava da loja sozinho. Um cliente passou aqui para me cumprimentar e conversar um pouco. Ele que me socorreu. O médico disse que este longo tempo é que agravou o problema da visão.

— Walt Disney tinha uma frase que dizia mais ou menos o seguinte: Faça tão bem o que você faz que as pessoas vão querer vê-lo novamente. Foi o seu caso. Graças a isto, o senhor foi cliente do seu cliente.

Ele sorriu pela primeira vez na nossa conversa.

A seguir me informou o preço e prazo para realização do serviço e disse:

­— Sr. Antonio, peço desculpas por não conseguir atendê-lo de uma forma melhor.

— O senhor me atendeu muito bem, Sr. Rocha. Acho difícil que a sua funcionária pudesse fazer melhor. Eu fico muito agradecido.

Ele baixou os olhos, estremeceu um pouco o corpo e passou a mão no rosto. Chorou…

Os olhos tinham dificuldade para enxergar, mas não para derramar lágrimas.

Permaneci calado e emocionado.

Alguns instantes depois ele quebrou o silêncio:

— Desde o AVC é a primeira vez que faço um atendimento sozinho.

— E um excelente atendimento. Vou completar a minha pesquisa, conversar com minha mulher e assim que resolver voltarei aqui.

— Fique à vontade.

— O senhor sabe fechar boxes e abrir corações. E isso faz o cliente voltar, até mesmo para atender ao invés de ser atendido. Parabéns!

Apertei a mão daquela rocha, com admiração e respeito.

Deixei a loja  com o coração tocado. Não foi automático, prático nem rápido. Também não foi conveniente. Mas foi comovente!

Busquei produtos, encontrei sentimentos.

Até mesmo as coisas mais corriqueiras, como ir às compras, podem se tornar extraordinárias quando vem à tona a nossa humanidade.

Fui pelo caminho para casa a refletir que andamos por aí atrás de conveniência, praticidade e rapidez, quando o que precisamos é calor humano, emoção e sensibilidade. Corremos o risco de, aos poucos, sem percebermos, irmos desumanizando a nossa vida, aproveitando os automatismos e quase nos tornando autômatos.

A mais avançada tecnologia jamais vai conseguir oferecer o que precisamos de verdade, lá no fundo da nossa alma. Podemos nos conectar por telas, mas somente o olhar humano pode nos levar a verdadeiros encontros.

Concluo com uma simples frase do escritor Nelson Rodrigues:

Nada do que vale a pena se faz sem emoção.

 

Antonio Carlos Sarmento

25 comentários em “ÀS COMPRAS”

  1. Maravilhosa crônica, nos faz refletir muito o que realmente é importante em nossas vidas, e como podemos significar de forma positiva todo esse privilégio de passar pelas experiências, sendo positivas ou não, e tirarmos proveito do que Deus nos oferece mesmo em momentos de aflição.

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    1. Valeu Chico!
      Muito obrigado pelo comentário! “Tirar proveito do que Deus nos oferece, mesmo em momentos de aflição”. Não é fácil, mas já vi você fazer isso e para mim é um aprendizado.
      Beijos para você, Pedrão e Helen e tenham uma excelente semana!

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  2. Meu querido amigo, boa noite!

    Que excelente e emocionante crônica.

    Você nos mostra como a comunicação física é importante para a conhecermos nossos semelhantes. Com seu gesto fraterno e generoso você fez a alegria de uma pessoa sofrida com sua incapacidade.

    Como disse Tom Jobim, se todos fossem iguais a você, que maravilha viver.

    Parabéns meu irmão querido.

    Deus te abençoe e te conserve sempre assim.

    Saudades!!

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    1. Meu queridíssimo amigo Luiz Carlos,
      Me alegra que tenha apreciado a crônica. Quando alguém diz que o texto provocou emoção me sinto gratificado. E coincide com a última frase da crônica: nada do que vale a pena se faz sem emoção!
      Muito obrigado pelas palavras de estímulo, meu querido amigo!
      Saudades também…

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  3. Grande meu Amigo Sarmento, muito bom dia. Eu tenho aprendido nos últimos anos a observar e pensar, sobre aquilo que observo; pois bem você nos traz hoje um, belo exemplo de saber observar e pensar e, o fruto deste exercício, para mim, está sintetizado nesta frase: “Até mesmo as coisas mais corriqueiras, como ir às compras, podem se tornar extraordinárias quando vem à tona a nossa humanidade”. Como me sinto feliz em fazer essa observação/identificação, nesta crônica deste mês. Penso que a forma mais adequada de se viver feliz, entre, possíveis outras, é deixarmos de nos comportar como “homens massa” e, e dar espaço para a nossa sensibilidade e nossa individualidade e, a partir dai, deixar surgir a humanidade que há em nós. . Meu Amigo, recomendações à Sónia, à Tatiana, ao Jean, ao Guilherme e demais familiares.

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    1. Meu queridíssimo amigo JH,
      Dar espaço à nossa sensibilidade… quanta sabedoria nestas poucas palavras. E quanta falta isso faz no nosso mundo.
      Obrigado por seu rico comentário, meu amigo.
      Registrei a frase que te agradou, o que sempre me interessa saber.
      Uma maravilhosa semana ao amigo, Sueli, Luizinho, Júnior e a formosa Catarina!

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  4. “Somente o olhar humano pode nos levar a verdadeiros encontros.” Frase perfeita meu caro amigo Sarmento.

    Crônicas que trazem calor humano.

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  5. Somente o olhar humano pode nos levar a verdadeiros encontros. Você terminou com uma frase perfeita meu caro amigo, com todo respeito ao grande Nelson Rodrigues, fico com a sua.

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  6. Antonio!

    Foi muito bom ter reservado essa crônica para ler em um momento especial, porque são daquelas que falam profundamente ao coração.

    Na realidade é oportuno também dizer que só foi possível de ser “criada” por uma pessoa que tem um alto grau de sensibilidade e empatia, o meu grande amigo .

    Forte abraço 

    Rodolpho Britto

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  7. Querido Cacau,

    Enquanto lia sua crônica, surgia, em minha mente, um poema da doce Cora Coralina- O Sentido da Vida:

    Você descrevendo a paciência oferecida ao Sr. Rocha e eu identificava o acolhimento; você demonstrando curiosidade e eu visualizava o envolvimento; o simpático Senhor desculpando- se das limitações e eu reconhecia suas palavras de conforto. E quando o amável português chorou, vi você praticar o silêncio que respeita.

    Sua experiência deu vida ao poema. E essa é a premissa da autora:

    ” Não sei se a vida é longa ou curta para nós , mas sei que nada do que vivemos tem sentido se não tocarmos o coração das pessoas.”

    Meu primo, nesse momento de festas, desejo que também o seu coração seja especial e profundamente tocado pela criança na manjedoura que veio para nos reconciliar com Deus, pelo sangue da sua cruz .

    Seja sua fé fortalecida. Seja seu Natal feliz, de paz e de união.

    Um grande e afetuoso abraço na Sônia, na Tatiana, no Jean e no lindo Gui.

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    1. Queridíssima Gena,
      Sua citação de Cora coralina é uma inspiração. Quanta verdade, quanta profundidade em tão poucas palavras.
      Obrigado pelo comentário e por suas ricas observações. Adorei!
      Beijos e uma Natal de plena paz e amor em família!

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  8. Um momento emocionante para ambos e apenas possível porque a sensibilidade do António esteve presente e alerta. Que bom que assim foi!
    Quanto ao leque de possibilidades agora existentes na hora de comprar…para mim a escolha depende muito do que preciso e também dos dias, ou seja, se me apetece passar indiferente no meio da indiferença…ou se me apetece um olhar e uma relação mais próxima, amigável e profissional.
    Mas sejamos objectivos, nem sempre quem está atrás do balcão está bem disposto….
    Mais uma excelente crónica retirada do quotidiano!

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