Recentemente concluí a leitura de um livro que tem exatamente 1088 páginas. Logo ao início o autor justifica o “tijolo” com o argumento de que a ideia que defende é tão contra o senso comum, que precisará de muitos dados e análises para comprovar o que afirma no título. Ao encerrar a leitura, reconheci que ele tinha razão. Uma bela obra, um livro grande e também um grande livro.
Eu já considerava certa a ideia de que não se deve julgar um livro pela capa. Agora acho que, da mesma forma também não cabe julgar um livro pelo tamanho. Mesmo pensando assim, percebo que a gente continua fazendo isso com os livros e também com a vida. Insistimos em julgar tudo e todos pelas aparências, bem como admiramos as grandiosidades enquanto desprezamos as coisas menores, confundindo o pequeno com o insignificante.
Como sempre, preciso contar um caso.
Em certa etapa da minha vida passei por um revés financeiro que me tirou a paz e consequentemente o sono. Na ocasião, o contrato de financiamento da minha casa já pesava muito na renda familiar e uma redução de salário veio tornar a situação crítica. Constatei que o fôlego seria muito curto e, na falta de uma ideia melhor, decidi ir ao Banco em busca de uma improvável solução. Eu precisava sair da amarga inércia.
Havia ali umas quatro mesas com funcionários atendendo ao público segundo o critério de senhas. Eu olhava a fisionomia dos que atendiam procurando adivinhar a qual deles o destino me levaria, se seria o meu carrasco ou o meu salvador. Desejava uma pessoa sensível e gentil, desejava não, precisava.
Chegou a minha vez e, como informava uma pequena placa, sentei-me diante da Teresa, uma moça de uns 40 anos, cabelos curtos e um olhar que me pareceu bondoso. Expus o caso, sem conseguir disfarçar a aflição que sentia. Ela ouviu tudo atentamente, sem interromper nem comentar. Ao final, disse:
— Você trabalha há quanto tempo?
Estranhei a pergunta, mas respondi:
— Cerca de 20 anos.
— Alguma vez sacou seu fundo de garantia?
— Nunca. Tenho um bom recurso lá, mas o contrato não me permite usar para pagar o financiamento…
Teresa balançou a cabeça demonstrando que já sabia disto. Olhou para um lado, olhou para o outro, baixou o tom de voz e revelou:
— Volte para casa e aguarde por um mês. Eu vou te ligar para que retorne aqui.
Senti-me como um náufrago que tentava sem sucesso acender uma fogueira para atenuar o frio e de repente vê surgir uma faísca, a faísca da esperança. A fogueira para espantar o frio, a esperança para afastar a angústia.
Perguntei então à faísca, digo, à Teresa:
— Ok. Mas o que pensa fazer?
— Está sendo estudada uma possibilidade, mas não posso adiantar nada. Por favor, volte para casa e aguarde um mês. Eu telefonarei quando for o momento.
Quando saí de lá a fogueira já tinha uma pequena labareda.
Teresa poderia não ter dito nada, mas percebeu que apenas poucas palavras, sem ferir a ética do seu trabalho, poderiam representar muito para mim. Era uma pessoa especial. Talvez um outro colega dela, já desgastado e indiferente pelo desafiante trabalho de atender ao público, ficasse limitado às formalidades do meu contrato e me deixasse arder na angústia.
Para abreviar a história, um mês depois ela me telefonou e voltei ao Banco. Desta vez não precisei de senha. Teresa recebeu-me com simpatia e fomos para uma pequena sala. A esta altura, a fogueira já crepitava no meu peito.
— Muito bem. Agora posso falar. O Banco criou uma opção na qual você pode usar o fundo de garantia e terá um desconto de 35% para quitação antecipada da dívida. O seu saldo do fundo permite quitar tudo. Basta assinar este aditivo ao contrato.
Eu ia pedir a Teresa em casamento, mas me lembrei que já era casado…
Até então eu não sabia que excesso de alegria faz a gente tremer. Precisei de alguns minutos para me acalmar antes de assinar aquela carta de alforria. Teresa era a minha Princesa Isabel. Ou era a Madre Teresa…
Ela não fez nada grandioso, também não dependeu dela a solução, mas a forma como conduziu o assunto, seu pequeno gesto, suas poucas palavras, marcaram para sempre a minha vida. A boa vontade, o desejo de ajudar, a atitude simples e generosa, podem tornar enorme uma coisa pequena.
Andamos por aí focados em nossos grandes sonhos, projetos importantes e decisões significativas. Claro, isto é necessário, ou melhor, é essencial. Mas ao mesmo tempo podemos também estar voltados para coisas pequenas e simples, como uma palavra amiga, um afago, um escutar o outro, uma gentileza ou até um sorriso. Isto pode fazer uma grande diferença na nossa vida e na vida de outras pessoas.
Quem disse que apenas as coisas extraordinárias podem nos fazer felizes? Quem pregou esta mentira em nossa mente, em nosso coração? Parece que nos colocamos atrás de grandiosidades e deixamos a simplicidade, que está ao nosso alcance, desprezada ou talvez esquecida.
Há uma frase sobre isto do criador de Sherlock Holmes, o escritor Arthur Conan Doyle:
Por muito tempo tem sido um dos meus axiomas que as pequenas coisas são infinitamente mais importantes.
Vou fazer o que gosto: contar mais um caso.
Há alguns poucos anos eu precisava solicitar minha cidadania portuguesa para poder permanecer em terras lusitanas por mais de 90 a cada 180 dias. Esta obrigação me fazia ter que ir ao Brasil com mais frequência do que a desejável, impondo muitos inconvenientes. Entretanto, eram tempos de Covid e praticamente, em Portugal não se conseguia fazer um agendamento para dar entrada nesta solicitação.
Certo dia, conversando com meu genro que também precisava da cidadania, ele aventou a hipótese de, mesmo sem agendar, fazermos uma tentativa numa cidade pequena, onde as coisas tendem a ser mais fáceis e flexíveis. Achei boa ideia. Às vezes é melhor fazer alguma coisa, mesmo improvável, do que ficar mastigando reclamações.
Escolhemos uma quarta-feira, meio da semana, dia talvez ainda mais calmo e partimos para executar nosso plano sem pé nem cabeça, com baixa possibilidade de sucesso. Era um dia de inverno e a chuva caía impiedosa. Não havia uma viva alma nas ruas da cidadezinha.
Estacionamos numa pequena praça e, dividindo um guarda-chuva, chegamos com um dos ombros molhados à porta da repartição, aqui chamada de Conservatória do Registo Civil.
Fomos recebidos por um simpático aviso afixado na porta, que dizia: Se tiver horário agendado, toque a campainha.
Olhamos um para o outro. Tocamos a campainha.
Logo veio uma senhora que entreabriu a porta com uma prancheta e perguntou em nome de quem estava o agendamento. Fiz o olhar mais suplicante que consegui e disse:
— Senhora, não temos agendamento, mas precisamos muito dar entrada no pedido de cidadania. Pode nos ajudar?
Ela nos olhou fixamente.
Ficamos em silêncio, enquanto ela processava a situação inusitada. Claro que poderia apenas se despedir, fechar a porta e nos deixar na chuva. Estaria coberta de razão. Mas a razão sozinha muitas vezes não se sustenta. Ela parecia decidir se seria bruxa ou fada.
Não havia ninguém na rua, provavelmente no agendamento também não. Ela olhou para dentro da Conservatória, acho que deu também uma espiada para dentro de si mesma e disse:
— Saiam da chuva. Entrem aqui e me expliquem a situação.
Pronto. Nosso plano ganhou pés e cabeça.
A fada chamava-se Blanca ou Bianca — não tenho certeza, pois na época meu ouvido ainda tropeçava na pronúncia portuguesa. Ela digitalizou todos os documentos, deixou os processos prontos para dar entrada e fez um agendamento para nosso retorno visando as formalidades finais.
Lembrei da Teresa. E pensei exatamente a mesma coisa: a boa vontade, o desejo de ajudar, a atitude simples e generosa, podem tornar enorme uma coisa pequena.
Parece que muitas vezes, pensando no grande, deixamos de fazer o pequeno. Que engano!
Melhor seria pensarmos que há um mundo de pequenas coisas que podemos fazer. Quanta riqueza nesta ideia de fazer coisas simples que podem ter significado profundo, como alegrar a vida de alguém mesmo que por breve tempo, dar alívio a uma aflição, atenuar uma dor, despertar gratidão, apaziguar um coração.
Algo pequeno e simples pode ser muito poderoso. Arrisco dizer que uma palavra ou um pequeno gesto pode até mudar uma vida.
Imagino que podemos encontrar felicidade no acúmulo destas pequenas coisas.
Pequenas grandes coisas.
Antonio Carlos Sarmento
Caro Amigo Sarmento, muito boa noite. É com incontida alegria que recebo mais uma (ou duas?) crônica, da sua lavra. E, como sempre, destaco um ponto repetido duas vezes: “a boa vontade, o desejo de ajudar, a atitude simples e generosa, podem tornar enorme uma coisa pequena”. Esta é uma oportunidade de levar até você algo que a Logosofia tem me ensinado: “Com alegria, entusiasmo e boa vontade, se pode transformar o mundo”. Outro aspecto, deveras importante, que escapa à maioria das pessoas é que a razão não pode se sobrepor à sensibilidade. É importante ter em mente que não se pode confundir sensibilidade com sentimentalismo, aquela vem do interno do ser, este outro é para satisfazer as aparências, tão somente. Em poucas palavras, este breve intercâmbio mensal é muito importante para mim. Parabéns, por mais uma bela e otimista mensagem. Recomendações à Sônia, à Tatiana(aniversariante do mês), ao Jean, ao Guilherme e demais familiares.
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Meu querido amigo JH,
Acho que eu deveria seguir seus passos e conhecer um pouco mais da Logosofia, pois já são muitas ideias convergentes.
Aprecio suas indicações de trechos e as complementações que faz, sempre enriquecendo o tema.
É um grande prazer esta nossa interação mensal, meu amigo.
Muito obrigado!
Um forte e saudoso abraço!
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Meu Amigo, se é quando você puder ou quiser, lhe passo o contato de membro da Fundação, aí em Lisboa. Será uma akegrua imensa tê-lo conosco…
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Muito obrigado, meu amigo JH!
Você é um mar de generosidade.
Abração!
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muito legal! Sempre histórias positivas e inspiradoras. Obrigada por compartilhar
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Fefe,
Fico contente que tenha gostado. E comentado!
Beijos para você, Tom, Mariana e um grande abraço ao Marcos!
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Meu grande amigo!
Pessoas sensíveis, que possuem o dom de sentir o coração do próximo, algumas poucas vezes cruzam o nosso caminho, como anjos protetores. Enviados por Deus, solucionam problemas preocupantes, nos agraciando por toda uma vida!
Rodolpho Britto
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Sem dúvida Rodolpho, são de fato como anjos e estão por aí.
Tomara que o destino nos leve muitas vezes ao encontro deles!
Um grande abraço e obrigado por comentar!
Saudades do amigo…
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Oi Sarmento! Sempre um grande prazer ler sua crônica. As Teresas e Biancas em nossas vidas nos fazem acreditar que a alma boa de Setsuam existe. Valeu meu amigo!
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Olá Yara,
Gostei muito da citação do livro. Acho mesmo que “a alma boa de Setsuam” existe!
Retribuo dizendo que é sempre um prazer receber seus comentários.
Muito obrigado!
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Mais uma excelente e positiva crónica, onde a gentileza e os valores ainda nos dão esperança.
Que bom ter encontrado essas pessoas no seu caminho, seres que simplesmente foram capazes de se colocar no lugar do outro, algo que pode fazer toda a diferença. Infelizmente isso é algo que vai escasseando nos tempos que correm…
Porém, façamos a nossa pequena parte nos nossos pequenos mundos!
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Dulce,
Muito obrigado por comentar.
Realmente pequenas coisas nos nossos pequenos mundos podem ter profundos significados.
Desejo uma ótima semana!
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Bom dia senhor Sarmento.
Suas crônicas são divinas e um bálsamo para almas sedentas de boas redações.
Deus o abençoe 🙏
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Caro Bion,
Recebo seu generoso comentário como um incentivo a continuar escrevendo.
Fico contente que aprecie meus textos!
Deixo um grande abraço!
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Bondade sua!
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