Saí de casa em uma bela manhã de sexta-feira e dirigia calmamente, quando cheguei a uma rotatória, que aqui em Portugal é denominada rotunda. Observei as regras, ingressei pela pista da esquerda, já que meu destino era a terceira saída. Fui pelo percurso em velocidade normal, sem lentidão, nem excesso. De repente o motorista do carro atrás de mim enterrou a mão na buzina. Tomei um susto.
Procurei nos espelhos a razão de tal protesto, mas nada encontrei. Desisti de entender e optei por focar no meu destino, pois uma rotatória exige muita atenção e apenas de relance se pode desviar o olhar.
Pois bem, prossegui até a saída que desejava, sempre perseguido pelo buzinaço incessante. Quando deixei a rotatória, pude então olhar melhor pelo retrovisor: era um carro branco com um motorista igualmente pálido, sozinho, cabelos desgrenhados e visivelmente irritado. Penso que ele percebeu meu olhar e resolveu trocar a buzina por uma gesticulação, digamos assim, pouco gentil.
Eu gostaria de dizer ao meu leitor que me contive, não retruquei, fui calmo e compreensivo, atribuindo o comportamento agressivo a alguma dificuldade ou aflição vivida pelo sujeito. Mas não tem sentido escrever para dizer mentiras. Abandonei meu lado zen, abri a janela esquerda do meu carro e retribuí as gentilezas com um único e significativo gesto com a mão esquerda, que prefiro deixar à imaginação do leitor…
Logo ele me ultrapassou veloz e imprudentemente, encerrando a ocorrência e deixando um rastro de maus sentimentos em mim. A raiva gera raiva.
Claro, durou pouco. Quando envolve pessoas que não conhecemos e por quem não temos sentimentos de afeto, a raiva passa logo. Fui esfriando e pensando sobre a raiva nossa de cada dia. Foi ela que o fez buzinar e o som estridente produzido, trouxe a raiva dele para mim.
Parece que é fácil formar um círculo vicioso de raiva. Ter afeição é mais difícil, demora, exige muito e não sentimos por qualquer pessoa. Porém, a raiva é instantânea e não exclui ninguém. Não precisa muito, qualquer antipatia, um simples gesto, um comportamento enviesado, uma simples palavra, já são suficientes para despertar a raiva, às vezes até desproporcional ao acontecimento.
Ah, se a gente sempre conseguisse ficar calmo e equilibrado frente à raiva do outro.
Mas não é assim. Desconfio que tenhamos um talento excepcional para colocar a raiva em atividade. Ela parece estar sempre por ali, disponível, pronta para entrar em cena e tomar conta do nosso comportamento. Ela sempre protagoniza, se sobrepõe aos demais sentimentos, domina a situação e, muitas vezes nos faz agir mal ou, no mínimo, é má conselheira.
Há uma música da Marisa Monte que em certo trecho pergunta:
O que é que a gente não faz por amor?
Talvez caiba também a pergunta:
O que é que a gente não faz por rancor?
Pensar sobre a raiva me fez lembrar um outro episódio ocorrido há alguns anos.
Quando meus pais envelheceram, eu e minhas irmãs optamos por mantê-los em sua própria casa com o apoio de cuidadores, ao invés de colocá-los em uma clínica de repouso, pois as que visitamos não nos pareceram adequadas.
Foi uma experiência rica em percalços e dificuldades. Administrar o complexo trabalho de cuidadores é tarefa dura, que exige paciência e tomada de decisões a cada momento. Entre erros e acertos levamos a situação até o fim, fazendo alterações, corrigindo comportamentos e trocando empresas de cuidadores, sempre no intuito de buscar o melhor para eles.
Um dos muitos erros que cometemos foi criar um grupo de whatsapp com os filhos e as cuidadoras de nossos pais. Não posso negar que teve utilidade, mas grupo de whatsapp é coisa de alto risco, terreno fértil para erros, desentendimentos e más interpretações.
Pois bem, certo dia, uma das cuidadoras, aliás das mais bem conceituadas por nós, postou um áudio que era dirigido a uma das colegas, mas por engano foi colocado no grupo com todos. Como estávamos sempre atentos para as notícias dos nossos velhinhos, logo ouvimos.
Ficamos estarrecidos.
A moça, em tom raivoso, disse coisas ofensivas à nós e à nossa mãe, expondo a verdade de seus sentimentos, muito mais negativos do que poderíamos imaginar. Em menos de meia hora ela percebeu o engano cometido, mas já era tarde. Pediu sua imediata transferência para outro local, já que a convivência entre nós havia se tornado impossível.
Interessante como uma explosão raivosa é reveladora. É possível ver isto em certos interrogatórios policiais, em depoimentos de tribunais e até em debates políticos, quando despertar a raiva do outro acaba por ser uma técnica para arrancar a verdade, as confissões e os pensamentos mais autênticos.
Diferente do episódio de trânsito que inicialmente relatei, este caso da cuidadora me trouxe um outro sentimento, mais profundo. A raiva da cuidadora não gerou raiva, mas decepção. E esta é pior que a raiva, mexe com a confiança, fica na memória e altera profundamente a relação com a pessoa que a causou. A raiva passa, a decepção fica.
Às vezes, em nossos relacionamentos mais próximos, um momento de raiva pode fazer transbordar coisas nunca ditas, interpretações guardadas em segredo, emoções contidas, ressentimentos arquivados e até mágoas muito bem conservadas. É a hora em que o conteúdo extravasa e mostra o coração. E também é assim que, numa troca raivosa, muitas amizades acabam, muitos casamentos viram divórcios e muitos relacionamentos se deterioram de forma definitiva.
Não é a raiva, mas a decepção que nos faz desistir de alguém.
É certo que talvez eu tenha alimentado uma expectativa muito alta em relação àquela moça, quase uma admiração e fiquei frustrado ao perceber a verdade de seus sentimentos. Deveria ter lembrado de um pensamento de Confúcio:
Exige muito de ti e espera pouco dos outros.
Sim, posso ter cometido um excesso, mas como viver sem criar expectativas em relação aos outros?
Encontrei consolo numa frase do grande Machado de Assis:
Toda decepção deixa uma lição e toda lição muda uma pessoa.
Antonio Carlos Sarmento
esses dias ouvi da Carmen Lúcia: você não precisa cultivar erva daninha, ela nasce sem que ninguém cuide dela. Mas pra florescer uma rosa é preciso cuidar muito bem da roseira
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Muito boa esta imagem da erva daninha e da roseira para expressar a raiva e a afeição.
Obrigado por comentar e uma ótima semana.
PS: Por favor, quando comentar coloque seu nome, ok?
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Mais um domingo de alegria por receber sua cronica. Agradeço a Deus por ter saude para respirar toda a manhã e poder ler suas letras, mas vez em quando te comprimento pela paciência no transito onde reconheço, sou quase um psicopata… kkkkkkkkk
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O trânsito é uma fábrica de raiva. E das mais produtivas…
Obrigado pelas palavras!
Abraços e uma ótima semana!
PS: Por favor, não deixe de colocar seu nome quando comentar, ok?
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Recentemente, um fato semelhante no trânsito aconteceu comigo. Mas, ao contrário do motorista ter ultrapassado e seguido,como no seu caso, ele parou, desceu e com toda a agressividade, completamente possesso passou a gritar comigo. Ele também estava tentando a ultrapassagem forçada, eu estava dentro do limite da velocidade. No entanto, também acabei perdendo o “limite” da minha paciência com aquele ser, pois falar mansamente com pessoas nesse estado alterado, é inútil, eles não ouvem. Você tem razão! E o trecho da canção de Marisa Monte cai bem nesse contexto. Penso que estamos sujeitos à esses momentos de raiva. O próprio Cristo se enfureceu com as pessoas que estavam “negociando” no templo. No entanto, depois se acalmou, mudou a sintonia, a vibração. 🙂🙏🏼✨✍🏻📚🕊️
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Bem lembrado, Adriana. Se Cristo sentiu e expressou sua raiva, quanto mais nós…
Entretanto, pensar que a raiva no trânsito é de curta duração e sem maiores desdobramentos, talvez possa nos ajudar a encontrar uma melhor reação e não deixar que a raiva também nos domine. Que desafio…
Lembro agora de um episódio do filme argentino “Relatos Selvagens”, no qual uma situação banal de ultrapassagem em uma estrada conduz a consequências inimagináveis, raiva alimentando raiva, cada vez mais, até um ponto inconcebível.
Muito obrigado por seu comentário e desejo uma excelente semana!
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O seu ponto de vista é muito relevante, Antonio. Momentos de raiva, mesmo em um curto espaço de tempo, podem ser tão nocivos quanto uma guerra. E os danos se somatizam no corpo também, nos deixando doentes, seja pela raiva contida ou liberada na discussão. Como você cita, é um desafio. Eu ainda não assisti “Relatos Selvagens”, agradeço pela indicação. 🙂🙏🏻✍🏻🕊️
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Há por aí muita gente a guiar cujos principios são nenhuns. Parece que o volante lhes dá poder e superioridade, mas perdem tudo o resto. Por vezes é preciso muita, muita paciência para situações como a que descreve. Também por isso, cada vez me apetece menos guiar.
Mais uma crónica com curiosos detalhes dos dias e das emoções que os constrem. Boas, más… e decepcionantes também. Concordo consigo António essas últimas são das mais dificeis. Mas a decepção faz parte da vida enquanto não conseguimos definitivamente por de lado as expectativas.
Pessoalmente tenho “treinado” bastante, mas as malandras têm cola…. 😉
Boa partilha, como sempre.
Boa semana!
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Dulce,
Agradeço seu comentário.
O volante parece mesmo transformar muitas pessoas. Ainda aprecio guiar, pois gosto de carros, mas estes incidentes são um preço caro a pagar e aparentemente sem solução.
As expectativas que criamos ainda vejo como um grande desafio: como você bem disse, as danadas não nos deixam e, no meu caso, ainda são muito exageradas…
Obrigado por dedicar seu tempo a ler e comentar.
Desejo uma ótima semana a você e sua família!
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Querido amigo Antônio Carlos,
Ótima crônica para nos lembrar sobre raiva e reações intempestivas.
Precisamos vigiar e estar sempre atentos.
Boa semana e um forte abraço.
Newton
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Amigo Newton,
Sempre um prazer o nosso contato. Fico contente que tenha gostado.
Desejo a você e Nuri uma ótima semana, meu saudoso amigo.
Abraços!
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Foi um prazer ler a sua crônica. Identifiquei-me em alguns trechos, ri em outros, e em outros queria entender mais as nossas reações.
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Obrigado por comentar, Silvana!
Divertir e fazer pensar é sempre o meu objetivo principal ao escrever as crônicas.
Fico contente que tenha apreciado.
Desejo uma ótima semana!
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Meu querido e amado Amigo!
Que beleza de crônica de uma assunto tão difícil de ser abordado. Você conseguiu brilhantemente nos mostrar dois sentimentos inerentes aos humanos.
A raiva, como você relatou, é passageira e pode na maioria dos casos, ter a nossa benevolência porém, a Decepção é terrível e particularmente , é muito dolorosa e quase sempre eterna.
Mas, isso é papo pra muitas horas.
Parabéns, parceirinho
Beijos em todos em especial no Gabi.
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Meu Caro Amigo Sarmento, muito boa noite. Não sei explicar o porquê de ter demorado tanto para ler essa crônica. Enfim, acabei de lê-la , qual não foi a minha em descobrir que você é tão humano quanto eu e tantos outros seres com os quais convivemos. Provavelmente um sem número de fãs seus, teriam a mesma atitude sua frentes às situações que relatou. Isto comprova que, não que sejamos todos imperfeitos mas, sim que nosso propósito nesta etapa de vida é buscarmos nos livrar de deficiências que atuam, como “Quinta Colunas”, no íntimo de nosso ser. Se e quando puder, dê uma olhada no site da Fundação e baixe o livro Deficiências e Propensões do Ser Humano, certamente você encontrará sentido no que estou falando. Mais uma vez parabenizo-o por mais uma crônica fruto de uma vivência e/ou experiência espetacular. Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Jean, ao Príncipe Guilherme, ao recém chegado Gabriel e demais familiares.
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Meu amigo Jorge Haroldo,
Eu sei porque você demorou a ler e comentar. É que desejava fazer um comentário rico, com argumentos e observações e ainda, exagerando na gentileza, indicar um livro da Logosofia.
Obrigado, meu amigo!
Grande abraço e lembranças à Sueli, Luizinho, Júnior e a rainha Catarina!
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