ENGARRAFADO

Há alguns dias gostei de ficar por um tempo engarrafado no trânsito. Perdão leitor, antes de achar que é um caso de insanidade mental, permita que eu me explique melhor.

Faz umas duas semanas, peguei meu carro e parti para um compromisso, daqueles com hora marcada para valer. Numa cidade grande como o Rio de Janeiro, marcar hora para chegar em locais distantes é um grande desafio: a gente consegue chegar adiantado ou atrasado, mas chegar na hora certa é quase um fenômeno.

Saí de casa com uma antecedência absurda, prevendo os congestionamentos, o tempo para conseguir estacionar e outros imprevistos que mesmo os excelentes aplicativos de mapas não conseguem apurar com precisão.

Dito e feito: ainda na primeira metade da viagem, um pequeno caminhão sofreu uma avaria e sua parada acrescentou uma lentidão até então inexistente, aumentando o percurso em quase 20 minutos. A antecedência exorbitante me deu conforto e permaneci sossegado, mesmo sob o efeito da cansativa monotonia daquele anda e para curtinho, que me fez lembrar uma torneira pingando. Era aquele vai não vai, a impressão de que nem saíamos do lugar.

Não foi intencional, mas para escapar do tédio, minha mente resolveu enveredar por uns pensamentos desconexos. Me ocorreu que o mundo acelerou muito nos últimos 30 ou 40 anos. A gente andava, passou a correr e agora está voando!

E, pelo menos para mim, foi meio sem perceber, sem ter consciência. Parece que eu tomava banho num rio de águas calmas e aos poucos formou-se uma leve correnteza que foi me arrastando, fui vendo as coisas passarem cada vez mais velozes e agora me sinto numa verdadeira enxurrada! A vida adquiriu um ritmo frenético, uma descida de montanha russa, uma viagem a jato pelos dias e anos.

O tempo está tão aligeirado que parece não dar oportunidade para pensar. Me sinto como se estivesse dirigindo com muita pressa numa estrada, na ânsia de chegar, com muita velocidade e urgência, mas sem saber para onde estou indo e muito menos o que vou fazer quando chegar lá.

Dá a impressão de que nos tempos atuais vamos vivendo, fazendo, correndo, ganhando, perdendo, crescendo, encolhendo e morrendo, tudo numa celeridade desconcertante.

Minha internet era de um mega, passou para dez, virou cinquenta, agora é cem e já me oferecem quinhentos. Diz a oferta que, com um acesso mais veloz, vou ganhar tempo, mas desconfio que esta seja a maior ilusão deste século. Tenho a impressão de que todo tempo ganho é imediatamente transformado em mais atividades, mais compromissos, mais informações. Ufa!

Como eu gostaria de saber onde foi parar o ócio, o tempo livre, o nada para fazer, a hora da preguiça, a calma e a paz. Como eu gostaria de deixar um pouco de lado a lista de coisas a fazer, interminável e, por isso mesmo, frustrante. Como eu gostaria de fazer uma pausa da mente, viver pausadamente…

Voltei ao momento real, já saindo do congestionamento e passando ao lado do caminhãozinho enguiçado. Observei o motorista tenso, nervoso, ao telefone e provavelmente pensando: logo agora que eu estava com pressa. Para ele a sensação de ser preso, para nós a de sermos libertados. Que alívio!

Final de engarrafamento é equivalente a largada de Fórmula 1: sai todo mundo acelerando loucamente como a querer compensar o tempo perdido, descarregar as tensões decorrentes da retenção e desfrutar as delícias da velocidade.

Mas, parafraseando o poeta Drummond, no meio do caminho tinha um sinal de trânsito. Tinha um sinal de trânsito no meio do caminho…

Os carros haviam partido alvoroçados, no afã de embalar pela avenida, como uma rolha de champagne prestes a explodir, mas o sinal ficou vermelho, contendo todo aquele ímpeto. Foram parando um atrás do outro, frustrados, inconformados, mas obedientes. Queriam todos ser daltônicos para olhar o vermelho e enxergar o verde.

Ainda com tempo de sobra, eu mais observava que participava. Com as reflexões em mente, percebi na rua transversal bem próxima ao sinal, outro pequeno caminhão, muito parecido com aquele que enguiçou, embicado para entrar na avenida. Não sei se por vingança ou pela ansiedade, ninguém dava passagem e o rapaz aguardava pacientemente, sabendo que sua única chance de prosseguir e ingressar na avenida era com o sinal fechado, pois ao abrir, o grande fluxo e a velocidade do trânsito contraindicavam qualquer tentativa.

Por absoluta falta de pressa, resolvi parar distante do carro da frente e deixar o espaço que ele precisava para finalmente sair da transversal e seguir seu caminho. O rapaz já estava tão desanimado que sequer olhava o movimento. Dei então uma pequena buzinada e estendi a mão direita, oferecendo a passagem.

Ele quase não acreditou. Depois de tanta hostilidade, um pouquinho de cordialidade. Surpreso, agradeceu com os olhos e retribuiu com um aceno de mão. Eu respondi com a mão espalmada e um aceno de cabeça, achando que ali se encerrava o episódio.

Mas ele não se deu por satisfeito. Juntou as mãos e ficou sacudindo na altura do peito, como se quisesse me dar um abraço. Tanto agradecimento por tão pouco, pensei. Fiz o mesmo gesto que ele, balancei as mãos juntas algumas vezes e depois voltei a acenar para dar passagem.

Ele então colocou o veículo em movimento e foi entrando na avenida. Quando passou bem em frente ao meu carro, fez uma breve parada, desceu a máscara de proteção contra a Covid-19 e me entregou um longo e iluminado sorriso.

Eu o imitei imediatamente.

Trocamos um gesto de despedida como se fossemos amigos de longa data, enquanto o sinal abria e éramos novamente absorvidos pelo frenesi do trânsito. De volta ao tudo rápido, bem depressa, sem tempo para nada, como tem que ser a vida agora…

Aquele momento do engarrafamento de trânsito me fez parar. Parada obrigatória, sem alternativa, sem ter para onde correr. E assim, me permitiu pensar em toda esta aceleração descabida dos nossos dias e em suas numerosas, ou melhor, incontáveis consequências.

Percebi ali, no sinal fechado e na reação do rapaz, que a pressa também subtrai o espaço para a gentileza. Eu só dei passagem a ele porque naquele momento não tinha pressa.

Porém, ao fazer aquela pequena gentileza, meu dia se transformou, ficou mais alegre. Foi melhor para mim que para ele!

Agora eu desejava conhecer aquele rapaz, tomar um chopp juntos, saber da sua vida, sua família, queria ser seu amigo. Aliás, prefiro pensar que ganhei um amigo, mesmo ele não sabendo disso. Uma amizade platônica.

Segui caminho procurando outra oportunidade de ser gentil, fazer mais amigos, alegrar-me ainda mais. Porém, agora minha antecedência já havia encolhido e alguma pressa já me invadia.

Tenho receio de que toda esta velocidade possa acabar por nos fazer menos humanos. Como seria bom trocarmos a ligeireza pela gentileza.

Recordei a velha ideia de que a pressa é inimiga da perfeição. Acrescento que é também inimiga da afeição.

 

Antonio Carlos Sarmento

 

20 comentários em “ENGARRAFADO”

  1. Bom dia meu amigo! Volto a repetir de como somos parecidos! Eu não gosto, acho extremamente deselegante e descortês chegar em um compromisso atrasado! Qualquer que seja este compromisso. Graças a Deus a Reginia tem o mesmo pensamento que eu! Não esqueçamos que as mulheres sempre atrasam, até na hora do casamento, que acho que é uma das coisas mais importantes da vida delas! hahaha… Então, também saio de casa com muita antecedência e também me permite ir verificando as barbaridades que os “mautoristas” fazem no trânsito! Temos de tudo! Avanço de sinal, subida nas calçadas, fechadas desnecessárias, pressão na traseira do meu carro (mesmo eu estando na minha direita) para que corra mais e mais, enfim uma loucura! Semana passada estávamos em Campinas e peguei o carro do Artur para ir só supermercado, eu e a Reginia, e parados no sinal fechado, quando de repente ao abrir o sinal a motorista atrás de nós deu uma batida no nosso carro e sequer eu tinha dado partida no meu! Era uma corretora de imóveis que possivelmente estava atrasada e no celular e ao abrir o sinal partiu para cima do meu carro. Pois bem eu estava exatamente à direita da rua numa faixa que cabiam três automóveis parados. De sorte não aconteceu nada na traseira do carro! Mas é muito chato! Preciso colar um adesivo nas traseiras dos carros dizendo: “Gentileza gera gentileza”. Lembro-me, quando mais jovem, do “Profeta Gentileza” na Avenida Brasil na altura do Cajú com suas “tábuas” nas mãos escrito várias e várias vezes: “Gentileza gera gentileza”. Um grande abraço, feliz domingo e desculpe-me por este enorme texto.

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    1. Meu amigo Aylton,
      Não há que se desculpar pelo texto do seu comentário. Eu quero é agradecer por compartilhar seus pensamentos e passagens da sua vida, sempre interessantes e bem humorados.
      Muito obrigado, meu querido amigo e que você e Regínia tenham uma excelente semana!

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  2. Verdade… a pressa é inimiga da… gentileza. Às vezes tô no carro de carona e me dou conta que estou olhando pro celular ao invés da paisagem. Aí qdo me toco, paro e olho pro mundo lá fora. Tão legal olhar a paisagem (ainda mais no Rio) e a vida acontecendo lá fora… é um exercício constante.

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  3. Gosto muito desta crônica! Ela consegue tratar de temas sobre os quais penso muito também: a velocidade em que vivemos, as pequenas gentilezas que mudam o dia de alguém, a humanidade que estamos perdendo diante da pressa. Obrigada por propiciar estar bela (re)leitura!

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    1. Tati,
      Fico feliz que tenha curtido novamente a leitura. Você é daquelas pessoas que não está perdendo a humanidade. Obrigado pela “pequena gentileza” de comentar, mesmo já conhecendo o texto através do livro.
      Uma ótima semana!
      Abraços

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  4. Otima crônica para reflexão. Sarmento aqui onde vivo ha uma piada que diz que VENHA A MIAMI depois visite a América! Antes era va a Portugal depois va para a Europa.
    Miami não é muito America. Dado que somos um estado lotado de imigrantes Sul-americanos, temos um transito meio “brasil”.
    O que para uns torna a Florida um charme. Pra mim, um caos.
    Mas o que me fez refletir muito na sua crônica foi sobre a correria da vida que faz parecer que o dia tem 15 horas, não mais, 24, e na nossa idade isso é trágico…. Tenho netos adolescentes e começo a temer que em breve eles falarão um dialeto e expressões que não serei capaz de entender.
    Que pena… Agora pra distrair, ouvi outro dia de um amigo que me perguntou: Sabe qual a diferença entre um americano mascando chicletes e uma vaca ruminando?
    E por pura maldade ele respondeu : O olhar inteligente da vaca…. Kkkkkkkk
    Bom domingo, boa semana e que Deus nos abençoe.

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      1. Deixe eu te dizer uma coisa: Não encontro um horário no meio da correria (até porque ja não corro tanto…). Ler suas crônicas hoje, fazem parte de momentos de lazer no meu dia e compartilho com amigos daqui, que honra ter um amigo que é um grande cronista. Acredite no que lhe digo. Deus te abençoe.

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      2. Muito obrigado, Luigi. Você é sempre generoso comigo.
        Vejo pelo aplicativo que há leituras nos Estados unidos, fruto do seu gentil compartilhamento.
        Fique com Deus, meu amigo! É um prazer ter você como leitor assíduo e fiel!

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  5. Caro Amigo Sarmento, muito bom dia. Não sei se foi proposital, penso que tenha sido, a crônica desta semana, a meu ver, está em completa sintonia com aquela publicada na semana passada. É com enorme prazer que volto a parabenizá-lo pela sua verve, brilhante. A frase: Como eu gostaria de fazer uma pausa da mente, viver pausadamente… é a prova inequívoca do seu brilhantismo. Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Jean, ao Guilherme e demais familiares.

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    1. Caro amigo JH,
      Também vejo a correlação que você indicou com a crônica da semana passada. São as coisas que ficam na cabeça e vão se prolongando…
      Muitíssimo obrigado por comentar, meu amigo.
      Estamos indo hoje ao encontro dos “portugueses”.
      Saudações à toda a família, Sueli, Luizinho, Júnior e a graciosa Catarina!
      Uma maravilhosa semana para vocês!

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  6. Verdade meu amigo: com a correria só hoje pude ler sua crônica . Acho que na medida em que envelhecemos o tempo passa mais rápido. Quando vcs voltam de Portugal? Espero que o tempo passe mais devagar quando estiverem por lá. Beijo grande em todos e boa viagem.

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    1. Oi minha amiga Lucia,
      A correria é generalizada. Mas quando envelhecemos correr cansa mais e aí o nosso desafio é buscar equilibrar mais o tempo.
      Chegamos em Portugal e vamos ficar aqui por uma temporada mais longa… também espero que o tempo passe mais devagar!
      Bjks e obrigado por comentar!

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  7. Quando li a crônica deste domingo, lembrei dos 30 anos em que saí da Barra às 6h15m da manhã, para chegar na Universidade Santa Úrsula às 7h30m. Qualquer acidente no percurso era terrível!
    Esse tempo passou e agora posso usufruir esse mesmo trajeto olhando a paisagem, descobrindo seus mistérios e observando as pessoas. Quantas oportunidades temos de contribuir com pequenas atitudes que fazem a vida tornar-se melhor!
    Sem lamentar a pressa do passado, necessária, hoje me sinto como São João da Cruz quando se pos a caminho em busca de Deus: saía de casa em vivas ânsias inflamada…hoje estou em casa, sossegada!
    Linda crônica que toca o coração e faz vir à tona pedacinhos da vida.
    Um abraço fraterno.

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    1. Amiga Helena,
      Seu poético comentário me agradou. É tempo de oportunidades para nós, agora livres de horários rígidos e compromissos inadiáveis. É tempo de observar as belezas criadas por Deus e desfrutar da vida da melhor possível, com calma e sossego. Fico feliz de saber que você está vivendo assim!
      Muito obrigado por comentar.
      Beijos e que tenha uma excelente semana!

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  8. Olá, boa tarde! Meu nome é Sarah e estou aqui para dizer que o seu texto retrata a realidade de uma forma que é tão interessante e poética quanto muitos textos famosos. Eu concordo completamente , principalmente com a parte em que você diz que se lembrou da velha ideia de que a pressa é inimiga da perfeição, mas me surpreendeu o fato de você ter dito que ela também é inimiga da afeição, embora eu concorde. Mas a parte que eu mais gostei e identifiquei meu pensamento foi a que você disse que a velocidade pode nos fazer menos humanos e que não deveríamos trocar ligeireza e gentileza. Amei o texto, parabéns.
    Minha professora, Kely Stefany de Oliveira, inseriu esse texto em nossa avaliação de redação e expressão. Após a correção da mesma, ela pediu a nós, alunos, que escrevêssemos nossos comentários em seu blog.

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    1. Olá Sarah,
      Com prazer recebo seu gentil comentário.
      Fico contente que tenha apreciado o texto e até achado poético.
      Percebo que captou bem o tema e as ideias te levaram a reflexões – este é o meu objetivo ao escrever.
      Peço que agradeça à Professora Kely Stefany por usar o texto para o ensino e também por estimular que seus alunos escrevessem em meu blog. Se ela permitir, me informe o e-mail para que eu a agradeça diretamente.
      Por último, fiquei curioso em saber o grau de escolaridade da turma e em que cidade fica a escola.
      Desejo sucesso nos estudos e deixo o convite a que conheça mais do meu trabalho através de outras crônicas publicadas.
      Um cordial abraço,
      Antonio Carlos sarmento

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  9. Olá, meu nome é Vinícius,eu li a sua crônica e gostei muito dela.
    Realmente quando você está no trânsito e começa a pensar, o tempo voa, eu também passei por isso.
    Eu achei muito legal essa sua ideia de fazer amigos no engarrafamento, porque geralmente as pessoas só pensam em sair dali e não têm bondade no coração.
    Parabéns pelo ótimo texto.
    Minha professoras Kely Stefany colocou o sua crônica em nossa prova de redação e ela pediu para que nós comentassem oque escrevemos em seu blog

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    1. Olá Vinícius,
      Com alegria recebo seu comentário sobre a crônica ENGARRAFADO.
      E agradeço suas palavras de elogio ao texto.
      Não sabia que a crônica havia feito parte da prova da sua turma, mas ontem recebi também um comentário da sua colega Sarah.
      Fico realmente contente que minha escrita esteja sendo usada para fins de ensino e desejo que tirem um bom proveito.
      Peço ainda que estenda o meu agradecimento à professora Kely e envio um carinhoso abraço a você e a todos os seus colegas.
      Terei sempre prazer em mantermos contato por este canal.
      Felicidades nos estudos!
      Antonio Carlos Sarmento

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