Que dificuldade! Empregada não parava naquela casa. Começava bem, passavam os primeiros dias, e em algumas semanas a coisa desandava. Parecia um mingau mal mexido, que no começo vai bem, mas depois de um tempo começa a embolar, até que encaroça tudo e não tem mais solução.
E era apenas um casal com um filho recém-nascido. Mauro e Nádia até ali tinham vivido sem empregada, mas agora, com o bebê, estava impossível. Mauro era médico e trabalhava muito. Ela sozinha em casa tinha como prioridade o bebê. Havia dia que não lhe sobrava tempo para sequer tomar um banho. Na maioria dos dias era um contraste: o bebê um brinco e ela um traste!
Como poderia ainda cuidar da casa, da comida, da roupa e de tantos afazeres domésticos? Depois do quarto insucesso com empregadas recrutadas através de indicações de amigos, Mauro resolveu buscar outro caminho.
– Vamos trazer do interior, Nádia. Aqui no Rio de Janeiro não tem jeito.
– Será que é algum problema nosso? – preocupou-se ela.
– Que nosso nada. O diagnóstico é o seguinte: aqui quem tem empregada boa não larga nunca mais. As que estão disponíveis têm mais efeitos colaterais que benefícios.
– Ai meu Deus! Lá vem você com essa irritante linguagem de consultório. Não temos como sair daqui para o interior catando empregada.
– Precisamos de uma empregada “orgânica”, livre do agrotóxico da modernidade. Vacinada contra os males da cidade grande. Uma espécie ecológica. – disse ele.
– E será que existe?
– Já falei com o meu primo Matias lá na Bahia. Ele conhece uma família na fronteira com o Piauí, perto da Serra das Confusões. Já tem uma pessoa para nos enviar. Produto puro da terra, natural, sem transgênicos!
– Ainda mais essa! Serra das Confusões… Não deve saber fazer nada.
– Deixa disso. Nádia. Você vai ensinando as coisas homeopaticamente. Vamos enviar o dinheiro da passagem e em três dias ela estará aqui. Vindo de longe fica morando conosco. Com o uso contínuo, o prognóstico é de uma boa evolução. – insistia ele naquele vocabulário.
Nádia estava pessimista, mas era só intuição, sem explicação. E de fato não podia negar que sentiu acender uma pequena chama de esperança. É pagar pra ver, pensou ela mais resignada. Sem ninguém é que não dá pra ficar.
No domingo de manhã bem cedo, Mauro foi à estação rodoviária buscar a moça da Bahia. Tinha uns 19 anos, branquinha, magrela, olhos assustados, cabelos pretos e ralos. Vinha embalada num vestidinho simples de algodão, trazendo na mão uma pequena trouxa de roupa. Muito tímida, não deu uma palavra até chegar em casa, respondendo apenas sim ou não com gestos de cabeça e olhar para o chão.
Mauro achou tudo normal: imagina o que estava sendo para esta moça a Rodoviária cheia como um formigueiro e aquela cidade enorme, com seus prédios altos e avenidas largas. Isso para ela era “tarja preta”, pensou. Uma coisa é pegar uma pessoa nascida e criada na cidade grande e um dia levá-la ao contato com o campo, na natureza virgem. Puro deslumbramento, sair do ambiente criado pelo homem para o ambiente criado por Deus. Qualquer um se larga alegremente como um passarinho solto da gaiola e vai para o deleite do contato com a natureza. É ir da piscina para o mar. Outra coisa é o inverso, como estava ocorrendo. As invenções humanas não possuem a beleza e a naturalidade da criação de Deus. Mauro foi pensando nisso e, aquele seu irremediável cacoete médico o levou a imaginar que, se as pessoas viessem com bula, esta recomendação estaria lá em letras maiúsculas, com certeza.
Em casa, Nádia aguardava com expectativa e, mais por necessidade do que por bondade, estava decidida a ter muita paciência e compreensão. Apertou a mão da moça com um sorriso e perguntou-lhe o nome:
– Arminda. – disse ela ainda muito assustada, dando a conhecer a sua voz.
– Seja muito bem-vinda. – rimou Nádia. – Venha por aqui que vou mostrar o seu quarto e o banheiro.
Chegando ao quartinho indicou:
– Esta é a sua cama e pode guardar suas coisas neste armário.
– Cama?
– É. Cama. Não sabe o que é cama, minha filha? Pra dormir. – disse Nádia sem conseguir esconder certa irritação e já sentindo esmorecer sua vontade de ser paciente e compreensiva.
– Lá em casa a gente dorme em esteira.
– Tem luz elétrica?
– Não senhora.
– Ai meu Deus! Vem ver o banheiro. – disse Nádia para tentar escapar daquele constrangimento.
Arminda olhou o banheiro como se nunca tivesse visto um daquele tipo. Nádia notou o embaraço e levantou a tampa do vaso para demonstrar o uso. Exatamente neste momento ouviu o bebê chorar e lá se foi apressada para atender o pequenino. Foi só o tempo de repor a chupeta, voltou e deparou-se com uma cena grotesca: Arminda ajoelhada em frente ao vaso sanitário, com as mãos em concha, jogava água no rosto repetidas vezes.
– Menina, o que é isso??? – gritou Nádia descontrolada.
Com o grito, Mauro chegou correndo. Viu a cena, mas foi comedido:
– Minha filha, aí é para fazer as necessidades fisiológicas. A assepsia você faz aqui. – disse ele, indicando a pia.
– Assepsia! Necessidade fisiológica! Você tá maluco? Some daqui Mauro! – revoltou-se Nádia.
Ele ia dizer que para tudo há remédio, mas num raro momento de bom senso, percebeu que seria melhor ficar calado. Saiu cabisbaixo, achando que faltava à mulher um pouco mais de paciência. A moça nunca morou em cidade e provavelmente não conhecia água encanada.
Nádia respirou fundo e, já um pouco desanimada, continuou a orientar Arminda:
– Quando você tiver vontade de fazer cocô ou xixi é só levantar a tampa, sentar e se aliviar, entendeu? Depois se limpe e antes de sair do banheiro lave as mãos aqui nesta pia.
– Sim senhora. Tá entendido. – disse Arminda, de cara lavada. Lavada não, molhada.
– Então use a pia agora e venha tomar o seu café. Depois nós continuamos.
– Eu posso fazer cocô primeiro?
– Arminda, você não precisa perguntar isso. Não precisa e não deve. Diga apenas que vai ao banheiro, tá bem? E lembre-se de sempre lavar bem as mãos.
Nádia deixou o café dela sobre a mesa e foi ver o bebê. Ao voltar Arminda já havia devorado a refeição e retirava a louça. Em seguida passou a lavar tudo que havia na pia da cozinha, encantada com a água encanada. E também encanada com aquela água encantada, brotando abundantemente da torneira.
Nádia até notou certa destreza. Animou-se um pouco em meio a tanta frustração. Com o bebê ao colo foi orientando cada passo do preparo do almoço. A moça era bem mandada. Pelo menos isso…
Arminda maravilhou-se com o fogão a gás, admirando-se daquela chama homogênea e azulada. Em pouco tempo o almoço estava pronto. Claro, nada espetacular, mas com o sabor simples de comida caseira. Mauro ficou contente e falou alto para Arminda ouvir:
– Taí, gostei do almoço. Carboidratos e proteínas bem saborosos.
– Ai meu Deus, que chatura! – suspirou Nádia para si mesma.
Findo o almoço, o casal foi descansar enquanto Arminda fazia sua refeição e depois lavava a louça. Veio a tarde e a calma parecia ter se instalado na casa.
Lá pelo início da noite, Nádia passeando pela casa para fazer o bebê dormir, aproximou-se da porta da cozinha e sentiu um cheiro ruim. Ruim não, horrível. Depois que deixou o bebê adormecido no berço, foi farejando como um cão de caça, seguindo o rastro e já pressentindo onde ia chegar. Bingo! No banheiro de Arminda.
Abriu a porta e ao levantar a tampa do vaso estava lá o acúmulo das excreções do dia todo. Um horror… Desceu a tampa e puxou a corda da descarga umas quatro vezes consecutivas. Que nojo!
– Arminda, vem cá. Minha filha, toda a vez que você vier ao banheiro tem que puxar esta cordinha, entendeu? Você não estava sentindo o cheiro?
– Senti não senhora.
– Mas não se esquece de sempre puxar a cordinha.
– Esqueço não senhora.
Dali pra frente Nádia passou a ouvir a descarga com muita frequência. De início ficou contente, achando que Arminda cumpria corretamente sua orientação. Bem mandada mesmo. Mas logo passou a achar que estava demais. Até as nove da noite a descarga já tinha sido acionada umas 6 ou 7 vezes. Será que Arminda estava passando mal? Alimentação diferente, sabe-se lá…
Resolveu conferir.
Ficou por perto, disfarçando, para observar a próxima ida dela ao banheiro. Não se passaram dez minutos, Arminda entra no banheiro apenas para guardar um balde, deixando a porta aberta. Coloca o balde no lugar e antes de sair, zelosamente, puxa a cordinha.
Nádia vai ao encontro de Mauro e pergunta:
– É verdade que produto natural não dura muito?
– É sim, acontece que quimicamente…
– Não precisa explicar. Amanhã de manhã coloca Arminda no primeiro ônibus de volta para a natureza!
Antonio Carlos Sarmento
Gostei muito, e acontecem fatos como este com muitos que vem do interior .Vida difícil !
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Valeu Chico!
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Muito boa
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Fico feliz que você gostou, Lucia!
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Po, tava torcendo pela moça, achei que ia dar certo.
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Hahahahaha. Nem sempre tem um final feliz… Obrigado pelo comentário Jeancarlo!
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Coitados! Uma triste experiência para os três.
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Comovente esta cronica. Como uma menina criada numa colônia italiana bem afastada do centro da cidade do interior de S. Paulo, entro na personagem. Como ela vivia no meu pequeno mundo onde tudo era simples, fácil e mágico como a vida que meus primos e eu íamos descobrindo a cada dia.
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Sioneia,
Muito obrigado pelo comentário. Fico contente que tenha despertado boas lembranças.
Um grande abraço!
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