ALMOÇO

Dizem que o pão do pobre cai sempre com a manteiga para baixo. Pois foi o que aconteceu comigo: um vidro de loção pós barba ganhou vida própria e saltou da minha mão no exato momento em que eu aplicava uma generosa porção no rosto. O infeliz, pesado e praticamente quadrado, bateu com uma quina na cuba de louça, deixando uma eterna marca de sua passagem pela minha casa.

O vidro de loção não quebrou e apenas parte do conteúdo foi perdida. Mas a sequela ficou na cuba, branquinha, que ganhou um pequeno ponto lascado na louça, registrando ali a mácula daquela tentativa de suicídio da loção.

Com o passar dos dias, aquele pequeno ponto, quase imperceptível, onde a louça lisa transformou-se em material poroso, passou a acumular limo e escurecer, mesmo com a limpeza regular.

Resultado: todas as vezes que eu utilizava a pia, meus olhos corriam para aquele ponto destoante. Coisa impressionante! Mesmo determinado a ignorá-lo, raciocinando que a quase totalidade da cuba estava branca, bonita e lisa, meus olhos teimavam em fixar-se naquela pequenina falha. Como é possível que apenas um pontinho ponha a perder toda aquela beleza branca e brilhante?

A coisa foi ficando tão desagradável que pensei: ou eu mudo ou muda a cuba. Claro, a cuba perdeu… Meus olhos não saíam daquele pontinho.

O rapaz da manutenção do meu condomínio, que veio para solucionar o conflito, considerou que trocar a cuba seria um serviço demorado e caro, pois envolvia a desmontagem do armário sob a pia, trabalhos hidráulicos e outras complicações. Orientou que a limpeza periódica com água sanitária deixaria o ponto branquinho, tornando a falha novamente imperceptível. Grande solução, bendita água sanitária! Fiz as pazes com a cuba e nos relacionamos bem até hoje.

O episódio me fez pensar que muitas vezes fazemos isso com as pessoas. Refiro-me ao fato de focalizarmos os defeitos, as falhas de comportamento, as palavras mal ditas e os atos imperfeitos. Muitas vezes, mesmo sendo pequenos, quase irrelevantes, é aí que concentramos o nosso olhar, julgando o todo pela parte. E quase sempre a parte negativa.

Tem casos, como o que passo a contar, em que apenas uma falha parece ter a capacidade de obscurecer todas as qualidades de uma pessoa.

Rodrigo trabalhava num edifício que, em seus 15 andares, abrigava muitas empresas. O estacionamento era no subsolo e as vagas mais próximas aos elevadores eram muito disputadas. Ao chegar numa segunda-feira, surpreendeu-se com uma vaga disponível em local privilegiado, bem ao lado do elevador social. Rapidamente girou o volante e ali estacionou, sentindo-se otimista com o dia que começava tão bem.

Entretanto, mal parou, passou a ouvir uma buzina que protestava repetidamente, parecendo gritar, amplificada pelo efeito sonoro do subsolo. Rodrigo olhou pelo espelho retrovisor e viu um sujeito esbravejando para ele de dentro de um carro. Ao perceber o olhar de Rodrigo, a pessoa parou de buzinar e gritou:

– Seu mal educado! Eu ia entrar nesta vaga.

Sem esperar resposta, o reclamante seguiu seu caminho, arrancando com o carro de modo abrupto. Foi em busca de outra vaga, com certeza bem mais distante. Naquele breve e desagradável contato, Rodrigo identificou que o sujeito trabalhava no prédio, pois já o havia visto por ali. Logo esqueceu o episódio e mergulhou no dia de trabalho.

Uns dois dias depois, entrou no elevador no fim do expediente e notou que o tal sujeito estava ao fundo, junto com outras pessoas. Ao vê-lo, Rodrigo virou o rosto. É incrível como nas relações humanas um nada pode virar tudo. Como é fácil criar uma inimizade… Rodrigo deu as costas, voltando-se para a porta em busca de escapar da incômoda proximidade física imposta pelo elevador. Enquanto descia, Rodrigo ia pensando que, se na hora do fato tivesse sido possível conversar, poderia ter explicado que realmente não viu nenhum outro carro quando entrou na vaga. E se a pessoa explicasse melhor, poderia ceder o lugar. Mas aquela atitude intempestiva, agressiva, inviabilizou qualquer entendimento. O fato é que ganhou um desafeto no edifício onde trabalhava, por algo sem a menor importância.

Toda vez que o via, a mácula sobrepunha-se à pessoa. Melhor dizendo, já não via a pessoa, mas a mácula, exatamente como aconteceu comigo naquele ponto escuro na cuba de louça branca. Quantas vezes fazemos isso… A mancha, o demérito, é só o que importa no outro.

Alguns meses depois, como de hábito, Rodrigo saiu para almoçar com Marcio, seu melhor amigo do escritório. Gostavam de almoçar juntos, pois ao contrário dos demais colegas, nunca falavam de trabalho durante o almoço.

Aguardavam o elevador para descer já escolhendo o restaurante do dia. Quando a porta abriu, lá dentro um único passageiro: o tal sujeito… Rodrigo resolveu ignorar a presença dele. Marcio murmurou “boa tarde” e ofereceu um rápido olhar, ficando claro que não se conheciam. O outro respondeu no mesmo tom. Os três desceram em silêncio até o térreo.

Logo que se viram sozinhos a caminho do restaurante, Rodrigo indagou:

– Marcio, você conhece este cara que estava no elevador?

– Não. Mas sei quem é. Chama-se Dutra. Conheço bem a secretária dele. Trabalham na empresa do décimo andar. Ela me disse que vão se mudar em breve.

Rodrigo aliviou-se. Ficaria livre daqueles constrangedores encontros, que pareciam ter se intensificado após o desagradável incidente na garagem.

– Entendi. Você está de olho na secretária dele… – provocou Rodrigo.

– Que nada. É uma senhora, muito legal. E o Dutra também, ótima pessoa!

Rodrigo armou-se. Ótima pessoa? Sujeito grosso e sem educação, isso sim.

– Isso é o que ela diz, Marcio. Claro, é secretária dele.

– O Dutra não gosta que ninguém saiba, mas ela me contou uma passagem que mostra bem quem ele é.

– Agora fiquei curioso. – duvidou Rodrigo.

– Disse que um dia ele saiu a pé para almoçar e um rapaz, aqui nas imediações da empresa, pediu um dinheiro para comer.

– Dar um dinheiro para alguém almoçar não faz dele uma ótima pessoa. – interrompeu Rodrigo.

– Calma. Ao invés de apenas dar algum valor e livrar-se do pedinte, o Dutra convidou o rapaz para almoçarem juntos no restaurante que costuma frequentar. Pediram ótimos pratos, conversaram muito e o almoço demorou quase duas horas. Teve até sobremesa, que não é seu costume, apenas para que fosse um almoço o melhor possível para o rapaz.

Rodrigo permaneceu calado…

Marcio continuou:

– Daí para frente, passou a ajudar o rapaz em várias necessidades.

– Muito legal. Bela atitude. – reconheceu Rodrigo, abatido e já arrependido de seus sentimentos.

– E tem mais: agora, toda terça-feira almoçam juntos. A secretária tem orientação de nunca marcar compromissos de almoço neste dia. Ele já disse a ela que é sempre o melhor almoço da sua semana…

Pronto: foi um banho de água sanitária na mancha!

Rodrigo ficou perplexo. Quanto brilho e beleza naquela pessoa oculta atrás de um diminuto ponto manchado.

No dia seguinte, chegou mais cedo ao trabalho e ficou aguardando próximo à porta do elevador. Quando Dutra, ainda de longe, notou a presença dele, mostrou certo embaraço, mas não tinha alternativa: aproximou-se e Rodrigo então ofereceu-lhe um sorriso, estendendo a mão:

– Eu sou Rodrigo. Queria lhe pedir desculpas.

Dutra retribuiu o sorriso e apertou a mão de Rodrigo:

– Aquilo foi uma bobagem. Eu é que devo me desculpar.

Três meses depois a empresa de Dutra mudou-se. Rodrigo nunca mais viu a pessoa que mais admirava naquele prédio.

 

Antonio Carlos Sarmento

33 comentários em “ALMOÇO”

  1. Linda e comovente crônica. Erramos quase sempre por julgarmos o todo por um detalhe. Parabéns pela crônica e sensibilidade. Bom domingo e fique com Deus.

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  2. Prezado Antonio Carlos:
    Ainda existem pessoas generosas como o Dutra. Aliás, este mundo que vivemos precisa de muitos Dutra´s para melhorar seu o nível de convivência e solidariedade.
    Sds. do amigo e admirador,
    Carlos Vieira Reis

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  3. Seria mal de Rodrigos? Me identifiquei com alguns “pontos” desta incrível crônica. Parabéns meu amigo! Hoje mesmo comprarei uma água sanitária!

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  4. Meu Caro Amigo, Muito bom dia, Isto não é apenas uma crônica, é um texto encharcado de verdades . . . Há alguns dias, durante meus estudos de Logosofia, deparei com um texto bastante interessante e que vem ao encontro, a meu juízo, do pano de fundo, desse seu texto: *“Os seres humanos são diferentes uns dos outros em cultura, em educação, em idade, em juízo e em tudo; mas a Logosofia os une pelo vínculo do respeito, da tolerância inteligente, da paciência ativa e do conhecimento”.* Parabéns!!! Recomendações à Sônia e demais familiares.
    Livre de vírus. http://www.avast.com .

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  5. O elevador, um local de encontros inusitados, mesmo que breves.
    Cada abertura da porta, uma surpresa!
    Um funil por onde passam oportunidades imponderáveis, onde o breve momento passa a mexer com nossos sentimentos e fantasias.
    No caso do Rodrigo como bem desenvolvido na crônica, uma oportunidade de reconciliação.
    Parabéns e tenha mais cuidados com os potes de loção no banheiro.

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  6. Amigo querido, é incrível como em cada leitura de suas crônicas, me deparo a lembrar de situações e comportamentos que por muitas vezes pareço já ter vivido . O pré julgamento sempre considero um defeito em nós humanos . Bjs

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  7. Infelizmente, todos nós, muitas vezes julgamos alguém por uma atitude momentânea, sem conhecer a pessoa, sem saber o que aquela pessoa pode estar com um problema, até mesmo tem um dor armazenada na memória algo marcante que o atormenta diariamente, ou até um problema sério de saúde com alguém próximo e etc…
    Vale uma profunda reflexão sobre saber o que é verdadeiramente ter empatia.
    Que o nosso aperto de mão venha antes do julgamento ou crítica .
    Parabéns Cacau!
    Muito boa crônica.

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  8. Estou vendo sua crônica pela primeira vez e por acaso. Um feliz encontro!!
    Não sabia que você escrevia coisas assim tão interessantes. Só tive a oportunidade anteriormente de conhecer seus “memorandos e relatórios”!!!! KKKKK!!!!
    Que bom! Vou procurar te acompanhar nas escritas.
    Um grande abraço para você e seu irmão!!!

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    1. Quinta,
      Bom ver você por aqui. Um prazer, de verdade!
      Que legal ter gostado da leitura.
      Se quiser ver outras crônicas é só colocar no Google “cronicaseagudas.com” e vai encontrar o site completo.
      Vou transmitir seu abraço ao Wellington.
      Muito obrigado por comentar e um grande abraço!

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  9. Poxa irmão, que história linda!!
    Aliás, essa é a sua marca.
    Não por acaso ,hoje é o dia do Perdão!!
    Que nossos estoques de água sanitária sejam renovados na fé e possamos despertar o “Dutra” que há em nós!!!!

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  10. Ótima crônica e reflexão Cau!
    Rodrigo com sua sensibilidade curvou-se ao enxergar a generosidade de Dutra, a gota de água sanitária para clarear o ponto obscuro do breve relacionamento.
    Beijos.

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  11. Gostei muito de sua crônica.Desculpe não escrevi de outros comentários. Rodrigo e Dutra ficaram amigos.Bonito também o gosto do Márcio.Ficaram os três muito amigos. Parabéns meu amigo .

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  12. Meu primo, voce apresenta muito bem os temas que aperfeiçoam o caráter e os que promovem harmonia nos relacionamentos.
    Essa abordagem é constante, faz parte de seu estilo. Um grande abraço por seu comprometimento com valores! Reflexo de uma boa alma.
    “… é aí que concentramos o nosso olhar, julgamos o todo pela parte.”
    Teimosos que somos! Nao sabemos que ” o essencial é invisível para os olhos”? ( Exupéry).
    Rodrigo percebeu a mensagem: mais sensato ( e proveitoso) é conhecer que julgar.
    Beijo

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