TIRANDO ONDA

O garoto tinha 10 anos. Num sábado ensolarado foi com o pai à praia do Leme, no Rio de Janeiro, só os dois. Uma grande diversão do banho de mar na década de 1960 era o chamado “pegar jacaré”, que consistia em aproveitar a carona de uma onda e deslizar sobre as águas, levado por ela até quase a areia. O corpo firme e os braços esticados à frente funcionavam como uma prancha e proporcionavam um belo passeio. A garotada e mesmo os adultos não se cansavam de ir e vir entre a arrebentação e a água rasa, repetindo incessantemente a prazerosa experiência.

Naquela época começaram a aparecer as primeiras pranchas para esta finalidade, feitas de isopor. Eram pequenas, cerca de um metro de comprimento, precursoras das atuais pranchas de bodyboard. O garoto havia experimentado a de um amigo e ficou fascinado. A prancha sob o peito permitia um “jacaré” muito mais estável, veloz e agradável. E ainda facilitava a volta à arrebentação em busca da onda seguinte. Desde que experimentou o artefato não deu sossego à mãe, até que ganhou uma de presente. Naquele sábado fazia a estreia tão aguardada.

O pai fincou a barraca na areia, estendeu uma toalha e mergulhou em seu exemplar do jornal, enquanto o garoto se preparava para aproveitar aquele fantástico jet-ski sem motor.

Entrou no mar orgulhoso e excitado, com a peça branquinha embaixo do braço. Quando a água chegou pela cintura, deitou sobre ela e batendo os pés encantou-se com o deslocamento tão facilitado pelo objeto flutuante. Seu desenho hidrodinâmico era perfeito e com facilidade vencia as espumantes ondas em sentido contrário. Logo chegou à arrebentação e ali ficou deitado, batendo levemente os pés e flutuando sem esforço naquela região tranquila onde as ondas crescem, mas não quebram. Cada onda apenas o fazia subir e depois descer, praticamente um “jacaré” vertical.

Quando a onda passava, ele olhava para trás apenas para ver a crista se curvar e a massa de água derramar-se ressoante, espumando no seu trajeto até a areia. Um ângulo inusitado e privilegiado.

O garoto ficou ali naquele desfrute, envolvido, encantado e adiando o momento de deslizar no “jacaré”. Entretanto, o secundário virou principal: flutuar na arrebentação tornou-se um prazer tão completo que não queria mais nada.

Depois de algum tempo passou a divertir-se indo ao encontro da próxima onda. Nadava deitado na prancha e escalava a parede de água em velocidade: assim, ao chegar no topo a prancha projetava-se ligeiramente no ar, dando a sensação de que iria voar!

E assim, foi, de onda em onda, distraído e divertido.

Quando se deu conta os prédios do Leme haviam ficado pequenos. Assustou-se. Tinha se afastado muito da praia e precisava voltar. Seu coração acelerou e um princípio de pânico dominou seus sentidos. Girou apressadamente a prancha e iniciou o caminho de volta com braçadas vigorosas, sucessivas e descoordenadas. Sua sensação foi de que não estava avançando o suficiente. A prancha parecia seguir mais o movimento das águas e afastá-lo da costa, sem obedecer aos seus comandos. O pânico crescia.

Porém, o medo é mau conselheiro e o garoto, intempestivamente, resolveu largar a prancha e retornar a nado, apenas com a força de seus braços. Sim, seria mais veloz — pensava ele. A prancha estava atrapalhando. Ela o conduziu àquele ponto tão distante e agora relutava em trazê-lo de volta. Era sua inimiga.

Pensou e fez. Deixou a prancha e passou a nadar. Nunca desejou tanto pisar em terra firme. Dava braçadas em sequência e sentia deslocar-se. Porém, a distância era enorme e com a respiração ofegante pelo nervosismo, o cansaço chegou muito rápido. Parou.

Olhou para trás e a prancha já ia longe, levada pelo vento e pela maré. Se estivesse perto poderia resgatá-la e usar para flutuar sem precisar do esforço que agora despendia para não submergir. Que arrependimento!

O pânico transformou-se em desespero. Elevou o corpo o mais alto possível, levantou o braço direito e gritou “socorro” com todas as suas forças. Em seguida, pelo esforço do grito e da movimentação, afundou. Logo emergiu e repetiu o pedido em grande aflição. Seu pensamento confluía para a mãe. Por ela precisava se salvar, para poupá-la de enorme sofrimento.

Em pouco tempo este movimento o esgotou. Resolveu então boiar com o corpo todo: deitou de costas, abriu os braços e as pernas e descansou um pouco. Um barco à deriva…

Tentava acalmar-se, mas a situação era muito difícil para um solitário garoto de 10 anos. Quando se sentiu capaz, repetiu mais umas três vezes o pedido de socorro, sem ter nenhuma noção se estaria sendo ouvido por alguém. Voltou a boiar, olhando o céu. Devia pensar em Deus, rogar pela salvação de sua vida, mas não conseguia. O martírio pela lembrança da mãe impedia qualquer outro pensamento. Nunca se sentiu tão só.

Ao colocar-se novamente em posição para o pedido de socorro pôde ver um nadador se aproximando. Piscou os olhos. Era uma miragem, uma alucinação. Olhou de novo e teve a certeza de que era real e vinha em sua direção. Uma imensa esperança nasceu dentro de si. Mas estranhamente, ao mesmo tempo, o temor aumentou: achava que não ia dar tempo, que não aguentaria vivo até a chegada daquele anjo que nadava. Morreria na iminência de ser salvo. Ai minha mãe.

Não tinha mais condições de colocar-se boiando. O nervosismo impossibilitava. Submergia e voltava à tona sucessivamente, bebendo água e perdendo cada vez mais o fôlego. Até que o salva-vidas o pegou por baixo do braço esquerdo. Sentiu aquele toque firme e pensou: Mãe, estou salvo, seu filho está vivo! Chorou.

Dali em diante, o braço forte o colocou flutuando de costas, virado para a linha do horizonte e o rebocou com destreza, num enlace que não compreendia, mas que deixava sua cabeça fora da água, apoiada no ombro do anjo. Por baixo de seu pequeno corpo, a sustentação rija do corpo dele. A cada remada do salva vidas com um único braço, sentia o avanço na água em direção ao solo firme.

Em pouco tempo chegaram à areia, onde uma multidão os cercava. O salva vidas o carregou no colo e depositou seu corpo na areia. O garoto ficou um tempo deitado, tossiu um pouco e foi se recuperando sob os olhares de dezenas de curiosos: nada desperta mais curiosidade do que a desgraça alheia.

Após algum tempo, sentou-se e o anjo perguntou:

— Está tudo bem?

— Sim. Estou legal. Muito obrigado — disse ele.

Foi a senha para a dispersão. Cada um para um lado, em busca de outras atividades e interesses. O salva vidas apenas sorriu e deu a mão para o garoto levantar-se.

Como quem acorda de um pesadelo, ainda atordoado, o garoto procurou pelo pai. Andou de um lado para o outro à procura da barraca azul e branca. Quando encontrou, viu que o pai continuava absorto na leitura do seu jornal, sem ter a menor noção do acontecido. Foi poupado de enorme nervosismo e apreensão, pensou o garoto. Chegou a cogitar de nem contar o episódio, mas não conseguiu: era muita coisa para o peito de um menino.

— Pai, quase morri afogado.

O pai largou o jornal.

— Você não viu, mas o salva vidas teve que entrar para me tirar. E perdi a prancha. Não perdi, larguei. Quer dizer, achei que ela estava me atrapalhando…

Contou então os detalhes do episódio, que o pai ouviu atentamente e ao final concluiu:

— Felizmente terminou bem. O mar exige muito respeito. Espero que tenha aprendido a lição. Não precisa contar para sua mãe.

— Exatamente o que pensei. Melhor ela não saber.

Voltaram para casa e nunca mais se falou no assunto.

O garoto era eu. Só agora, mais de 50 anos depois, tive paz para contar esta história, pois ambos já faleceram: meu pai, sem recordar o fato, e minha mãe, felizmente, sem saber.

Antonio Carlos Sarmento

32 comentários em “TIRANDO ONDA”

  1. Mais uma história de aprendizado, que a vida ensina à todos nós a estabelecer limites e superá-los, quando necessário.
    Um abração amigo!!!

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  2. Que criança não passou algum perrengue no mar? Mas o mais impressionante e chocante foi vovô não ter se dado conta. Graças a Deus você está aqui hoje pra nos contar essa história. 🙌🏼

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  3. Lembrei de qdo estava na praia por sorte conversando com o salva vidas. Ele atento me disse acho que aqueles meninos estão em apuros, qdo segui seu olhar disse vai pq é meu filho e seu primo. Que bom que estamos aqui pra contar o final feliz dessas histórias. Bjs

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  4. A minha mãe dizia: o mar não tem cabelo !!! Graças a ajuda desse verdadeiro anjo, que foi o guarda-vidas, hoje você pode estar escrevendo essa belíssima crônica.

    Sds. e um final feliz de semana, sem mar e sem prancha.

    Carlos Vieira Reis

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  5. Imagino o susto!
    Ainda bem que sua mãe foi poupada, decisão sábia, ela iria viver todos aqueles momentos aflitivos e não teria mais sossego cada vez que fossem a praia.
    Graças a Deus veio um anjo salvador.

    Abraços

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  6. Às vezes, a prancha que está ali pra ajudar, só atrapalha! Está em nós a lucidez de deixa-la de lado e seguir adiante sem nada! Esta é a verdadeira forja do homem!!! Principalmente quando tudo acaba bem!!!!!!!

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  7. Que sufoco , cunhado! Tenho muito medo do mar , principalmente porque morava na serra quando criança . Ficava muito cansada quando levava meus filhos à praia, era tensão o tempo todo , um alívio quando voltava para a casa . Ainda bem que Glorinha foi poupada desse episódio. Bjks

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  8. Antonio Carlos, sua história de terror, me remeteu a minha adolescência. Deveria ter uns 13 anos. Passei por situação angustiante semelhante no Arpoador. Gostava de pegar jacaré. Em busca de ondas maiores, me afastei da areia.
    Quando tentava voltar, a correnteza me puxava para fora. Entrei em pânico. Afundava e voltava, bebendo água.
    Não cheguei a gritar por socorro. Uma moça que estava próximo, percebeu meu “sufoco” , me segurou e me rebocou alguns metros, até que consegui descer em uma onda. Nesse dia havia “ressaca”, tão costumeiras no Arpoador. No meu caso, não houve platéia. Com vergonha e assustado, sumi no meio do povo…. Eu usava uma prancha fina, feita de madeira(vinhático), era o máximo naquela época. Nesse dia, como o mar estava agitado e com ondas grades que “encaixotavam”, pegava jacaré de peito.
    No meu caso ninguém percebeu e não contei para ninguém.
    abs
    Edgar

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    1. Caro Edgar,
      Viu? A crônica revelou esta passagem da sua vida, até então desconhecida por nós.
      Felizmente a sua história também acabou bem e estamos aqui juntos, para contar estas peripécias da juventude.
      Grande abraço, meu amigo!

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  9. Comovente Sarmento. Qdo comecei a ler lembrei de imediato de minha primeira prancha de isopor. Meu sofrimento deveu-se ao fato de que fiquei horas na agua, até que começou a arder muito meu peito pois o isopor riçando na pele a “assava” e isso gerava um queimar imenso. Chego a conclusão que pranchas de isopor não eram boas companheiras… bom domingo fique com Deus voce e sua familia. Ha! Em relação a tempestade tropical, choveu MUITO mas graças a Deus, ficamos bem.

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    1. Caro Luigi,
      Feliz em saber que passaram bem pelo período de tempestade.
      Realmente o isopor queimava a pele. Depois das más experiências todos passaram a usar uma camiseta para proteger.
      Se não me engano, depois começaram a fazer umas pranchas revestidas com uma malha de algodão para evitar o inconveniente.
      Grande abraço, amigo e grato pelo comentário.
      Fiquem na paz de Deus!

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  10. Certamente que nunca mais olhou o mar… com o mesmo olhar!
    Tal como eu nunca mais o olhei da mesma forma desde que, há muitos anos, fui enrolada numa onda e não conseguia respirar. Foi horrível a sensação.
    Adoro o mar… mas a partir desse dia ao prazer misturou-se o medo e um profundo respeito.
    Creio que o mar é um “professor” que nos ensina a ser mais humildes.

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  11. Meu irmão,
    Quanta história de perrengues você viveu e só agora com suas crônicas pudemos saber… sofrimento solitário!!
    Graças à Deus por esta benção e livramento, o Senhor te guarda desde sempre, que alívio!!
    Mas o impressionante foi junto com seu desejo de sobreviver , querer poupar mamãe dessa dor imensa.
    O amor realmente salva!!!
    Linda história !!!

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    1. Minha irmã,
      Realmente a figura de nossa mãe foi a protagonista da história. Eu pensava mais nela que em mim mesmo.
      Jamais poderia levar a ela um sofrimento deste tamanho. Graças a Deus terminou bem e ainda evitamos dela afligir-se ao saber do caso.
      Bjks e grato por comentar!

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  12. É, o mar não tem cabelos, já diziam os “antigos”.
    Lembro bem do tio Delson falando isso com uma risada gostosa no final, como se isso também tivesse um lado cômico.
    Nós todos que moramos próximo a orla, temos histórias semelhantes a contar e tal qual a sua, felizmente, para contar.
    Lembro uma do meu pai até folclórica que o acidentado ficou com o apelido de “Mal afogado”, pois após ser considerado como morto, ressuscitou acima de todas as perspectivas.
    Enfim, é um fato até cotidiano e que raramente são registrados.
    Um abração primo.

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    1. Caro Primo Rômulo,
      De fato o mar surpreende muitos, que de repente se veem em alto risco e precisando de ajuda.
      Aí é sensação de impotência e o risco de perder a vida totalmente, por um simples banho de mar.
      É preciso desfrutar desta maravilha, porém com limites seguros.
      Grande abraço, primo, e grato por comentar!

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  13. Querido amigo, gostei bastante da crônica de hoje. Não pela história em si, mas pela forma como foi contada. Vc colocou no papel o medo, o respirar nervoso, o terror que deve ter desesperado aquela criança. O leitor consegue sentir esse medo, desejar que a onda não venha, que a salvação chegue logo. Isso é escrever é escrever com amor, não importa quem seja a criança, ela comoveu! Parabéns ! Bjss

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    1. Querida Taís,
      Com muita alegria recebo seu comentário. É muita generosidade sua, no momento em que está vivendo, ainda ler e comentar.
      E comentário de escritora é coisa séria! Hoje termino o livro que estou lendo e o próximo é o seu “A Poeira dos Anos”.
      Obrigado amiga querida! Continuamos em orações diárias.
      Beijos

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  14. Querido amigo, li com muita atenção sua crônica. A narrativa foi tão real, que peguei jacaré com esse menino, curti o lindo dia de sol, vibrei em cada onda que consegui surfar na companhia dele, até que….. senti medo, me cansei, fiquei sem ar e até me afoguei com ele, foi um desespero. Conseguir boiar foi um alívio, mas depois ao me afogar e beber água mais uma vez, aqui abro parênteses: … “me veio a memória uma lembrança da minha adolescência, tb na praia do Leme, com uma amiga, quase me afoguei, tive o braço forte de um rapaz de quem nem vi o rosto, mas me agarrei com toda a força possível, até que conseguisse alcançar a areia e sair da água.” Quando o menino pensou na mãe, viu uma pessoa nadando na sua direção, fiquei torcendo para que ele aguentasse mais um pouquinho até ser salvo… agora a surpresa foi grande quando se revelou a identidade desse menino. Uma criança de 10 anos passando por todo esse sofrimento e se tornou HERÓI da sua própria história!!! Parabéns!!!

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