CHEIRO VERDE

Sento para escrever a crônica e vislumbro o inimigo. Um mosquito se destaca contra a parede branca à minha direita, pousado com desfaçatez, querendo dar a impressão de não estar interessado no meu sangue. Minhas ideias para escrever desvanecem e a prioridade de eliminar o inseto se impõe.

Recorro à mais genial invenção do século XXI: a raquete mata mosquitos. Esta arma infalível permite executar a criatura sem necessidade de pontaria ou qualquer outra habilidade. Aplico-lhe a pena capital sem piedade ou remorso.

Ao final da execução sumária fica no ambiente o cheiro da cremação, o que para muitos pode ser imperceptível, mas para mim chega com intensidade e repulsa, tornando necessário adiar meu escrever por mais uns dez minutos.

A questão é que Deus errou a mão no meu olfato e o fez sensível demais aos maus odores. Note o leitor que, longe de vanglória, estou a confessar uma deficiência. É preciso fazer distinção entre a característica do meu olfato e o chamado “olfato apurado”, qualidade que permite aos assim dotados até ganhar a vida com este dom, por exemplo, fazendo controle de qualidade de perfumes, vinhos ou café. Ah se eu pudesse cheirar café pela manhã, vinhos no fim da tarde, perfumes à noite e assim ganhar a vida deliciosamente…

Ainda outro dia, fiquei constrangido ao ler uma nota descritiva das qualidades aromáticas de um vinho. Dizia o enólogo, superdotado: as frutas vermelhas são completadas por toques de chocolate meio amargo, pimenta preta, cereja azedinha e alcaçuz. Deixa entrever aromas de samambaia verde em meio a nuances de pedra lascada.

No início da leitura acompanhei razoavelmente, mas quando chegou na cereja azedinha comecei a me sentir humilhado. Aí veio a samambaia verde e eu quis parar de ler, porém meus olhos correram até o final da frase e a pedra me lascou. Decidi não comprar o vinho e abandonar definitivamente tais leituras: se for para ler ficção prefiro um bom livro.

A percepção para cheiros com que fui dotado poucas vezes me foi útil. Em uma delas, eu estava num restaurante com minha mulher e ela escolheu um filé de peixe com arroz à grega. O prato chegou bem arrumado e trazia acima do arroz um decorativo camarão VG, que sequer constava na descrição do menu. Juro que eu não me esforcei para sentir o aroma do prato. Só que quando minha mulher cortou o crustáceo, separando o V do G, minhas narinas foram invadidas por um odor acre, cuja origem eu não tinha a menor dúvida. Aquele camarão parecia ter sido cozido em água sanitária!

Como não desejava ingressar precocemente na viuvez, impedi que ela desse a primeira garfada. Deste dia em diante, e lá se vão longos anos, ela sempre me pede para, disfarçadamente, sentir o cheiro do prato antes de comer, especialmente se for camarão. E depois ainda dizem que marido não serve para nada além de deixar toalha molhada em cima da cama…

Na realidade, a característica de sensibilidade aos cheiros que confessei possuir, me traz muito mais dissabores que proveito. Muitas vezes sou torturado por perfumes fortes, outras por cabelos não lavados ou banhos não tomados. E outras ainda por roupas mal enxaguadas ou que secam à sombra — já mudei de lugar em cinema por causa de uma calça jeans neste estado que não me deixava ver o filme.

Trabalhei por um período com alguns franceses que, em pleno verão do Rio de Janeiro, usavam a mesma camisa de segunda a sexta-feira, naquele molha e seca entre a rua e o ar-condicionado do escritório. Coisa insuportável. Na época cheguei a me revoltar contra o Criador que, desatento, acabou misturando o respirar com o cheirar. Pelo menos podia ter colocado pálpebras também nas narinas…

Certa época da vida, para economizar, tentei ir para o escritório usando o metrô diariamente. Era pleno verão, quando no Rio ficamos assando no calor de 40 graus ou mais. Ao fim do dia, no metrô lotado não me incomodavam os empurrões, apertos, desconfortos, falatório e viajar de pé. A questão eram os insuportáveis eflúvios detectados com intensidade pelas minhas narinas no ambiente de desodorantes vencidos. Por obra de Satanás, as barras de apoio dos passageiros são colocadas em posição acima das cabeças. Ora, com os braços estendidos para cima, as axilas passam a exibir-se em toda a sua exuberância e as emanações alcançam a potência máxima.

Em algumas ocasiões cheguei a saltar em uma estação qualquer, apenas para respirar um pouco e recuperar-me da tortura olfativa. Em menos de um mês decidi pegar um empréstimo e comprar o carro mais barato que havia, deixando o metrô para passageiros com olfato menos sensível aos cheiros malditos.

Carrego esta sina pela vida toda e, para que não venha a me perturbar até na hora da morte, já disse à minha família que não quero velório. Prefiro ir direto para a cremação, tal qual o mosquito na raquete. Sim, eu não suportaria aquele cheiro de flores misturadas, a naftalina dos ternos e vestidos pretos, além daquela pessoa, que jamais direi o nome, com o enjoativo perfume do qual me esquivei a vida toda. Que a morte me traga pelo menos este alento.

Dizem que os aromas voam e às vezes pousam. Em mim, os ruins sempre pousam!

Antonio Carlos Sarmento

 

 

 

30 comentários em “CHEIRO VERDE”

  1. Os aromas que sinto são bem interessantes, porque estão na minha memória, e não sei descrever se outra forma. Eu sempre liguei os aromas das estações, ligados a sentimentos de acontecidos em cada uma delas. Para mim o mais marcante é o início do inverno, sinto o aroma do frio, loucura! O que me traz as lembranças da época jovem de festas junina, quadrilhas, balões, cheiro da comida típica da época e assim por diante.
    Para mim, por exemplo, o Natal tem cheiro, a Páscoa tem cheiro e etc…
    Não sei se me fiz entender, mas foi o que senti lendo a crônica, não me importei, desculpe, com o camarão passado, mas a lembrança do meu passado, interessante isso! …O cheiro do meu pai, após a barba, ou quando chegava do seu mercado…e de outros parentes próximos, como também de lugares.
    A sua excelente crônica, foi assim por mim refletida, com ótimas recordações e com um tremendo cheiro de saudades…
    Obrigado Cacau!
    Bjs

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    1. Amigo Chico,
      Entendi perfeitamente seu comentário. Os aromas e a música despertam as recordações de um modo muito especial, não acha?
      Cheiro de lenha, de chuva, de eucalipto, de sabonete de lavanda…
      Que bom ter levado você à boas saudades!!!
      Beijos

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  2. Meu grande e NIBRE IRMÃO EM JESUS CRISTO AMÉM E COM A VIRGEM MARIA AMÉM sempre serei humildemente e com toda a HONRA à que couber no meu humilde coração por SEMPRE AMÉM,em ser seu eterno Brother e SEU ETERNO FÃ pois sei o que pensas e repassas ao vosso tão abençoado coração que tens dentro de si mesmo e és muito ABENÇOADO PELO ESPÍRITO SANTO SEMPRE,agradeço D +++ ,por me chamar de Irmão,pois a pessoa que AMO como Irmão eres tu,meu querido ANTHONY,à ti e à vossa linda e abençoada Família AMÉM E COM A VIRGEM MARIA AMÉM!😍😘😇💝💖🙌👏🤜🤛👋👨‍✈️!

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  3. Compreendo muito bem esta crónica, apesar de não ter um olfacto assim tãaaaao apurado como o descrito. Essa de detectar o cheiro do camarão estragado no prato ao lado é de mestre!
    Bom domingo!

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  4. Hoje, devaneios de uma inspiração bem peculiar.
    Minha esposa diz que tenho nariz necrosado, uma dádiva segundo sua crônica.
    O auge, a separação do olfato da respiração.
    Parabéns, o canal está cada vez mais consolidado.
    Uma boa semana primo.

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  5. Oi querido amigo. Achei sua crônica de hoje um pouco trágica. Você inicia com a raquete mortífera quanto aos indefesos mosquitinhos e depois fala do seu próprio epitáfio. Mas eu concordo inteiramente com você….
    Matar um impertinente mosquito é quase vencer uma guerra. Quanto aos aromas concordo também. Quanta coisa deixamos de fazer pelo odor que ela encerra mas quantas passamos a fazer com conta de outros odores. Como sabe sou um ferrenho admirador do camarão e por isso quero pedir sua autorização para convidar a Sônia para os inúmeros jantares para dar o aval do meu apreciado crustáceo…
    Já escrevi demais…
    Mais uma vez parabéns pela bela crônica e bom final de semana meu dileto e cheiroso amigo.

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    1. Meu querido amigo Nei,
      Seu comentário é uma outra crônica. Me diverti muito!
      Quanto à convidar a Sonia para suas camarõesadas, pode tirar o cavalinho da chuva. Você sabe que sou ciumento…
      Beijos meu amigo e um especial na Jaciara!

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  6. Caro Antonio Carlos:
    É plenamente compreensível a sua sensibilidade aromática. Mas, contente-se, pois ainda existem aromas piores do que os sugeridos na sua excelente crônica, como, por exemplo, a fumaça que empesteia nosso já tão sacrificado meio ambiente, além dos malefícios que causam à saúde.
    Mais, uma vez, meus parabéns pelo excelente artigo.
    Sds.
    Carlos Vieira Reis

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    1. Caro amigo Carlos,
      Agradeço seu comentário, sempre gentil.
      Espero que tenha se divertido com a crônica, meu assiduíssimo leitor – precisei inventar este superlativo para fazer jus a sua frequência de leitura.
      Grande abraço, meu amigo!

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  7. Trabalhamos na mesma empresa com franceses. Eles fazem jus a fama de exalarem forte “CC” ( Cheiro de Corpo, ou no nosso carioques, SUVACO!). Não tenho um olfato tao sensivel quanto ao seu (que bom!) que no seu caso quase chamaria, com o devido respeito e carinho, de FARO… kkkkk
    Bom domingo, excelente semana e que Deus nos abençoe.

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  8. Meu amigo. Uma rinite durante anos me tirou o olfato. Não sinto os perfumes mas também não sinto os fedores. Perguntei ao médico como mantinha o paladar, memória olfativa me disse ele. Quanto ao vinho descrito fico imaginando o expert lambendo uma pedra lascada. Me poupe dessas descrições. Pra mim, vinho bom é o vinho que eu gosto. Beijão

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  9. Irmão,
    Apesar de uma sensibilidade menos aguçada também valorizo muito um cheiro bom!!!
    Um bom sabonete, um corpo asseado e uma roupa limpinha traz um grande prazer, né mesmo??
    Um cheiro bom pra você e uma semana abençoada!!

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  10. Você foi corajoso. Eu não tenho coragem de fritar os mosquitos… Só rindo de mim pois me adoram e preciso sempre me livrar deles com repelentes. Olfato apurado realmente é um problema delicado… Lembro-me dos franceses no metrô… Meu Pai!

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  11. Caríssimo Sarmento,
    Saboreava, deliciado, o exalado da tua crónica e sentia, como minhas, as tuas sensibilidades olfativas. Poderia, até, dizer que somos almas gémeas ao que tange às papilas olfativas.
    Os exemplos de abundante perfume que te fizerem e fazem torcer o nariz, nada mais é, como bem disseste, uma característica, própria ou adquirida, quiçá dada pelo altíssimo, dos superdotados às sensibilidades aromáticas .
    Sei muito bem do que falas!..
    Pró bem e pró mal, essa qualidade do que é terrível, acompanhar-nos-à, ad eternum, exceto se a COVID no-las suspenderá.
    Parabéns e um abraço

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  12. Meu amigo, duas pequenas observações:
    1) Você mencionou que não trata de morte em suas crônicas. 🤔
    2) Quando almoçarmos juntos, novamente, dê uma cheiradinha no meu prato. 🙏

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  13. Entendo perfeitamente este seu “dom”. O meu olfato não é tão aguçado, mas um francês, no Rio de Janeiro, de segunda a sexta, com a mesma camisa, ah, isto sim, uma verdadeira tortura.
    Parabéns pelas suas crônicas, sempre leves e muito fáceis de degustar.

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