COMIDA DE PRAIA

Domingo de sol, praia cheia. Já passava do meio-dia. O garoto vinha serpenteando entre as barracas, carregando um grande saco plástico às costas. Catava latas de alumínio.

Devia ter uns 14 anos, que de tão sofridos, valiam por mais de 20. Maturidade esculpida pela severidade dos dias. Vida escassa, que esgarça, que maltrata, sem olhar a idade ou a fragilidade.

Descalço, usava apenas uma bermuda preta cobrindo até os joelhos. Todos estavam ali pelo sol, ele estava ali, apesar do sol. Aos outros bronzeava, a ele queimava.

Apesar de tudo, exercia seu ofício com certa leveza no andar e um brilho opaco nos olhos, tentando aparentar alguma alegria. Uma alegria sem motivo.

Parou numa barraca:

— O senhor já terminou? — perguntou ele com um leve sorriso, apontando para a latinha de cerveja.

O tal senhor pegou a lata que descansava em cima de uma pequena mesa, balançou e percebeu que ainda havia líquido dentro. O rapazinho aguardava com o olhar gentil, tão gentil que despertou uma sede que não havia. O sujeito deu uma última golada e entregou o objeto, recebendo de troco um balançar de cabeça e um agradecimento murmurado.

Mais uma fração de centavos dentro do saco.

Seguiu seu caminho, de passo lento e olhar atento. Nas costas um resultado ainda pequeno do seu cata-cata, mas que a experiência indicava que iria melhorar. Havia chegado a hora do pico de consumo. O calor era seu grande aliado, embora também seu grande inimigo.

Foi até o final da sua área, pois o espaço era dividido entre os catadores. Um garimpo organizado. O trajeto foi dando frutos e meia hora depois o saco já pesava mais e fazia volume. O menino revezava as costas, deslocando-o ora para o lado direito do pescoço, ora para o esquerdo, trocando de braço, buscando dividir o peso, desconcentrar a carga e aliviar os músculos.

Com o cansaço já estava acostumado. Seu corpo respondia aos treinos intensos a que era submetido quase todos os dias. Com a sede sabia o que fazer já que trazia uma pequena garrafa plástica com água no bolso da frente da bermuda. Com o calor tinha o alívio à disposição, bastando um breve mergulho no mar para repor suas energias por algum tempo.

Mas com a fome não sabia lidar…

Quando ela chegava, era para virar dona da situação. A água não a enganava. Começava mansa, só dando sinais, mas logo exigia sua cota de forma impiedosa. Impunha tonteira, fraqueza e ânsia. Difícil de resistir, impossível de superar. Era preciso aguardar até que ocorresse a metamorfose do saco em  dinheiro.

Seguiu entre as barracas. Os olhos adestrados procuravam latas, mas o estômago procurava alimento. Enxergava saquinhos de biscoitos e salgadinhos onde as pessoas metiam a mão e extraíam guloseimas. Avistava porções de aperitivos servidas pelo bar de praia e pessoas se fartando daquelas delícias inacessíveis.

Mas ele era trabalhador, não pedinte! Resistia.

Ainda não era hora de parar. Precisava atingir a meta e lotar o saco, levar o dinheiro para casa e fazer a sua parte. Tinha responsabilidade, não era criança.

Respirou fundo, levantou a cabeça e foi em frente. Localizou mais uma latinha sobre uma caixa de isopor. Foi até a barraca. Ao aproximar-se sentiu o cheiro de aipim frito exalando de uma porção recém-chegada. Tentou olhar para o casal ao perguntar se a latinha estava vazia, mas seu estômago obrigou-o a manter os olhos fixos no alimento.

A mulher percebeu. Santa mulher. Coração sensível, olhos que veem.

— Está vazia sim. Quer um pedacinho de aipim?

O menino não conseguiu falar. Apenas assentiu com a cabeça.

Ela pegou um guardanapo e reuniu o quanto coube de pedaços quentinhos entregando a ele, enquanto o marido estendia a latinha já usada. Recebeu de uma mão o alívio para agora e de outra algum alívio para logo mais.

Agradeceu silencioso, apenas com os olhos. Mas um dos olhos não aguentou e derramou uma lágrima. Tinha responsabilidade, mas era uma criança.

Pôs-se a caminho novamente, com o alimento na mão, de palma para cima. Era digno procurar um espaço na areia, sentar e saciar aquela agonia que o atormentava.

Vendo-o afastar-se, o marido comentou:

— Fez bem. O garoto estava com fome.

Ela respondeu, ainda emocionada:

— Uma coisa é sentir fome, outra coisa é passar fome.

E ficaram em silêncio.

Antonio Carlos Sarmento

28 comentários em “COMIDA DE PRAIA

  1. Bom dia Cacau!!

    Mais uma maravilha de crônica!!
    Que Deus continue abençoando e inspirando você.
    E que em nós seja produzido um sentimento de solidariedade e sensibilidade humana para perceber e saber atuar nos grandes vazios dos nossos semelhantes.
    Um abraço Gilvan Lima

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  2. Linda crônica querido amigo.
    Obrigado pelo presente no meu café desse Domingo.
    Quanta sensibilidade dessa senhora ao notar o olhar de fome do menino. Ainda existem pessoas assim com a Graça de Deus.
    Parabéns amigo me aos uma vez pelos detalhes que como sempre você ilustra suas crônicas. Obrigado e bjs na Sônia. Hoje acho que fui o primeiro kkkkk.

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    1. Amigo Nei,
      Aqui no Brasil você foi o primeiro!
      Fico contente que tenha gostado, especialmente por este domingo ter sido o Dia Mundial dos Pobres.
      Obrigado por comentar, meu querido amigo!
      Manda um beijão pra Jaciara e que tenham uma excelente semana!

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  3. Caro Antonio Carlos:
    Este é o retrato fiel da nossa juventude, menos aquinhoada pelos nossos Governos e, porque não, pelo políticos.
    A miséria empurrou este jovem para a labuta, muito mais cedo do que se pode prever, à mingua de recursos, educação e saúde, necessidades (direitos) tão escassas em nossa sociedade. Por isso, precisamos saber eleger melhores representantes. Aliás, o dia que o Brasil tiver educação política, muitos desses males desaparecerão.
    Pelo menos, o jovem catador de latas, com todo seu louvado sacrifício, estava ganhando o pão de cada dia, de forma honesta, sem precisar enveredar por caminhos tortuosos.
    Parabéns pela belíssima crônica.
    Sds. do seu amigo,
    Carlos Vieira Reis

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    1. Caro amigo Carlos,
      Fico feliz em notar que está de volta, comentando as crônicas e, se Deus quiser, em boa forma.
      Muito obrigado por comentar, meu amigo.
      Desejo muita saúde à você, Leila, Carla e seu netinho. Uma ótima semana!

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  4. Fiquei emocionado com sua excelente crônica, um fato que acontece todos os dias e passo desapercebidos por muitos.
    Eu observo muito essas coisas e que realmente partem o coração.
    O final da crônica é realidade dura e muito cruel, e pensar que todo dia na hora do almoço eu sinto fome e tantos outros passam fome e esperam um pedacinho de aipim e se emocionam com algo que talvez a gente reclama porque está faltando sal.
    Valeu Cacau!
    Mexeu comigo, você sabe que sou muito ligado nessa desigualdade absurda e nessa falta de pelo menos consciência de uma grande parte da humanidade.
    Bjs

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    1. Chico,
      Sei de seu coração sensível, amoroso e solidário. Já imaginava que a crônica iria mexer com você.
      Continue fazendo a sua parte, dedicando-se aos outros e dando exemplo de vida a todos nós.
      Beijos e uma maravilhosa semana!

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  5. Que crônica maravilhosa, apesar da crueza da realidade. Vemos isso nas praias (crianças com fome), praticamente desde crianças e me pergunto: isso não poderia/deveria acabar? A resposta que acho é que banalizamos a dor e praticamente congelamos nossos mais cristãos sentimento e ai, vamos levando… Sempre faço uma analogia com os profissionais de emergência nos hospitais ou de UTI. Congelam os sentimentos na tentativa de manter a sanidade. Triste realidade. .. bom domingo e que Deus nos abençoe a todos,

    Curtido por 2 pessoas

    1. Amigo Luigi,
      Sim, vemos esta realidade que, infelizmente, parece agravar-se com o passar do tempo.
      E, como você disse, vamos banalizando, nos acostumando e aceitando esta triste realidade.
      Que esta aceitação não arrefeça a nossa solidariedade e o desejo de amenizar o sofrimento de tanta gente.
      Grato por comentar, meu amigo, e uma ótima semana a vocês.
      Grande abraço!

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  6. Querido amigo, você abordou um assunto tão delicado de forma muito inteligente. Que Deus abençoe sempre sua criatividade e inspiração.
    ” Uma coisa é sentir fome, outra coisa é passar fome”.
    É triste a situação no mundo em relação a fome, miséria, refugiados, etc.
    A ganância da elite, com raríssimas exceções, não permite olhar um pouco mais para baixo.
    Vamos fazendo a nossa parte e orando pela misericórdia Divina.
    Ótima crônica!
    Abraços e uma excelente semana.

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    1. Meu caro amigo Newton,
      É triste a situação da pobreza no mundo, como comentou.
      Que tenhamos olhos para ver e disposição para agir, fazendo o que estiver ao nosso alcance.
      Fico contente que tenha gostado da crônica!
      Um grande abraço e manda um beijo pra Nuri!

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  7. Meu prezado amigo e irmão Antonio Carlos.

    Eu leio o texto desta cronica sentindo o mesmo prazer de quando faço as minhas orações.
    Eu penso que somos responsáveis pelo cuidado do próximo, não importando quem o seja, família ou desconhecido; é assim que aprendemos na leitura do evangelho.
    Portanto, quando (sic), “Ela respondeu, ainda emocionada: — Uma coisa é sentir fome, outra coisa é passar fome”.
    Eu estou de pleno acordo: a caridade tem que vir sempre primeiro.
    Meu bom irmão e amigo, sua crônica faz aflorar boas atitudes.
    Muito obrigado pelo carinho, enviar e permitir a esse seu irmão em Cristo, Osluzio, oportunidade de parabenizá-lo pela belissima crônica.

    Oslúzio Felix Fonseca

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    1. Meu querido amigo Oslúzio,
      Gostei muito do seu comentário, Se a crônica tiver este dom de fazer aflorar boas atitudes, já me sinto gratificado!
      Muito obrigado por sua imensa gentileza e seu carinho comigo, meu querido amigo.
      Um grande abraço e beijos em todos desta família maravilhosa!

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  8. Boa noite, tema de grande repercussão no momento político que vivemos, um dilema entre a sanidade social e a econômica.
    Uma mão no coração e a outra na cabeça, sabendo que ambas estão certas.
    Apesar de possuir um lado, prefiro aqui não revelar pois também o momento não é propício e certamente só irá polemizar ainda mais a difícil escolha.
    Espero ainda que em um futuro bem próximo não precisemos mais da Escolha de Sofía.
    Abraço grande

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    1. Querido primo Rômulo,
      Obrigado por comentar. Sem dúvida não vamos enveredar por preferências políticas, mas fazer a nossa parte, o que estiver ao nosso alcance, para aliviar um pouco o sofrimento dos menos favorecidos.
      Um grande abraço e uma ótima semana!

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  9. Nooossaa irmão!!
    Hoje li a crônica ao final do dia e espero não perder o sono…
    Que triste realidade tão bem descrita em suas palavras!
    Que toque à todos nós como o coração dessa senhora,aguçando nossa solidariedade e compaixão!
    “A gente se acostuma mas não devia”

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    1. Minha irmã,
      Deus me livre atrapalhar seu sono…
      A crônica fala de algo triste, pois afinal não vivemos só de alegrias, mas que sirva mesmo para despertar a nossa compaixão e solidariedade.
      A gente precisa se desacostumar a ver o sofrimento dos irmãos.
      Beijos e uma maravilhosa semana!

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  10. Olá Prezado Amigo, Muito bom dia, Mesmo com atraso, acabei de ler a sua crônica desta semana, como sempre, muito sensível. O casal do final, em meu entendimento, demonstrou o que é fazer o bem, sem olhar a quem, como tenho aprendido, a cada dia. O que para alguns de nós é banal, para outros seres é uma questão de sobrevivência. Recomendações à Sônia, repassou para ela os meus cumprimentos pelo dia de ontem? Tenho certeza que sim. Recomendações à Tatiana, ao Guiherme e ao Jean.

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    1. Amigo JH,
      Muito obrigado! Seu atraso teve um motivo preponderante. Fico contente que tenha apreciado.
      Um grande abraço, meu amigo! Desejo um ótimo final de semana a você, Sueli, Luizinho, Júnior e, claro, Catarina!!!

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  11. Mais uma crónica sensivel que retrata tantas situações reais, que existem aí, aqui e por tanto mundo…sendo bem menos os que estão atentos como essa senhora que descreve.
    Por vezes percebemos…noutras nem reparamos.. e noutras desconfiamos……

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    1. Dulce,
      Mais uma vez agradeço seus comentários e sua constante presença por aqui.
      Pode ter certeza de que tais situações por aqui possuem uma intensidade bem maior que aí em Portugal. Mas sem dúvida merecem a nossa percepção, sensibilidade e solidariedade.
      Desejo um ótimo final de semana a você e sua família!

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